terça-feira, 30 de maio de 2023

Como a Igreja Universal está doutrinando as forças policiais do Brasil – e os governos fingem que não veem

PARECIA UMA OPERAÇÃO policial de grandes dimensões. Dezenas e dezenas de viaturas policiais, de diversos tipos – incluindo bases comunitárias móveis – estacionaram em frente a um templo da Igreja Universal do Reino de Deus na rua Guaicurus, na Lapa, zona oeste de São Paulo, nos dias 14 e 15 de março. O estacionamento estava abarrotado de viaturas. Dentro do prédio, cerca de mil policiais fardados se aglomeravam.

Eles estavam dentro do templo para uma revista geral do efetivo – que incluiu não apenas instruções aos PMs, mas também café da manhã e um “momento de reflexão” oferecidos pelo programa Universal nas Forças Policiais, que promove “assistência espiritual” à forças de segurança no país, desde 2018. O programa, diz a igreja, é “focado no bem-estar emocional dos profissionais de segurança, sempre respeitando a liberdade religiosa desses profissionais”, garante a Universal.

Parte inferior do formulário

Um levantamento feito pelo Intercept com base em posts públicos em redes sociais constatou que o programa, de sigla UFP, realizou encontros, cafés da manhã, orações, bênçãos e esteve presente em eventos de PMs, bombeiros, de agentes da  Polícia Federal e até do Exército e da Aeronáutica em 24 estados do país – isso, só neste ano. Foram mais de 70 encontros, que vão de pregação para as tropas – fardadas – dentro dos templos, como aconteceu em São Paulo, à presença em solenidades de troca de comando com a cúpula das instituições. 

Por meio da Lei de Acesso à Informação, as secretarias de segurança e as polícias envolvidas foram questionadas sobre o efetivo empregado, o que era feito nestes encontros e a existência de convênios e contratos com a Universal. Nem todos responderam – mas todas as respostas indicam que não há nenhum tipo de acordo formal para adesão ao programa, que é oferecido de forma voluntária. Os órgãos estaduais, no entanto, se contradizem sobre o conteúdo oferecido.

No Mato Grosso, por exemplo, a polícia militar fala em “visitas informais” para “realização de orações”, que são “bem-vindas”. Naquele estado, no Dia Internacional da Mulher, integrantes da UFP entregaram bíblias a  policiais, que também assistiram a um “momento de reflexão” do pastor Adriano Damelio e sua esposa, Natalia.

No Mato Grosso do Sul, a resposta foi que as visitas são “esporádicas”, “sem programação definida” e visam “promover o bem-estar da família policial militar”. No estado, no mesmo 8 de março, o bispo Carlos Cucato visitou o recém-empossado comandante-geral, coronel Renato dos Anjos Garnes, para “fortalecer a assistência espiritual que a Universal realiza através do Programa UFP”.  No Rio Grande do Norte, a PM nega que tenha havido eventos envolvendo a UFP – mas, por meio de posts da própria Universal, com fotos, é possível ver que os missionários estiveram na comemoração do aniversário de um batalhão, e aproveitaram para ministrar a palavra de Deus. 

Em Roraima, batalhões específicos chegaram a ter 26 visitas de voluntários da UFP. Nenhum deles tem qualquer tipo de vínculo documental, nem mesmo o programa oferecido aos policiais durante os “momentos de reflexão”, orações e agradecimentos com “temas vividos no cotidiano apresentados de maneira espontânea pelo pastor”. O grupamento que mais participou das atividades no estado foi o Batalhão de Operações Policiais Especiais, o Bope. Em atividades dirigidas pelo pastor Julio, da Universal, todo o efetivo do batalhão – 160 policiais – participou das atividades todas as sextas.

A polícia militar de Goiás foi além. Defendeu o programa, afirmando que o UFP “é desenvolvido nas 27 unidades federativas do país, com o propósito de prestar apoio espiritual e social a homens e mulheres que, diariamente, colocam suas vidas em risco para proteger e servir à população”. E enviou um vídeo do pastor Roni Negreiros, coordenador do UFP, em que ele explica como funciona o programa. 

Nesse vídeo, Negreiros diz que a UFP contempla “milhares de bispos, pastores, obreiros e voluntários” para “assistência social, espiritual e valorativa” das forças policiais. Sabendo as possíveis críticas ao programa – o estado brasileiro é laico e a Constituição assegura liberdade religiosa –, o coordenador se antecipa. “Em toda atividade dizemos para as pessoas que elas não são obrigadas a participar”, ele garantiu.

Segundo Negreiros, na prática, com o programa, a Universal cede seus templos para as forças policiais realizarem eventos. Em determinado momento, os religiosos assumem a palavra – por não mais do que cinco minutos, disse o bispo no mesmo vídeo. Outro formato possível é os próprios religiosos da igreja irem visitar as unidades de segurança. No início do programa, disse o religioso, a instituição enviou ofícios e disse ter feito acordos, sem especificar quais, com “as mais altas autoridades”. 

Mas nenhuma das polícias questionadas pelo Intercept afirma ter qualquer tipo de acordo ou documento com a parceria. Nenhuma também quis informar o efetivo empregado nas atividades relacionadas à UFP, embora as fotos divulgadas pela própria igreja não deixem muitas dúvidas sobre a alta quantidade de policiais que têm participado das atividades religiosas.

·         A mentira da polícia de Tarcísio

Nos dias 14 e 15 de março, fotos publicadas pela própria UFP mostram o templo da Rua Guaicurus, na Lapa, lotado de policiais fardados do Comando de Policiamento de Área Metropolitana 5, assim como o estacionamento repleto de viaturas. Naquele dia, segundo a igreja, o bispo Júlio Freitas, genro do bispo Edir Macedo – casado com Viviane Freitas, uma das filhas do líder da Universal –, realizou um “momento de reflexão”, com oração a todos os presentes. O post da igreja diz ainda que o comandante, coronel Forner, “agradeceu à Igreja Universal pela assistência prestada à sua tropa através do programa UFP”. A atividade aconteceu durante o período de trabalho dos policiais, com todos eles devidamente fardados.

Questionada pelo Intercept sobre a quantidade de homens escalados nesses dois dias e por quantas horas, o número de viaturas e o programa oferecido aos policiais, a PM de São Paulo desconversou. Afirmou que as atividades dos PMs no templo da Universal  “não tiveram relação com o programa UFP” ou “qualquer outro programa de cunho religioso”. 

Segundo a polícia, o templo apenas teria sido cedido para alocação da revista geral do efetivo. A PM paulista afirmou ainda que a realização de atividades religiosas na corporação é normatizada por uma portaria de fevereiro de 2017, que só autoriza esse tipo de evento se o seu objetivo for “o desenvolvimento da pessoa humana”. São vedadas atividades religiosas que tragam “prejuízo ao serviço policial-militar ou ao regime de trabalho”, usem as atividades para tratar de assuntos de natureza policial militar, e pratiquem “condutas prejudiciais à liberdade de consciência e de crença como fanatismo, proselitismo ou aliciamento”. 

Segundo a lei complementar número 893, de 9 de março de 2001, que instituiu o regulamento disciplinar da Polícia Militar de São Paulo, em seu artigo 13, são apontadas mais de uma centena de transgressões militares e a de número 126 diz que os policiais não devem “autorizar, promover ou participar de petições ou manifestações de caráter reivindicatório, de cunho político-partidário, religioso, de crítica ou de apoio a ato de superior, para tratar de assuntos de natureza policial-militar, ressalvados os de natureza técnica ou científica havidos em razão do exercício da função policial”. Em cada estado, cada Polícia Militar tem o seu regulamento específico. 

Os próprios posts da UFP, que usou o batalhão paulista para se promover, não deixam muita dúvida sobre o que aconteceu naquele templo. As fotos mostram as centenas de policiais assistindo à pregação, enquanto o telão exibia o versículo Lucas 8:18, que fala sobre como quem crê em Jesus pode receber mais bênçãos. Ainda há fotos de uma reunião do comandante com os pastores e bispos da igreja. 

O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, é do partido Republicanos, o braço político da Universal, que costuma arregimentar entre seus parlamentares  bispos e pastores da igreja. E a maior quantidade dos eventos da UFP levantados pelo Intercept aconteceu justamente em São Paulo. 

No dia 20 de janeiro, poucos dias após a posse do novo governador, o programa UFP recebeu o certificado de “Amigo da Polícia Militar de São Paulo”. Só em 2023, a igreja participou de eventos na alta cúpula, incluindo a troca de comando e uma reunião na Secretaria de Segurança Pública. Em fevereiro, no encontro de comandantes do Comando de Policiamento Metropolitano da PM de São Paulo  – que reuniu coronéis, tenentes-coronéis, majores e tenentes, o pastor Roni Negreiros, segundo divulgou a própria igreja, “abordou o tema da atualidade com base em ensinamentos bíblicos”. As autoridades agradeceram à igreja. 

No Dia da Mulher, a UFP esteve no Complexo do Comando Geral da Polícia Militar de São Paulo, Corregedoria e Centro de Operações da Polícia Militar. Lá, o pastor Negreiros e sua mulher, Eliana Negreiros, fizeram uma palestra intitulada “O valor da mulher, com base no contexto bíblico de provérbios cap.31, vers.10”.  Esses versículos levados à polícia falam da “esposa exemplar”, que “com prazer trabalha com as mãos”, levanta antes de clarear o dia e “prepara comida para todos de casa”.

Houve eventos no ABC paulista, litoral e interior. No dia 2 de fevereiro, a Igreja Universal recebeu uma medalha em uma solenidade no 12° Batalhão de Polícia Militar Metropolitano. “Na oportunidade o secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo, Guilherme Derrite, agradeceu pela assistência prestada pela Universal através do programa UFP, também foram doados literaturas (livros) e bíblias com o comentário do Bispo Macedo às autoridades”, divulgou a igreja. Aparentemente, a Secretaria de Segurança Pública não classificou nada disso como proselitismo religioso, vedada pela portaria de 2017.

A UFP prestigiou, ainda segundo seus posts, solenidades da PM que tiveram a presença do governador Tarcísio de Freitas e, em ao menos uma delas, também a do ministro do STF André Mendonça, apontado como o ministro “terrivelmente evangélico” nomeado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro.  

No final de abril, o programa ganhou mais uma medalha da polícia de Tarcísio – desta vez, do Choque paulista. Na solenidade de 89º aniversário do 2oº Batalhão de Polícia de Choque, a Universal recebeu a “Medalha Batalhão Expedicionários Paulistas da Polícia Militar do Estado de São Paulo.” O secretário de Segurança Pública Guilherme Derrite e o Comandante Geral da Polícia Militar, Coronel PM Cássio de Freitas, estiveram no evento.

Por meio de sua assessoria de imprensa, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo afirmou que “algumas comunidades religiosas oferecem suporte e amparo aos policiais”. Ainda de acordo com o órgão, eles não possuem nenhum convênio com a Igreja Universal – ou com qualquer outra entidade religiosa. “O que existe é uma parceria que ocorre eventualmente para uso do espaço pertencente à igreja, assim como existem parcerias com outras instituições, como universidades e prefeitura”, respondeu o governo paulista. Segundo a SSP, a polícia usa as instalações quando precisa passar instruções a grupos maiores de policiais “que não são comportados em espaços pequenos” em reuniões “pontuais”.

·         Militares passeiam no jardim do templo

Outra estratégia da Universal para atrair militares são os convites para tours no Templo de Salomão, o mega centro religioso construído por Edir Macedo, no bairro do Brás, na região central de São Paulo. Coronéis da PM de outros estados têm sido convidados para o passeio – mas ele não fica restrito às forças estaduais. No dia 3 de maio, militares da Força Aérea Brasileira foram recepcionados por integrantes da UFP para um passeio no jardim bíblico do templo.

Apesar de o Exército brasileiro ter dito ao Intercept, por meio da Lei de Acesso à Informação, que não tem conhecimento, envolvimento ou parceria com o programa Universal nas Forças Policiais, a própria igreja faz questão de divulgar o contrário.

No dia 17 de abril, integrantes do programa da Universal prestigiaram a posse do novo comandante do Comando Militar do Sudeste do Exército, Guido Amin Naves, que sucedeu o comandante-interino, o general de divisão Pedro Celso Montenegro. Dois dias depois, a UFP estava lá de novo na solenidade do Dia do Exército. 

Em 28 de abril, a UFP prestigiava novamente a passagem de comando na 2ª Divisão Militar do Comando Militar do Sudeste, quando o general do Exército Luiz Gonzaga Viana Filho sucedeu, no posto de comandante, o general de divisão Luís Cláudio de Mattos Bastos. 

Membros da UFP também prestigiaram, em 28 de janeiro, a posse do novo superintendente da Polícia Federal de Brasília, Cezar Luís Busto de Souza. Um dos intuitos da visita, segundo post da Universal, era fortalecer a assistência espiritual oferecida a policiais federais. A igreja até detalhou o conteúdo da reunião: “temas como segurança pública e saúde espiritual dos profissionais de segurança pública”, diz o post de divulgação. O superintendente recém-empossado ainda foi presenteado com um exemplar da Bíblia Sagrada.

Em fevereiro, centenas de militares do Exército no Amazonas assistiram ao “momento de reflexão” proporcionado pelo pastor Jailson, de São Gabriel da Cachoeira, durante a formatura do Comando de Fronteira Rio Negro do 5º Batalhão de Infantaria de Selva. Em seu post de divulgação, a igreja afirma que o comandante da 2ª Brigada de Infantaria de Selva e o comandante do Comando de Fronteira Rio Negro e o 5º Batalhão de Infantaria de Selva “agradeceram a Igreja Universal através do programa UFP, pela assistência prestada ao Exército Brasileiro do estado do Amazonas”.

·         ‘Polícia não tem religião’

O Estatuto dos Militares, de 1941, que orienta o uso de fardas por militares do Exército, Marinha e Aeronáutica, define que os uniformes são de uso exclusivo em atividade – salvo algumas exceções em eventos oficiais e autorizados. Portanto, é expressamente proibido, segundo a regra, o uso dos uniformes em manifestações de caráter partidário. Além disso, não é permitido sobrepor ao uniforme nenhuma insígnia ou distintivo de “caráter religioso, sectário ou ideológico”.

O estatuto também proíbe o uso, por parte de corporações civis, de uniformes, emblemas, insígnias ou distintivos que ofereçam semelhança com os usados pelos militares, ou que possam ser confundidos com eles. Mas o símbolo da UFP imita um distintivo de forças de segurança.

No caso das polícias militares, cada uma segue um estatuto próprio, mas as regras, em geral, são semelhantes. O uso dos uniformes é restrito aos membros da força de segurança em período de atividade – em eventos civis deve haver autorização dos superiores. O Paraná, por exemplo, proíbe o uso de uniformes em eventos político-partidários, assim como São Paulo e Mato Grosso do Sul

O cientista político Guaracy Mingardi, analista criminal e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, afirma que qualquer indivíduo, militar ou não, tem o direito de seguir a religião que quiser, mas o policial não pode frequentar cultos ou missas fardado e de forma organizada, enquanto corporação. 

“O indivíduo pode ter a opção que quiser enquanto indivíduo. Como policial, ele é policial, não é católico, não é evangélico, não é budista. Ele pode ir numa igreja, até fardado, mas voltando do trabalho e fora do seu horário de serviço”, argumentou  Mingardi, que é doutor pela USP e ex-investigador de polícia.  “O estado é laico e ponto. Estará se desviando recurso do estado para uma atividade religiosa. Não pode, por exemplo, ter imagem de Nossa Senhora no Palácio do Governo, pois estaria excluindo outras religiões”.

Mingardi vê mais problemas devido a ataques de líderes da Universal a membros de religiões de matriz africana. A TV Record e a Rede Mulher, atual Record News, pertencentes a Edir Macedo e à igreja, foram condenadas pela Justiça em segunda instância, em 2018, por reforçar preconceitos e estereótipos contra adeptos do candomblé ou da umbanda. Sacerdotes dessas religiões eram chamados, em cultos e programas da Universal exibidos nas duas emissoras, de “mães e pais de encosto”, em uma referência ao Diabo. Após a sentença do Tribunal Regional Federal de São Paulo, as emissoras firmaram um acordo e se comprometeram a veicular quatro programas de televisão com o direito de resposta de líderes de religiões afro. 

“Como o policial ligado à Universal vai olhar para um umbandista? Ele pode criminalizá-lo automaticamente. É um problema sério”, questionou  Mingardi. 

Como a corrupção e a ética estão entre os temas abordados pela UFP, a doutrinação de forças policiais pela Universal também pode gerar conflito de interesses, já que Edir Macedo passou a responder a inúmeros inquéritos e processos criminais encaminhados à Justiça a partir do início dos anos 1990, podem tentar ter ao seu lado, por meio dessas atividades, os mesmos policiais que foram acionados para agir ou investigar denúncias contra a instituição religiosa. Edir Macedo chegou a ser preso em 1992, por acusações de estelionato e curandeirismo, e permaneceu 11 dias preso em um DP na Vila Leopoldina, na zona oeste de São Paulo. 

Segundo o próprio Macedo descreveu no livro “O Bispo”, sua biografia oficial depois adaptada para o cinema, a igreja e seus líderes responderam na Justiça por lavagem de dinheiro, evasão de divisas, formação de quadrilha, estelionato, falsidade ideológica, sonegação fiscal, crimes contra a Fazenda Pública, crime contra a ordem tributária, charlatanismo, curandeirismo, sequestro de bens, vilipêndio e preconceito religioso. O líder da Universal nunca foi condenado.

“Agora, está se fechando o triângulo, porque se juntam o posicionamento de extrema direita, o religioso e a polícia. Se junta política, religião e o serviço público num mesmo balaio”, analisou  Guaracy Mingardi.

 

Fonte: Por Gilberto Nascimento e Tatiana Dias, em The Intercept

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário