A
política indigenista brasileira entre o aldeamento e a commodificação
Nesta última semana, pudemos ver uma série de
movimentações em curso na Câmara dos Deputados com potenciais impactos diretos
no acesso de povos indígenas aos seus direitos territoriais tradicionais. A
aprovação do regimento de urgência na votação do Projeto de Lei 490/2007 (PL
490/2007), simboliza um cenário de retrocessos em relação às conquistas de
direitos indígenas. Friso ainda que, em caso de aprovação, o mencionado PL
poderá produzir efeitos que atacariam diretamente o bem-viver dos povos que
tradicionalmente ocupam tais territórios, bem como da humanidade, que seria
impactada futuramente com o desequilíbrio ambiental provocado pela morte da
biodiversidade, elemento ainda resguardado por povos indígenas através da
gestão ambiental e territorial de suas terras. A votação mencionada também
evidencia uma verdadeira “corrida”, encabeçada pela bancada ruralista, para
institucionalizar a tese do Marco Temporal, tendo em vista que o RE
1017365 tem previsão para retomada de votação no dia 07 de junho pelo
Supremo Tribunal Federal (STF).
Tal cenário, foi ainda composto pela votação, em
Comissão Mista, de um relatório que alteraria a MP 1154/2023, sendo um dos pontos
mais controversos do documento a retirada da atribuição da função de demarcar
Terras Indígenas (TI) do Ministério dos Povos Indígenas (MPI), atribuindo tal
competência novamente ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (MPSP).
No mês de abril de 2023, pude acompanhar na cidade
de Brasília as movimentações e demandas relativas ao chamado Abril Indígena,
mês dedicado à mobilização em prol de demandas relativas a Direitos dos Povos
Indígenas e também de celebração às suas históricas resistências e conquistas
políticas. Tudo parecia muito próspero, digo isso, pois assiduamente acompanhei
eventos promovidos pelo MPI para divulgação de suas projeções de trabalho nos
meses que se seguiriam, também estive presente na 19ª edição do Acampamento
Terra Livre (ATL), que neste ano trouxe o mote “O futuro
indígena é hoje: sem demarcação, não há democracia”, entre outros eventos
ocorridos na Câmara dos Deputados, como reuniões da Comissão da Amazônia e dos
Povos Originários e Tradicionais, e o lançamento da Frente Parlamentar Mista em
Defesa dos Povos Indígenas.
A todo momento, evidenciava-se que os aparentes avanços não estavam dissociados
da luta, luta esta que, para além de objetivar direitos, buscava a
transformação da política indigenista, feitas por não-indígenas na pretensão de
falar por estes povos, em políticas indígenas, realizadas e constituídas por e
para povos indígenas desde seu princípio. Contudo, de alguma forma, eu como um
mero apoiador e observador das demandas indígenas, pensava que o “aldear a
política” estava mais estabelecido do que ele realmente se mostraria com os
potenciais desmontes que passam a se desenhar. Pela primeira vez, em 523 anos,
temos um Ministério voltado à atender especificamente as demandas dos mais de
300 povos indígenas que vivem no que hoje compreendemos como Brasil, no entanto,
devo frisar que tal medida institucional por si só não foi capaz de frear as
ofensivas do agronegócio tanto em terras quanto na arena política.
Se por um lado, há um grupo que deseja aldear a
política, por outro, existe uma parcela de congressistas que desejam commodificar a
política. A ideia de commodificação da natureza, versaria
sobre aquilo que os professores Valter Lúcio de Oliveira e Ève Anne Buhler
(2016, p. 273) pontuaram como sendo “uma dinâmica de apropriação privada dos
recursos naturais, processo que, em regiões de fronteira agrícola, se dá de
forma frequentemente fraudulenta e conflitiva. Aspectos da natureza que
aparentemente seriam inalienáveis, como o clima, a chuva, o relevo, são
incorporados ao mercado fundiário e, nesse processo, se transformam em
mercadoria.”, com base no que já expunha Noel Castree. Commodificar a
política, portanto, não seria um conceito sobre o movimento que o agronegócio
realiza ao ocupar espaços no Congresso Nacional, na realidade, este movimento
seria um dos instrumentos utilizados por este grupo para legitimar a dinâmica
de commodificação da natureza. Contudo, aqui peço licença aos
professores Oliveira e Bühler, para deslocar a expressão e utilizar o “commodificar”
a política em oposição ao “aldear”.
Esta commodificação da Política não
se consuma apenas nas ações estritas de congressistas que sejam fazendeiros,
mas também são cristalizadas nos pronunciamentos de deputados que coadunam com
os interesses destes grupos. A sobreposição da exploração econômica em face das
cosmovisões indígenas e dos limites socioambientais puderam ser vistas em
diversas ocasiões, como foi o caso presenciado na reunião da Comissão da
Amazônia e dos Povos Originários e Tradicionais, ocorrida no Plenário 12 do
Anexo II da Câmara dos Deputados, no dia 18 de Abril de 2023, que contou com a
presença da ministra Sônia Guajajara para apresentação do plano de trabalho do
MPI, sendo ela questionada sobre a necessidade de “tornar terras indígenas
produtivas” por um dos deputados que compunham a comissão, conforme transcrito
a seguir
“Dar aos povos indígenas o direito de explorar suas
terras, de dar o direito aos povos indígenas de fazer com que as suas terras se
tornem terras produtivas. Nós sabemos muito bem do potencial econômico que tem
Roraima, a exemplo, Roraima tem mais de R$3 bilhões de reais embaixo de suas
terras, terras indígenas e que não podem ser exploradas e que deveriam ser
exploradas. Por que eu estou dizendo isso? Porque esses mesmos indígenas’tão’
passando por situações muito difíceis econômicas, passando por necessidades que
só o dinheiro pode comprar, porque tudo é o dinheiro…” (Zé Trovão, Deputado
Federal pelo PL/SC)
Esta apropriação da natureza sob a ótica da
mercadoria tem sido uma premissa comum a diversas movimentações políticas que
objetivam autorizar a entrada e exploração de riquezas em terras indígenas, a
exemplo do PL 191/2020. O que os defensores destas proposições trazem em comum
é o discurso de mercantilização da natureza e uma espécie de salvacionismo
barato ancorado na ideia de “produtividade”, mas o que ignoram é a escuta às
demandas dos movimentos indígenas organizados e as respectivas cosmovisões
destes povos, além disso, ignoram o alerta já trazido pelos indígenas, como
posso exemplificar ao citar a potência discursiva de Davi Kopenawa
Yanomami e Ailton Krenak, sobre a impossibilidade de se vislumbrar um
futuro sem que os limites da terra sejam respeitados.
Os trabalhos do MPI se projetam de maneira
transversal, isto é, dialogando também com outros ministérios, como por
exemplo, o Ministério do Meio Ambiente, atualmente sob comando da ministra
Marina Silva, e que também foi atingido pelo relatório que altera a MP
1154/2023. Durante o mês de Abril, os eventos promovidos pelo MPI enfatizaram a
necessidade de demarcação de Terras Indígenas para a garantia do bem-viver
destas pessoas, bem como para a garantia de prerrogativas ambientais e
climáticas em níveis nacional e internacional.
Em diálogo com a Secretária de Gestão Ambiental e
Territorial Indígena do MPI, Maria da Conceição Alves Feitosa Pitaguary,
perguntei sobre os desafios inerentes à retomada da Política Nacional de Gestão
Ambiental e Territorial Indígena (PNGATI) e a demarcação de TI no atual
cenário. Maria da Conceição me respondeu que não devemos observar tais pontos
como questões apartadas. Ela disse,
“São desafios que continuam, por isso nós atrelamos
a demarcação à gestão ambiental, para elas trabalharem juntas. Não é ‘primeiro
demarca e depois faz gestão’, ou então ‘faz gestão e depois demarca’, não, é
para caminhar junto. A gestão ambiental dá força para a demarcação e a
demarcação dá força para a gestão ambiental. […] Outro grande desafio também
consiste em fazermos a discussão da Gestão Ambiental atrelada às mudanças
climáticas, também pensar nos biomas como um complementando o outro para
promover o equilíbrio ambiental, fazer com que os gestores e os governantes
entendam isso, entendam essa contribuição que as terras indígenas já deram ao
longo do tempo e recompensá-las por isso.” (Maria da Conceição Alves Feitosa
Pitaguary, Secretária de Gestão Ambiental e Territorial Indígena do MPI)
Deste modo, as questões ambientais e climáticas
perpassam não apenas as cosmovisões indígenas e os diálogos interministeriais
sobre a pauta, mas não se deve obstar a contribuição das Terras Indígenas para
o equilíbrio ambiental nos âmbitos local, regional e mundial, conforme elucida
Maria da Conceição em sua fala.
De acordo com o informativo publicado no ano de
2021, Los pueblos
indígenas y tribales y la gobernanza de los bosques – Una oportunidad para la
acción climática en Latina América y el Caribe, produzido pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e
Agricultura (FAO) e pelo Fundo para o Desenvolvimento dos Povos Indígenas da
América Latina e do Caribe (FILAC), as florestas localizadas em territórios
indígenas possuem papel crucial na estabilização do clima, pois elas
armazenariam, aproximadamente 34 bilhões de toneladas métricas de carbono (o
equivalente a quase 30% do carbono em florestas tropicais da América Latina e
14% do carbono em florestas tropicais em escala mundial). Tais índices correm
sério risco de decréscimo em um cenário onde políticas que visam flexibilizar o
acesso do agronegócio e da mineração, por exemplo, a áreas compreendidas como
Terras Indígenas sejam aprovadas, o que impactaria diretamente na
qualidade de vida da população mundial.
A batalha entre o “aldear” e o “commodificar”
revela, em primeiro plano, um confronto direto entre um projeto de diálogo com
a natureza, no sentido de compreensão e identificação de seus limites e
possibilidades, e um projeto de exploração indiscriminada de seu potencial
mercadológico. O que se obscurece, em um segundo plano, talvez seja a dimensão
ainda mais nociva intrínseca a esta batalha, a tentativa de se passar um
projeto de reprodução de ditames coloniais que extrapolam temporalmente o
período do colonialismo, isto é, a commodificação também traz consigo a
reprodução de um projeto moderno de descredibilização de saberes,
subjetividades e modos de vida. Todavia, esquece-se que sem a manutenção da
vida não há futuro possível.
Portanto, assegurar os modos de vida e o direito
tradicional ao território dos povos indígenas não se mostra como uma questão unicamente
política, mas sim, como uma questão humanitária. Para além do devido
reconhecimento da vinculação dos povos indígenas para com o lugar onde
nasceram, cresceram, exercem sua fé e enterram seus ancestrais, devemos nos
atentar à segurança que estes povos oferecem à humanidade através da
preservação e respeito à biodiversidade, pilar fundamental para a existência da
vida em sentido amplo.
Até que se prove o contrário, a vida precede
qualquer criação humana e enquanto ela estiver ameaçada, todo e qualquer anseio
de futuro também estará.
Fonte: Por Marcello Amorim Vieira, no Le Monde
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