quinta-feira, 27 de abril de 2023

Terrorismo à brasileira

O Senado brasileiro retomou no início de 2023 as discussões sobre a possibilidade de se considerar que grandes organizações criminosas no país passem a ser classificadas como grupos terroristas.  O PL 3.283/2021 foi apresentado pelo senador Styvenson Valentim (Podemos-RN). O PL altera a lei antiterrorismo, a lei antidrogas, a lei das organizações criminosas, e o Código Penal para equiparar as ações de grupos criminosos organizados à atividade terrorista.

Apesar da discussão já estar em pauta há pelo menos quatro anos no Congresso nacional, o tema voltou a ganhar tração pelas recentes ondas de violência no Rio Grande do Norte, quando a Polícia Federal, inclusive, teria prendido membros do Primeiro Comando da Capital (PCC) por supostamente planejarem atentados contra autoridades políticas.

A mudança no arcabouço legal do país, apoiada por figuras como os senadores Sergio Moro e Jorge Kajuru, é bastante clara: por se tratarem de organizações complexas, operando em diversos países e com capilaridade no sistema prisional, grandes grupos narcotraficantes deveriam ser enquadrados juridicamente de forma mais repressiva. Garantias legais usufruídas pelos “criminosos tradicionais”, como relaxamento de pena, visitas íntimas e outras ações, não seriam estendidas para tais grupos excepcionais, que teriam suas punições aumentadas e o esquema de detenção, como regimes semiabertos, dificultados.

O Brasil, contudo, não está inaugurando tal estratégia e a comparação com países que realizaram esse movimento de “ampliação da nomeação do terrorismo” dão indicativos que sua eficácia é bastante controversa. Nações tão diversas como ColômbiaÍndia Líbano tentaram implementar políticas parecidas  nas últimas décadas com resultados catastróficos para populações mais frágeis, além de não melhorarem indicadores de violência e, em alguns casos, até mesmo pioraram sua situação. Pesquisas recentes demonstram que, por exemplo, o Estado indiano é mais letal contra grupos considerados terroristas, com registros de execuções sumárias e prisões ilegais de ativistas que foram assim classificados. Por outro lado, os índices de atentados no país passaram a diminuir após o investimento em inteligência e não em forças repressivas.

A insistência do termo como ferramenta de nomeação de inimigos, contudo, é bastante simples: o terrorismo como ideia política é um dos conceitos mais mutáveis e variáveis do sistema internacional. Apesar de ser entendido, de forma ampla, como atos de violência que têm civis como alvo e que buscam objetivos políticos ou ideológicos, a comunidade internacional não compartilha uma definição amplamente aceita sobre o termo. Nessa lógica, cada país acaba por enquadrar grupos como “terroristas” de forma essencialmente política, indicando determinado grupo como tal sem efetivamente existir uma metodologia clara. O “terrorista” é efetivamente um significante vazio, na medida em que dentro do termo podem ser enquadrados os mais distintos coletivos.

A questão ganha nuances ainda mais complexas ao se levar em conta que mais do que um conceito etéreo, a gramática do terror autoriza e facilita que forças estatais cometam ações de repressão com respaldo público. Pesquisas sobre o terrorismo como fenômeno político apontam distintas ondas dessa prática, passando por coletivos anarquistas na Rússia Czarista a grupos separatistas na Espanha e na Grã Bretanha. Após os ataques de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, o termo passou a ser atrelado ao fundamentalismo islâmico e grupos armados no Oriente Médio e no norte da África. A Guerra Global ao Terrornesse contexto, representou um conflito sem fronteiras, contra grupos que ameaçavam, pelo menos discursivamente, pautas básicas para o Ocidente, como democracia e direitos humanos. O terrorista, agora, se transforma em uma figura fantasmagórica, presente em países que parte importante da população estadunidense não conseguiria apontar em um mapa, mas que ameaça a existência do Estado a todo momento.

Não surpreende, que a principal ferramenta para lidar com essa ameaça foi um conjunto de regras que efetivamente indicavam que essa figura inimiga deveria ser tratada fora das regras normais: o decreto Ato Patriota deu poderes ao então presidente George W. Bush Filho para enfrentar tais grupos armados, o inimigo absoluto, sem precisar respeitar normas constitucionais dos EUA. É nesse contexto em que se realizam os chamados interrogatórios forçados, definidos como tortura por grupos de proteção dos Direitos Humanos, ou mesmo a manutenção de uma prisão ilegal em Guantánamo, onde presos podem ficar décadas sem serem acusados formalmente de crime algum. Esse conjunto de práticas gerou reação em diversos locais no mundo, como no Egito e na Indonésia, onde lideranças se aproveitaram da comoção global para também enquadrar grupos rivais como terroristas e, assim, respeitarem ainda menos as normas internas. O terrorismo, no contexto moderno, é o que os Estados escolhem que é.

·         Brasil

A lógica dupla do terrorismo como um significante vazio, mas ao mesmo autorizador de medidas extremas, ganha nuances ainda mais problemáticas ao voltarmos nosso olhar para o contexto brasileiro. O país usou o termo de forma ampla, pela última vez, durante a Ditadura Militar, quando o governo autoritário definia assim grupos de resistência ao regime, com as sabidas consequências trágicas para o respeito aos Direitos Humanos. O termo ficou restrito aos meios de segurança após o fim do governo militar e, nos anos 1990 e 2000, o país resistiu em definir de maneira clara o conceito: tanto Fernando Henrique Cardoso quanto Lula sofreram pressão dos EUA para enquadrar o país na agenda, mas apontaram que não se tratava de uma prioridade para o governo. O país acabou criando uma lei antiterror no governo de Dilma Rousseff, em 2016, no contexto dos grandes eventos que o Brasil abrigaria, como as Olimpíadas e a Copa do Mundo de futebol. A justificativa era que o país receberia delegações de todo o mundo e precisaria de um arcabouço jurídico para enfrentar possíveis ameaças.

A lei antiterror brasileira é bastante elusiva, com definições bastante amplas e abrindo margem para que movimentos sociais sejam enquadrados como grupos terroristas. Apesar de um adendo posterior que indicava que coletivos sociais não poderiam ser enquadrados como tais organizações, não há garantias de que isso não possa ocorrer. Em um país que possui uma das polícias mais letais do mundo e onde as Forças Armadas operam de forma cada vez mais ampla como agentes de segurança pública, é temerária mais uma movimentação que expande a conceituação do terrorismo, que pode servir como elemento que facilite, ainda mais, operações violentas. O tiro ainda pode sair pela culatra: pesquisas sobre mídia e terrorismo demonstram que o enquadramento pode ajudar grupos criminosos a aumentar sua notoriedade e alcança, fazendo com que sejam vistos como mais fortes do que realmente são.

Após quatro anos de um governo que flertou com o autoritarismo, o Brasil retoma a tentativa de pautar as ações pela legalidade e no combate a violências políticas e crimes contra a democracia, como na invasão de Brasília em 8 de janeiro. É temerária que, nesse contexto, grupos políticos decidam pela criação de novas ferramentas repressivas que podem agravar ainda mais o quadro de instabilidade do país.

 

Fonte: Por Fernando Brancoli, no Le Monde

 

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