‘Os líderes
políticos estão mais interessados em ouvir a si mesmos’, afirma professor
espanhol
O
professor espanhol Jaime Rodriguez–Arana dedicou a sua carreira ao ensino e à
investigação do Direito Administrativo. Hoje, ele é diretor de Pesquisa em
Direito Público Global da Universidade da Corunha, na Espanha, presidente do
Foro Ibero-americano de Direito Administrativo e da Associação Espanhola de
Ciências Administrativas.
Contudo,
mais do que um especialista mundialmente renomado nesta área, Rodriguez–Arana é
um pensador contemporâneo capaz de refletir sobre áreas que afetam a humanidade
desde os primórdios, como a ética e a corrupção, até sobre tendências atuais
que levam o mundo para fronteiras perigosas, como a polarização política e o
que ele chama de “ideologias fechadas”.
“Uma
das características do panorama político atual é a radicalização e a
polarização. É um sistema de pensamento sem abertura para o contraditório”, diz
o professor, em entrevista exclusiva ao jornal A TARDE. Rodriguez–Arana esteve
em Salvador, no início deste mês de abril, para participar das comemorações dos
57 anos de fundação da Procuradoria-Geral do Estado. Conheça mais do pensamento
do professor espanhol na entrevista que segue.
·
O senhor defende que, hoje, a administração pública de
forma geral não atende verdadeiramente os interesses dos cidadãos. Porque todo
cidadão tem direito a uma boa administração pública?
A
reflexão atual que existe em todo mundo sobre o direito a uma boa administração
é consequência da projeção de um modelo de Estado Social e Democrático de
Direito. Este modelo tem por princípio central a definição de que a vontade do
cidadão é soberana. Políticos e funcionários não são nada mais, nada menos, do
que administradores e gestores do interesse geral. Nesse sentido, têm que
prestar contas permanentemente de como gerem aquilo que não é seu, mas do povo.
Na Europa, temos a Carta Europeia dos Direitos Humanos, de setembro de 2000. Na
América, temos a Carta Ibero-Americana de Direitos e Deveres do Cidadão em
relação à Administração Pública, aprovada em 2013 pelo Centro Latino-Americano
de Administração de Desenvolvimento. Essas cartas reconheceram o respeito
a esse direito de todo cidadão como fundamental para uma boa administração
pública. Isso implica numa certa revolução na maneira clássica e tradicional de
se entender a relação entre o cidadão e o Estado. O entendimento é que o
cidadão quem manda, é o cidadão quem tem o poder, e a administração está a sua
disposição. Mas, para que isso aconteça, é preciso que todos nós estejamos
muito conscientes desse poder que temos. E, nesta perspectiva, acredito que o
mundo está em uma situação complicada. Falo do Brasil, Europa, África, Ásia...
Estamos todos atravessando uma crise de grande envergadura. Mas, pelo menos, é
interessante recordar os elementos básicos da democracia, como essa limitação
do poder.
·
O que é preciso fazer para que esse interesse público
seja atendido pelas administrações?
Na
Europa, como consequência da Revolução Francesa de 1789, temos entendido que o
interesse geral é um conceito muito mais amplo do que interesse público, que
pode ser o interesse de um ministério, de um coletivo de funcionários, de um
sindicato. Já o interesse geral é o interesse de todos e de cada um dos membros
da comunidade enquanto tais. E a administração pública, do Estado, do
Município, tem a obrigação de governar para todas as pessoas. Não somente nas
pessoas que votaram no governo. Tem que fazer esforço para implementar
políticas públicas de proteção, defesa e promoção dos direitos humanos de todas
as pessoas. Essa questão é de grande atualidade e permite também revisar as
formas que muitos governos no mundo funcionam. Porque governar não é olhar
apenas para as pessoas que votaram nele. Mas isso depende da capacidade dos
governantes de compreender como funciona a própria democracia. O que estamos
olhando em várias partes do mundo não é uma democracia real. Apenas formal, mas
não real.
·
O senhor também defende que a boa administração coloca
as pessoas e seus direitos fundamentais no centro do sistema. Como focar no ser
humano na prática?
Não
é fácil, mas nós sabemos que o Direito Administrativo é um direito de
realização concreta. Otto Mayer, um professor alemão muito importante dos anos
de 1920, 30, dizia que o Direito administrativo é um Direito constitucional
definido, pormenorizado. Isso quer dizer que teremos que aterrissar na
realidade todas essas considerações. Poderíamos começar elegendo políticas
públicas concretas. Dentre as quais o cidadão estando presente na definição e
valoração das políticas públicas. Para isso, o poder, o governo, a
administração pública precisam consultar mais a população antes de tomar uma
decisão. Além disso, as políticas implementadas precisam ser avaliadas com
participação social. Não é tão difícil. Há governos no mundo que agem dessa
forma e outros que não. Por exemplo, eu cheguei ao Brasil pela primeira vez, em
1994, em Curitiba. Fui algumas vezes lá porque tenho uma relação muito especial
com o catedrático da universidade local, o professor Romeu Felipe Bacellar
Filho. E lá compreendi que, se não há participação social nas políticas
públicas, essas políticas são autoritárias e tecnocráticas. Sejam elas
políticas educativas, de transporte... O fato é que precisamos nos perguntar
como consultar o cidadão antes de certas decisões. Não defendo aqui uma
autogestão, porque é muito complicado, e pelo menos na Europa não produziu
resultados. Mas creio que faz sentido dar participação real ao cidadão.
Os governos precisam encontrar as melhores fórmulas para assegurar essa
participação efetiva.
·
O senhor disse que visita o Brasil desde 1994. Dá para
fazer uma comparação da efetividade das políticas públicas de democracias mais
maduras, como as dos países da Europa Ocidental, com as mais novas, a exemplo
da brasileira?
Como
europeu tenho que dizer que nós atravessamos, já há algum tempo, uma crise
profunda do sistema política que tem a ver com as nossas raízes culturais. Que
tem três origens: o Direito de Roma, a Justiça; o pensamento da Grécia, o
sentido das coisas; e a solidariedade cristã de Jerusalém. O Direito, o
pensamento e a solidariedade permearam uma cultura que, durante séculos, tem
sido muito importante. É desta cultura que nasce a democracia. E a democracia
tem como elemento básico a limitação de poder. Mas, na Europa, vemos que o
poder se concentra de todas as formas. Temos a concentração do poder político,
financeiro, econômico, midiático, acadêmico... É uma tendência de concentração
preocupante porque, com ela, desaparecem os pesos e contrapesos. A teoria da
separação dos poderes de Montesquieu, por exemplo, vem perdendo força a cada
dia. E isso é grave. A tendência do Poder Executivo é controlar o Legislativo e
o Judiciário. E, se não há um espaço para que cada Poder exerça suas
funções de forma autônoma, nós não temos uma democracia.
·
O que mais diferencia a democracia formal da real?
Eu
recordo que na Alemanha nazista houve essa mesma discussão, nos anos de
1930 e 40, no Direito constitucional, onde se discutia o contraponto entre a
democracia formal e a democracia real. Mas o fato é que estamos concentrando
poder cada vez mais nos últimos anos. E, nos últimos anos, nós, cidadãos,
estamos ausentes porque nos disseram: “Não precisa se preocupar, nós nos
encarregamos de tudo”. De fato, as pessoas não participam. E não falo
especificamente do Brasil. Porque no Brasil há uma participação do ponto de
vista forma relevante como foi demonstrado na última eleição. Mas é importante
que essa participação não fique restrita à eleição. Essa participação tem que
se realizar durante o governo. Não podemos pensar que a participação popular é
só o voto na urna. Essa é apenas uma expressão formal da democracia.
·
Por tudo que o senhor está explicando, só a democracia
representativa não é suficiente. Como, então, aproximar o cidadão do Estado?
Esta
é uma questão muito difícil. Minhas análises e minhas reflexões foram divididas
em quatro - participação vertical, participação induzida, participação fictícia
e participação real. Existem muitas normas jurídicas que tratam dessa
participação. Tenho um amigo que vive agora nos Estados Unidos porque não pode
morar em seu país natal, a Venezuela. E ele fala que na Venezuela há as ONGs,
as organizações não-governamentais, que conhecemos todos, e também as OMGs, as
organizações muito-governamentais (risos). Porque às vezes as sociedades civis
não têm pujança, não têm potência suficiente, e os políticos as controlam e dão
a entender que existe participação. Mas não existe. Precisamos resolver isto,
porque é uma questão que tem que ver com a liberdade das pessoas. A
participação ou é livre ou não é participação. E como fazer para participar
livremente? Isso exige uma qualidade democrático que temos que treinar, exercitar,
e praticá-la todos os dias. Seja no colégio, na universidade, na câmara do
comércio, no sindicato, na associação. Se a gente não praticar, ela vai
adormecendo. E se nós não exercemos essa liberdade alguém vai exercê-la por
nós. Não podemos ceder espaços. Existe o conceito de liberdade solidária.
Porque entendo que liberdade sem solidariedade não é liberdade. E solidariedade
sem liberdade não é solidariedade. Não é fácil.
·
Outra questão que preocupa o senhor, pelo que pude ler
dos seus artigos, é a polarização política, o radicalismo de pensamento. No
Brasil vivemos isso intensamente nos últimos anos. É uma questão de nossos
tempos?
Se
olharmos para o que está acontecendo na Europa, na América, lamentavelmente
temos que dizer que sim. Uma das características do panorama político é a
radicalização e polarização. Porque está vencendo o que chamo de ideologias
fechadas. Um sistema de pensamento sem abertura para o contraditório. Também
falo muito em meus artigos sobre “pensamento aberto”, “metodologia do entendimento”
e “sensibilidade social”. Sou professor, mas no passado exerci funções
políticas e escrevi um livro chamado “O espaço do Centro”, prefaciado por
Adolfo Suárez, que foi o presidente que levou a democracia para Espanha. E
sempre defendi que a ideologia fechada e o pensamento único são muito perigosos
porque empobrecem o debate político. E, afinal, não são mais do que expressões
do populismo. Que pode ser de um lado e do outro. O populismo é uma ideologia
fechada, que teme o contraditório, teme a liberdade, o diálogo. E o que o mundo
precisa hoje é de mais diálogo, de uma maior capacidade de entendimento,
mais educação. Porque as sociedades só dialogam quando são cultas. Então, temos
um déficit de moderação no debate político.
·
O senhor considera que as novas tecnologias, as redes
sociais, contribuem para esse pensamento fechado?
Totalmente.
Há uma ideia, para mim errada, de que as redes sociais fomentam o
pluralismo. Muitos grupos, muitas formas de se expressar nas redes sociais
seguem todas na mesma linha, na mesma direção. E quando tem alguém na outra
direção se cancela, o que é algo terrível, mas real. A cultura do cancelamento
é o fracasso do pensamento aberto, plural, dinâmico e complementar. É preciso
que as escolas, as universidades, as famílias promovam um ambiente de respeito
ao contraditório. Temos visões diferentes a respeito da realidade e da vida,
mas temos que respeitá-las e temos que nos entender.
·
Essas questões que o senhor coloca explicam o retorno
da extrema-direita em países como a Itália, a Hungria e mesmo o Brasil?
Sim,
tanto a extrema-direita como a extrema-esquerda voltaram com força. Isso se
explica também porque os líderes políticos dialogam pouco, se fecham em suas
posições. Para mim não há nada mais triste quando há eleições e debates na TV,
e fica comprovado que os líderes políticos não dialogam entre si. Eles estão
mais interessados em escutar a si mesmos. Nos parlamentos muitas vezes acontece
o mesmo. E os parlamentos deveriam ser centros do debate político. Mas muitas
vezes se converte num espaço de frivolidade, onde não se discute a fundo os
problemas que afetam a população e se perdem em questões sem importância.
·
Aqui no Brasil, recentemente chamaram muito atenção os
atos golpistas do último dia 8 de janeiro, quando houve a depredação dos
prédios dos três poderes em Brasília. Como o senhor viu isso?
Foram
atos deploráveis e muito tristes. Eu posso compreender que os grupos tenham
suas ideias, suas posições, mas precisam expressá-las com serenidade e num
ambiente de convivência pacífica. E quando se rompe a serenidade e se promove
esse tipo de ato violento está fracassando a democracia.
·
O senhor já afirmou que a corrupção é inerente à
condição humana. Qual é a chave para acabar com a corrupção? Isso é possível?
Se
eu tivesse esta chave estaria navegando na abundância (risos). A corrupção, no
sentido amplo, é a expressão da desnaturalização do poder. Se pensarmos no
poder político, no poder público, ele é o instrumento para gerar bem-estar para
a comunidade. Quando a corrupção está presente, o poder é para pequenos grupos,
familiares, agregados, partidos políticos, adeptos. E o poder não cumpre a sua
função constitucional. Como se pode combater a corrupção? Aí entra o direito
penal e o direito administrativo. Sou diretor da escola de administração
pública da Espanha e nossa orientação é levar os programas de ética para função
pública. Porque a dimensão preventiva da corrupção implica que se assuma
princípios republicanos, democráticos e éticos. Não apenas como algo que deve
ser um pressuposto, mas como algo possível de realizar. Afinal, a ética não é
apenas um conceito, mas algo concreto que é possível de se colocar em prática.
As pessoas que estão na administração pública do Estado têm uma nobre função
que é representar os interesses gerais. A mais alta preparação técnica não é
suficiente se falta compromisso ético.
·
A ética, professor, é uma questão que se transforma à
medida que a sociedade avança. Como o senhor avalia a questão ética nos dias de
hoje?
É
uma questão permanente da história da humanidade. O império romano, sobretudo
nos momentos finais, teve muitos problemas, e uma corrupção galopante. Mas,
hoje em dia, creio que experimentamos esses problemas com mais intensidade do
que no passado. A força que tem a busca do poder pelo poder. Os
narcotraficantes, por exemplo, podem fazer as coisas mais inverossímeis para
escalar uma posição. O poder tem uma atração que sempre esteve presente na
humanidade, uma atração para todos os cidadãos. Como o dinheiro, que é um
elemento que sempre teve grande importância e é natural que isso aconteça. Mas
o problema é quando o dinheiro é um fim em si. O dinheiro é muito importante,
mas deve ser um meio e não um fim. Outro elemento, e você que trabalha na
imprensa compreende bem, é o poder da notoriedade, a fama. Quantos políticos e
altos funcionários, por causa da notoriedade, da fama, são capazes de fazer
coisas inconfessáveis? O dinheiro e a fama fazem parte do desejo das pessoas,
que precisam administrá-la com critérios, responsabilidade. E recuperando uma
palavra da filosofia grega, com prudência. O que precisamos agora são pessoas,
na política e administração pública, prudentes.
·
Já que estamos tratando de líderes imprudentes, queria
que o senhor falasse um pouco sobre o fantasma da ameaça nuclear que voltou a
assombrar o mundo com a guerra da Ucrânia. Como o senhor analisa esse cenário
global do ponto de vista do Direito Administrativo Internacional?
Inevitavelmente
essa pergunta me traz à mente algo que estamos sempre estudando, que é o fenômeno
da globalização, o direito administrativo global. E, claro, a globalização vem
se ensejando em muitas áreas, não só as que você mencionou como a guerra, a
ameaça nuclear. Têm também as questões de imigração, as esportivas. Imagine que
estamos no Brasil, o país de futebol. Temos os problemas das associações e
federações internacionais de futebol. As questões de saúde internacional,
regidos pela Organização Mundial de Saúde. Estamos cheios de assuntos
internacionais que precisam ser regulados. A Internet, por exemplo. A
inteligência artificial, que está chegando. O Direito tem esse papel de
regular. E quando o deixamos o Direito fora, há muitos problemas. Porque o
Direito garante que essas decisões serão tomadas baseadas em parâmetros de
Justiça. Como jurista, entendo que o grande desafio que temos na humanidade é
colocar o Direito no lugar que lhe corresponde. E nós todos vamos precisar
trabalhar para que assim seja. E denunciar quando o Direito for excluído,
porque senão vamos repetir caminhos terríveis. Todos nós lembramos do que
aconteceu na Segunda Guerra Mundial. E sabemos que só somos capazes de manejar
as relações internacionais com o Direito. Pode ser até uma posição ingênua, mas
não estou de acordo com a ideia segundo a qual as relações entre os países são
regidas apenas pelos interesses comerciais, políticos e econômicos. Essas
relações também devem ser regidas pelo Direito. Ou são apenas interesses que
podem provocar graves consequências.
Fonte:
A Tarde
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