terça-feira, 25 de abril de 2023

‘Os líderes políticos estão mais interessados em ouvir a si mesmos’, afirma professor espanhol 

O professor espanhol Jaime Rodriguez–Arana dedicou a sua carreira ao ensino e à investigação do Direito Administrativo. Hoje, ele é diretor de Pesquisa em Direito Público Global da Universidade da Corunha, na Espanha, presidente do Foro Ibero-americano de Direito Administrativo e da Associação Espanhola de Ciências Administrativas. 

Contudo, mais do que um especialista mundialmente renomado nesta área, Rodriguez–Arana é um pensador contemporâneo capaz de refletir sobre áreas que afetam a humanidade desde os primórdios, como a ética e a corrupção, até sobre tendências atuais que levam o mundo para fronteiras perigosas, como a polarização política e o que ele chama de “ideologias fechadas”.

“Uma das características do panorama político atual é a radicalização e a polarização. É um sistema de pensamento sem abertura para o contraditório”, diz o professor, em entrevista exclusiva ao jornal A TARDE. Rodriguez–Arana esteve em Salvador, no início deste mês de abril, para participar das comemorações dos 57 anos de fundação da Procuradoria-Geral do Estado. Conheça mais do pensamento do professor espanhol na entrevista que segue.

·         O senhor defende que, hoje, a administração pública de forma geral não atende verdadeiramente os interesses dos cidadãos. Porque todo cidadão tem direito a uma boa administração pública?

A reflexão atual que existe em todo mundo sobre o direito a uma boa administração é consequência da projeção de um modelo de Estado Social e Democrático de Direito. Este modelo tem por princípio central a definição de que a vontade do cidadão é soberana. Políticos e funcionários não são nada mais, nada menos, do que administradores e gestores do interesse geral. Nesse sentido, têm que prestar contas permanentemente de como gerem aquilo que não é seu, mas do povo. Na Europa, temos a Carta Europeia dos Direitos Humanos, de setembro de 2000. Na América, temos a Carta Ibero-Americana de Direitos e Deveres do Cidadão em relação à Administração Pública, aprovada em 2013 pelo Centro Latino-Americano de Administração de Desenvolvimento.  Essas cartas reconheceram o respeito a esse direito de todo cidadão como fundamental para uma boa administração pública. Isso implica numa certa revolução na maneira clássica e tradicional de se entender a relação entre o cidadão e o Estado. O entendimento é que o cidadão quem manda, é o cidadão quem tem o poder, e a administração está a sua disposição. Mas, para que isso aconteça, é preciso que todos nós estejamos muito conscientes desse poder que temos. E, nesta perspectiva, acredito que o mundo está em uma situação complicada. Falo do Brasil, Europa, África, Ásia... Estamos todos atravessando uma crise de grande envergadura. Mas, pelo menos, é interessante recordar os elementos básicos da democracia, como essa limitação do poder.

·         O que é preciso fazer para que esse interesse público seja atendido pelas administrações?

Na Europa, como consequência da Revolução Francesa de 1789, temos entendido que o interesse geral é um conceito muito mais amplo do que interesse público, que pode ser o interesse de um ministério, de um coletivo de funcionários, de um sindicato. Já o interesse geral é o interesse de todos e de cada um dos membros da comunidade enquanto tais. E a administração pública, do Estado, do Município, tem a obrigação de governar para todas as pessoas. Não somente nas pessoas que votaram no governo.  Tem que fazer esforço para implementar políticas públicas de proteção, defesa e promoção dos direitos humanos de todas as pessoas. Essa questão é de grande atualidade e permite também revisar as formas que muitos governos no mundo funcionam. Porque governar não é olhar apenas para as pessoas que votaram nele. Mas isso depende da capacidade dos governantes de compreender como funciona a própria democracia. O que estamos olhando em várias partes do mundo não é uma democracia real. Apenas formal, mas não real.

·         O senhor também defende que a boa administração coloca as pessoas e seus direitos fundamentais no centro do sistema. Como focar no ser humano na prática?

Não é fácil, mas nós sabemos que o Direito Administrativo é um direito de realização concreta. Otto Mayer, um professor alemão muito importante dos anos de 1920, 30, dizia que o Direito administrativo é um Direito constitucional definido, pormenorizado. Isso quer dizer que teremos que aterrissar na realidade todas essas considerações. Poderíamos começar elegendo políticas públicas concretas. Dentre as quais o cidadão estando presente na definição e valoração das políticas públicas. Para isso, o poder, o governo, a administração pública precisam consultar mais a população antes de tomar uma decisão. Além disso, as políticas implementadas precisam ser avaliadas com participação social. Não é tão difícil. Há governos no mundo que agem dessa forma e outros que não. Por exemplo, eu cheguei ao Brasil pela primeira vez, em 1994, em Curitiba. Fui algumas vezes lá porque tenho uma relação muito especial com o catedrático da universidade local, o professor Romeu Felipe Bacellar Filho. E lá compreendi que, se não há participação social nas políticas públicas, essas políticas são autoritárias e tecnocráticas. Sejam elas políticas educativas, de transporte... O fato é que precisamos nos perguntar como consultar o cidadão antes de certas decisões. Não defendo aqui uma autogestão, porque é muito complicado, e pelo menos na Europa não produziu resultados. Mas creio que faz sentido dar participação real ao cidadão.  Os governos precisam encontrar as melhores fórmulas para assegurar essa participação efetiva.

·         O senhor disse que visita o Brasil desde 1994. Dá para fazer uma comparação da efetividade das políticas públicas de democracias mais maduras, como as dos países da Europa Ocidental, com as mais novas, a exemplo da brasileira?

Como europeu tenho que dizer que nós atravessamos, já há algum tempo, uma crise profunda do sistema política que tem a ver com as nossas raízes culturais. Que tem três origens:  o Direito de Roma, a Justiça; o pensamento da Grécia, o sentido das coisas; e a solidariedade cristã de Jerusalém. O Direito, o pensamento e a solidariedade permearam uma cultura que, durante séculos, tem sido muito importante. É desta cultura que nasce a democracia. E a democracia tem como elemento básico a limitação de poder. Mas, na Europa, vemos que o poder se concentra de todas as formas. Temos a concentração do poder político, financeiro, econômico, midiático, acadêmico... É uma tendência de concentração preocupante porque, com ela, desaparecem os pesos e contrapesos. A teoria da separação dos poderes de Montesquieu, por exemplo, vem perdendo força a cada dia. E isso é grave. A tendência do Poder Executivo é controlar o Legislativo e o Judiciário. E, se não há um espaço  para que cada Poder exerça suas funções de forma autônoma, nós não temos uma democracia. 

·         O que mais diferencia a democracia formal da real?

Eu recordo que na Alemanha nazista houve essa mesma  discussão, nos anos de 1930 e 40, no Direito constitucional, onde se discutia o contraponto entre a democracia formal e a democracia real. Mas o fato é que estamos concentrando poder cada  vez mais nos últimos anos. E, nos últimos anos, nós, cidadãos, estamos ausentes porque nos disseram: “Não precisa se preocupar, nós nos encarregamos de tudo”. De fato, as pessoas não participam. E não falo especificamente do Brasil. Porque no Brasil há uma participação do ponto de vista forma relevante como foi demonstrado na última eleição. Mas é importante que essa participação não fique restrita à eleição. Essa participação tem que se realizar durante o governo. Não podemos pensar que a participação popular é só o voto na urna. Essa é apenas uma expressão formal da democracia.

·         Por tudo que o senhor está explicando, só a democracia representativa não é suficiente. Como, então, aproximar o cidadão do Estado?

Esta é uma questão muito difícil. Minhas análises e minhas reflexões foram divididas em quatro - participação vertical, participação induzida, participação fictícia e participação real. Existem muitas normas jurídicas que tratam dessa participação. Tenho um amigo que vive agora nos Estados Unidos porque não pode morar em seu país natal, a Venezuela. E ele fala que na Venezuela há as ONGs, as organizações não-governamentais, que conhecemos todos, e também as OMGs, as organizações muito-governamentais (risos). Porque às vezes as sociedades civis não têm pujança, não têm potência suficiente, e os políticos as controlam e dão a entender que existe participação. Mas não existe. Precisamos resolver isto, porque  é uma questão que tem que ver com a liberdade das pessoas. A participação ou é livre ou não é participação. E como fazer para participar livremente? Isso exige uma qualidade democrático que temos que treinar, exercitar, e praticá-la todos os dias. Seja no colégio, na universidade, na câmara do comércio, no sindicato, na associação. Se a gente não praticar, ela vai adormecendo. E se nós não exercemos essa liberdade alguém vai exercê-la por nós. Não podemos ceder espaços. Existe o conceito de liberdade solidária. Porque entendo que liberdade sem solidariedade não é liberdade. E solidariedade sem liberdade não é solidariedade. Não é fácil. 

·         Outra questão que preocupa o senhor, pelo que pude ler dos seus artigos, é a polarização política, o radicalismo de pensamento. No Brasil vivemos isso intensamente nos últimos anos. É uma questão de nossos tempos?

Se olharmos para o que está acontecendo na Europa, na América, lamentavelmente temos que dizer que sim. Uma das características do panorama político é a radicalização e polarização. Porque está vencendo o que chamo de ideologias fechadas. Um sistema de pensamento sem abertura para o contraditório. Também falo muito em meus artigos sobre “pensamento aberto”, “metodologia do entendimento” e “sensibilidade social”. Sou professor, mas no passado exerci funções políticas e escrevi um livro chamado “O espaço do Centro”, prefaciado por Adolfo Suárez, que foi o presidente que levou a democracia para Espanha. E sempre defendi que a ideologia fechada e o pensamento único são muito perigosos porque empobrecem o debate político. E, afinal, não são mais do que expressões do populismo. Que pode ser de um lado e do outro. O populismo é uma ideologia fechada, que teme o contraditório, teme a liberdade, o diálogo. E o que o mundo precisa hoje é de mais diálogo, de uma maior capacidade de  entendimento, mais educação. Porque as sociedades só dialogam quando são cultas. Então, temos um déficit de moderação no debate político.

·         O senhor considera que as novas tecnologias, as redes sociais, contribuem para esse pensamento fechado?

Totalmente. Há uma ideia, para mim errada, de que  as redes sociais fomentam o pluralismo. Muitos grupos, muitas formas de se expressar nas redes sociais seguem todas na mesma linha, na mesma direção. E quando tem alguém na outra direção se cancela, o que é algo terrível, mas real. A cultura do cancelamento é o fracasso do pensamento aberto, plural, dinâmico e complementar. É preciso que as escolas, as universidades, as famílias promovam um ambiente de respeito ao contraditório. Temos visões diferentes a respeito da realidade e da vida, mas temos que respeitá-las e temos que nos entender.

·         Essas questões que o senhor coloca explicam o retorno da extrema-direita em países como a Itália, a Hungria e mesmo o Brasil?

Sim, tanto a extrema-direita como a extrema-esquerda voltaram com força. Isso se explica também porque os líderes políticos dialogam pouco, se fecham em suas posições. Para mim não há nada mais triste quando há eleições e debates na TV, e fica comprovado que os líderes políticos não dialogam entre si. Eles estão mais interessados em escutar a si mesmos. Nos parlamentos muitas vezes acontece o mesmo. E os parlamentos deveriam ser centros do debate político. Mas muitas vezes se converte num espaço de frivolidade, onde não se discute a fundo os problemas que afetam a população e se perdem em questões sem importância.

·         Aqui no Brasil, recentemente chamaram muito atenção os atos golpistas do último dia 8 de janeiro, quando houve a depredação dos prédios dos três poderes em Brasília. Como o senhor viu isso?

Foram atos deploráveis e muito tristes. Eu posso compreender que os grupos tenham suas ideias, suas posições, mas precisam expressá-las com serenidade e num ambiente de convivência pacífica. E quando se rompe a serenidade e se promove esse tipo de ato violento está fracassando a democracia.

·         O senhor já afirmou que a corrupção é inerente à condição humana. Qual é a chave para acabar com a corrupção? Isso é possível?

Se eu tivesse esta chave estaria navegando na abundância (risos). A corrupção, no sentido amplo, é a expressão da desnaturalização do poder. Se pensarmos no poder político, no poder público, ele é o instrumento para gerar bem-estar para a comunidade. Quando a corrupção está presente, o poder é para pequenos grupos, familiares, agregados, partidos políticos, adeptos. E o poder não cumpre a sua função constitucional. Como se pode combater a corrupção? Aí entra o direito penal e o direito administrativo. Sou diretor da escola de administração pública da Espanha e nossa orientação é levar os programas de ética para função pública. Porque a dimensão preventiva da corrupção implica que se assuma princípios republicanos, democráticos e éticos. Não apenas como algo que deve ser um pressuposto, mas como algo possível de realizar. Afinal, a ética não é apenas um conceito, mas algo concreto que é possível de se colocar em prática. As pessoas que estão na administração pública do Estado têm uma nobre função que é representar os interesses gerais. A mais alta preparação técnica não é suficiente se falta compromisso ético.

·         A ética, professor, é uma questão que se transforma à medida que a sociedade avança. Como o senhor avalia a questão ética nos dias de hoje?

É uma questão permanente da história da humanidade. O império romano, sobretudo nos momentos finais, teve muitos problemas, e uma corrupção galopante. Mas, hoje em dia, creio que experimentamos esses problemas com mais intensidade do que no passado. A força que tem a busca do poder pelo poder. Os narcotraficantes, por exemplo, podem fazer as coisas mais inverossímeis para escalar uma posição. O poder tem uma atração que sempre esteve presente na humanidade, uma atração para todos os cidadãos. Como o dinheiro, que é um elemento que sempre teve grande importância e é natural que isso aconteça. Mas o problema é quando o dinheiro é um fim em si. O dinheiro é muito importante, mas deve ser um meio e não um fim. Outro elemento, e você que trabalha na imprensa compreende bem, é o poder da notoriedade, a fama. Quantos políticos e altos funcionários, por causa da notoriedade, da fama, são capazes de fazer coisas inconfessáveis? O dinheiro e a fama fazem parte do desejo das pessoas, que precisam administrá-la com critérios, responsabilidade. E recuperando uma palavra da filosofia grega, com prudência. O que precisamos agora são pessoas, na política e administração pública, prudentes.

·         Já que estamos tratando de líderes imprudentes, queria que o senhor falasse um pouco sobre o fantasma da ameaça nuclear que voltou a assombrar o mundo com a guerra da Ucrânia. Como o senhor analisa esse cenário global do ponto de vista do Direito Administrativo Internacional?

Inevitavelmente essa pergunta me traz à mente algo que estamos sempre estudando, que é o fenômeno da globalização, o direito administrativo global. E, claro, a globalização vem se ensejando em muitas áreas, não só as que você mencionou como a guerra, a ameaça nuclear. Têm também as questões de imigração, as esportivas. Imagine que estamos no Brasil, o país de futebol. Temos os problemas das associações e federações internacionais de futebol. As questões de saúde internacional, regidos pela Organização Mundial de Saúde. Estamos cheios de assuntos internacionais que precisam ser regulados. A Internet, por exemplo. A inteligência artificial, que está chegando. O Direito tem esse papel de regular. E quando o deixamos o Direito fora, há muitos problemas. Porque o Direito garante que essas decisões serão tomadas baseadas em parâmetros de Justiça. Como jurista, entendo que o grande desafio que temos na humanidade é colocar o Direito no lugar que lhe corresponde. E nós todos vamos precisar trabalhar para que assim seja.  E denunciar quando o Direito for excluído, porque senão vamos repetir caminhos terríveis. Todos nós lembramos do que aconteceu na Segunda Guerra Mundial. E sabemos que só somos capazes de manejar as relações internacionais com o Direito. Pode ser até uma posição ingênua, mas não estou de acordo com a ideia segundo a qual as relações entre os países são regidas apenas pelos interesses comerciais,  políticos e econômicos. Essas relações também devem ser regidas pelo Direito. Ou são apenas interesses que podem provocar graves consequências.  

 

Fonte: A Tarde

 

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