quarta-feira, 26 de abril de 2023

Em meio a polêmicas, Brasil retoma política externa pragmática

As últimas semanas foram palco de importantes movimentações do governo brasileiro no cenário internacional. Os discursos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em seus encontros com o presidente chinês Xi Jinping e o ministro de negócios estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, sacramentaram um novo momento para a política externa do país – o que, no entanto, foi recebido com hesitação por parte da opinião pública.

Entre a polêmica em torno dos pronunciamentos de Lula – sobre a hegemonia do dólar e a Guerra na Ucrânia – e as querelas políticas internas que se desdobraram a partir daí, ficaram ofuscados aspectos relevantes e coerentes da política externa que começa a ser traçada pela nova administração federal.

Em primeiro lugar, o posicionamento diplomático brasileiro retoma um caráter pragmático e de não alinhamento automático, em contraposição ao vigente durante a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro.

Esse é um princípio básico das boas práticas diplomáticas, como observado por Henry Kissinger, um dos mais importantes diplomatas da história dos EUA, em seu livro “Diplomacia”, considerado seminal para o campo de estudos das Relações Internacionais.

Kissinger destaca, na obra, a decisão de Richard Nixon, presidente norte-americano entre 1969 e 1974, de reestabelecer as relações com a China, país com o qual os Estados Unidos haviam rompido relações 20 anos antes, após a vitória dos comunistas na Guerra Civil Chinesa.

Então secretário de estado de Nixon, o alemão radicado nos EUA notou que o rompimento entre a União Soviética (URSS) e a China – como reflexo da escalada de conflitos fronteiriços entre os países e à medida que a última tentava conduzir uma política externa independente – minava a pretensão soviética de liderar um movimento comunista único no mundo, abrindo espaço para uma nova flexibilidade diplomática.

O momento era, portanto, propício para abrir um canal de diálogo com os chineses a fim de enquadrar os russos, os quais teriam de encarar desafios em dois fronts: a oeste, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e a leste, a China, uma potência com capacidade para afetar o equilíbrio de poder na Ásia que seria, então, contida pela necessidade de contar com a “boa vontade” dos EUA para limitar as pretensões soviéticas sobre seu território.

Com isso, a administração Nixon gozaria de maior flexibilidade para resolver questões práticas com a URSS por vias políticas, já que, em situação delicada, os soviéticos seriam forçados a relaxar as tensões com os EUA.

Hoje, a China é o maior parceiro comercial dos EUA e grande detentor de títulos da dívida estadunidense.

De forma semelhante e há não muito tempo, o conservador Donald Trump estava na também comunista Coreia do Norte apertando as mãos do ditador Kim Jong-un.

No caso do Brasil, é digna de memória a política externa praticada pelo general Ernesto Geisel, na década de 1970. Seu chamado “pragmatismo ecumênico” contemplou uma intensificação das relações com a União Soviética, o reconhecimento da China comunista, uma ampliação da representação do Brasil na Europa Oriental e o abandono tácito do país à política de Lisboa na África.

O segundo aspecto a ser destacado está relacionado ao aparente estabelecimento de uma nova ordem geopolítica mundial marcada por uma bipolaridade (EUA + China) ou mesmo tripolaridade (EUA + China + Rússia). Se confirmada, essa possível mudança representaria um enorme impacto na balança de poder global se comparada ao período de inquestionável hegemonia norte-americana desde a dissolução da União Soviética (URSS), em 1991.

Conforme apontado em artigo publicado no Le Monde Diplomatique Brasil, em março de 2022, tal mudança pode gerar oportunidades para o Brasil alavancar sua posição no sistema internacional, uma vez que o poder de barganha de potências emergentes tende a crescer em um cenário em que o hegemon é efetivamente desafiado.

Não é incidental que o período pós-Segunda Guerra Mundial seja considerado a época de ouro do capitalismo: o aumento da prosperidade em diferentes regiões do planeta guarda relação direta com uma política externa “benevolente” praticada pelos EUA a fim de conter o avanço comunista sobre o então chamado Terceiro Mundo.

Por fim, temos o terceiro aspecto: a crítica à hegemonia do dólar não é de agora e tampouco tem origem no Brasil. E, o que é mais importante, ela é absolutamente legítima.

O dólar se tornou oficialmente a moeda internacional no apagar das luzes da Segunda Guerra, quando a Europa Ocidental recebia crescentes influxos da moeda norte-americana para ser reconstruída por meio do Plano Marshall.

Assinados em 1944, os acordos de Bretton Woods estabeleceram uma paridade fixa do dólar em relação ao ouro que logo viria a ser questionada.

Já na década de 1960, o então presidente francês, Charles de Gaulle, denunciava que os EUA detinham um “privilégio exorbitante”, tendo em vista seu poder de financiar déficits internos em sua própria moeda e sua capacidade ilimitada de endividamento e de investimento.

Em 1971, os Estados Unidos decidiram acabar com o lastro obrigatório ao metal, implementando o que ficou conhecido como padrão dólar-flexível.

Nesse sistema, o valor da moeda internacional passou a ser fundamentalmente avalizado pelo poder político e militar dos EUA, cujo banco central têm a liberdade de variar unilateralmente a paridade em relação a outras moedas por mudanças em suas taxas de juros, inclusive para desvalorizar o dólar, sem medo de haver fuga para o ouro, já que o sistema é totalmente fiduciário. Afinal, “One dollar is as good as one dollar”.

“O dólar vai se tornando referência obrigatória nas operações financeiras à medida que a dívida pública americana de expande, convertendo-se em ativo internacional utilizado nas carteiras de quase todas as instituições financeiras”, assinalou Maria da Conceição Tavares.

Foi justamente pensando em reduzir sua dependência do dólar que os BRICS anunciaram, em 2013, a intenção de criar um banco de desenvolvimento próprio – o que, claro, incomodou profundamente os EUA.

Importa notar que os norte-americanos também usam sua posição de detentor da moeda internacional para enquadrar países considerados rivais. Um exemplo é o das sanções econômicas aplicadas pelos EUA à Venezuela. Há anos elas impedem o refinanciamento da dívida da petroleira estatal PDVSA em dólares, o que afeta diretamente a economia do país sul-americano, a qual é extremamente dependente das exportações de petróleo.

Por sua vez, a Rússia vem ampliando suas operações internacionais em rublos desde que os EUA baniram bancos do país do SWIFT, sistema internacional de compensações financeiras.

Enquanto isso, a China mantém acordos com a própria Rússia, além de países como o Paquistão, Laos e Cazaquistão, realizando transações em Renminbi (RMB), e discute tal possibilidade com a Arábia Saudita, tradicional parceiro dos EUA.

No plano ocidental, a petroleira francesa TotalEnergies vendeu, recentemente, 65 mil toneladas de gás natural liquefeito dos Emirados Árabes Unidos para a estatal chinesa CNOOC, com mediação da Bolsa de Petróleo e Gás Natural de Xangai.

Essas movimentações nos remetem, novamente, à questão do pragmatismo. As relações internacionais não devem ser norteadas por quesitos ideológicos ou mesmo éticos e axiológicos, mas pelo interesse nacional, seguindo os preceitos de Nicolau Maquiavel (1469-1527), que fundou uma moral própria da política.

Portanto, nesta conjuntura, talvez a pergunta que se deve fazer para analisar os posicionamentos brasileiros é quais os benefícios que eles podem trazer ao país. Neste caso, o Brasil tem uma rara chance de se recolocar como um país relevante nas relações internacionais e se tornar peça fundamental no processo de transição hegemônica que parece estar em curso.

Dessa forma, cabe ao governo brasileiro buscar o melhor para sua população, enquanto, para nós, fica a responsabilidade de entender esse processo pragmático que tem raízes históricas na política externa nacional.

 

Ø  Roberto Amaral: O Brasil e a disputa pela hegemonia global

 

O ponto de partida de qualquer análise da chamada “guerra da Ucrânia” é a irrecusável evidência de que a antiga república soviética foi invadida pela potência vizinha e quase irmã e permanece há mais de um ano sob cerco militar.

Sua integridade, de país reconhecido como soberano pela comunidade internacional, é ameaçada por anexações anunciadas ou efetivadas pelas tropas do Kremlin, que não pode ser apresentado como herdeiro da utopia socialista frustrada no solo russo, embora devam ser reconhecidos seus esforços na resistência ao imperialismo.

Não se conhecem dados confiáveis sobre o número de vítimas de ambos os lados da fronteira, e ainda é cedo para o inventário da destruição no território ucraniano.

Como em todo conflito, a grande dificuldade é encontrar o caminho de volta para casa.

O que se se anunciou como uma Blitzkrieg não tem, hoje, prazo para acabar, e todas as possibilidades de desfecho devem estar abertas.

No plano estritamente militar, dizem os observadores que o conflito caminha para um beco sem saída, enquanto fracassa a busca de alternativa pela via da negociação, para a qual a diplomacia presidencial brasileira intenta colaborar, para o incômodo da imprensa nativa.

Ao velho complexo de vira-lata, de que falava Nelson Rodrigues, soma-se a dependência ideológica que fez de nossas chamadas elites canais reprodutores dos interesses da grande potência do Norte e adjacências.

Esta guerra é tudo isso, mas não é apenas isso, pois é principalmente o vestibular de um trânsito de eras (e eis a questão central), o que é percebido pela diplomacia brasileira restaurada.

Vivemos o perigoso desdobramento da disputa da hegemonia planetária exercida pelos EUA, em franco embate com a emergência chinesa como potência econômica e militar em pleno desenvolvimento capitalista, pondo em questão o sonho americano da unipolaridade que lhe caíra no colo com o suicídio da URSS anunciado no apagar das luzes de 1991.

A guerra comercial e tecnológica contra Beijing, aprofundada a partir de Trump, teve sua natureza alterada ao se expressar em conflito armado, ainda quando, como é o caso presente, os principais contendores estejam aparentemente fora da arena, pois ainda lutam por intermédio de terceiros.

Uma vez mais, lembrando Clausewitz, a guerra (clássica) é mera continuação da política, no caso concreto uma trágica necessidade determinada pelo fracasso político da guerra diplomática, comercial e tecnológica liderada pelos EUA na até aqui frustrada expectativa de conter o novo “eixo do mal”: a frente eurasiana levada à China, à Rússia e ao Irã pelas contingências históricas.

O conflito em curso, em sua modalidade militar, consiste numa guerra terceirizada, que pode ser apenas um “freio de arrumação”, um teste de forças antes da perspectiva de um embate maior, que o andar da carruagem pode fazer inevitável. Mas igualmente pode ser seu prelúdio, e neste caso a imaginação do epílogo fica fácil.

O jogo, como sempre, aliás, é muito mais profundo do que sugere sua aparência, e não pode ser compreendido pela análise maniqueísta, binária, ditada pela grande imprensa brasileira, sem autonomia intelectual ou política.

O conflito, que nada tem de ideológico, é mais que uma disputa de mercado, por significar a disputa pela hegemonia planetária (econômica, militar e ideológica) em que se engalfinham os impérios, como quem caminha por caminhos tortuosos que, por força do processo histórico, não podem ser evitados.

A substituição da guerra tout court pela via negociada (que no momento parece só interessar à Rússia e à Ucrânia) enfrenta obstáculos, a começar pelos poderosos interesses da indústria bélica, o complexo militar-industrial ao qual se referiu Dwight Eisenhower no famoso discurso de transmissão da presidência dos EUA, em 1961.

O expansionismo da OTAN (braço armado dos EUA na Europa) a caminho das fronteiras russas e a resposta russa ensejam o armamentismo mundial, de especial na Europa e no Japão, e vem fortalecer a indústria bélica estadunidense, a grande beneficiária.

É momento de grandes negócios. Quando o emprego de armas nucleares passa a integrar o discurso das potências, a guerra convencional surge como um alívio.

leitmotiv da continuidade da guerra (e o cimento das alianças que se vêm estabelecendo à sua margem), portanto, não é a defesa da integridade ucraniana, dificilmente recuperável.

Que pretendem os EUA fazendo a guerra por intermédio de prepostos?

A estratégia ostensiva do Pentágono parece ser sustentar nos níveis atuais (guerra comercial e conflito armado convencional por intermédio da Otan e aliados).

Essa estratégia, que fala ao curto prazo, resguardaria os EUA de novos desastres militares (Vietnã e Afeganistão), ademais de reduzir os riscos de uma guerra nuclear, indesejada, mas jamais de todo descartada, e para a qual todos se preparam.

Na operação presente um dos frutos já colhidos é a fragilização do aliado atômico de seu contendor.

Além do efetivo comando da OTAN, a invasão da Ucrânia ensejou o fortalecimento da liderança dos EUA sobre uma Europa que já acalentou sonhos autonomistas. Hoje, continente-protetorado, não pode mais alimentar a expectativa de projeto estratégico próprio.

De outra parte, a estratégia chinesa claramente persegue o adiamento do conflito direto entre as potências, confiada na continuidade de seu desenvolvimento acelerado (o PIB do primeiro trimestre de 2023 cresceu 4,5%).

Qualquer que seja o sumário da guerra, a China será vencedora, sem haver necessitado terçar armas.

Além da paz, a história anuncia dois derrotados, a Ucrânia por tudo o que é óbvio, e a Rússia, que até aqui não logrou realizar o objetivo que na retórica do Kremlin havia imposto a invasão: assegurar sua defesa ameaçada pelo cerco das tropas da OTAN.

Neste sentido, o que vemos é a continuidade do expansionismo da aliança militar, e portanto dos interesses geopolíticos de Washington.

A organização militar (com bases de lançamento de artefatos nucleares na Bélgica, Alemanha, Itália, Holanda e Turquia) sai fortalecida com a adesão de países antes neutros, como Suécia e Finlândia, enquanto vários de seus membros já anunciaram a decisão de aumentar os orçamentos militares, como é o caso da Alemanha.

No Pacífico, em nome da confrontação com a China, o Japão anuncia sua adesão ao armamentismo.

Qualquer que seja o fim que a história tenha reservado para o conflito, a Rússia emergirá dele como devedora e tributária de uma China extremamente poderosa, tanto na esfera econômica, quanto na esfera política, quanto na esfera militar (fortalecida com o acervo nuclear da aliada), quanto, por todas essas razões, no plano da geopolítica mundial.

Segunda potência do planeta, aguardará sem ansiedade o anunciado fim do largo ciclo de hegemonia dos EUA. Viveremos, então, o intermezzo de um tempo multipolar. Serão os tempos da emergência da Eurásia.

A história presente abre espaço para a retomada de nosso papel como sujeito ativo e altivo nas relações internacionais, a um tempo consciente de seu peso e de suas limitações, livre de condicionamentos maniqueístas.

Lula já deu inumeráveis demonstrações da consciência de seu papel – uma indeclinável contingência histórica – como presidente do Brasil e líder regional, acertadamente rejeitando o maniqueísmo no qual a grande imprensa e os setores mais atrasados da sociedade brasileira pretendem nos encarcerar.

O caminho está aberto, mas o caminhar conhecerá percalços, em face da correlação de forças dominantes, avessa a um projeto nacional de soberania e independência.

Nossa política de relações com o mundo, para se manter de pé, precisa de contar com o apoio da sociedade, o que requer debate amplo com todas as forças sociais.

Perguntar não ofende – Em qual Oásis os dirigentes do PDT e do PSB devem repousar? No apoio ao governo, ou engrossando as fileiras do jagunço do atraso?

 

Fonte: Por João Montenegro e Nathana Garcez, no Le Monde/Viomundo

 

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