BIG TECHS ABRAÇARAM
BOLSONARISMO EM OFENSIVA CONTRA PL DAS FAKE NEWS
Em
um anúncio de página inteira na Folha de S.Paulo na segunda-feira, 25, o Google
fez um alerta dramático: “um projeto de
lei que pode piorar a sua internet”. Na propaganda, a empresa argumentava que o
PL 2630, o PL das Fake News, ainda não está pronto para ser votado. É o mesmo
argumento que travou a votação da matéria em 2022, antes das eleições
presidenciais, e utilizando a mesma estratégia catastrofista.
O
discurso estava bem alinhado à direita bolsonarista – Carla Zambelli, entre
posts delirantes sugerindo que 8 de janeiro seria armação petista, disse que o
PL ameaçava a democracia. O esquadrão de verificados de Elon Musk, com Eduardo
Bolsonaro, Paulo Figueiredo, Gustavo Gayer e Mário Frias fizeram uma live sobre
a “lei da censura nas redes sociais”.
Deltan Dallagnol apelou: fez um vídeo e disse que, se aprovado, o PL
censuraria até trechos da bíblia. “Querem destruir a liberdade de expressão no
Brasil”, ele disse.
Eles
estão apavorados. O escarcéu foi orquestrado previamente, mostraram
pesquisadoras do NetLab, centro de pesquisa em comunicação da Universidade Federal
do Rio de Janeiro. No fim, o requerimento de urgência foi aprovado na Câmara, e
o projeto segue direto para plenário na semana que vem – e de lá para o Senado.
No
sentido contrário, a votação foi precedida pela campanha “urgência já” para
acelerar a votação. Não faltaram posts relacionando a falta de regulação das
big techs aos recentes episódios de massacres em escolas brasileiras e à
corrosão da democracia – os dois pontos verdadeiros, ainda que haja muitas
nuances de discussões.
O
governo assumiu a bandeira da regulamentação das big techs como prioritária, e
trata do tema de forma até atrapalhada em nada menos do que quatro diferentes
frentes – na Secom, no Ministério da Justiça, de Direitos Humanos e até na
Advocacia-Geral da União. É natural que, passado o trauma bolsonarista, o
Executivo queira aproveitar que está com a bola na mão, e numa conjuntura
externa favorável por conta das iniciativas internacionais de regulação, para
finalmente peitar as gigantes da tecnologia.
Mas
houve bate-cabeça e bate-boca, inclusive publicamente, sobre discordâncias na
maneira como o tema deveria ser tratado. Finalmente, chegou-se a uma solução: o
debate se aglutinaria no Legislativo em torno do PL 2630, que já havia sido
extensamente discutido.
Mas
o projeto está longe do consenso. Entidades que discutem direitos digitais e se
organizam na Coalizão Direitos na Rede têm opiniões divergentes – alguns, que
assinaram uma carta divulgada na quinta, 20, pedem que o tema seja tratado com
urgência. “Tentativas de protelar, mais uma vez, essa votação, objetivam não
aprofundar, mas sim enterrar o debate. Precisamos de uma regulação democrática
das plataformas digitais já”, diz o documento.
Outras
pessoas de entidades que fazem parte da mesma coalizão, no entanto, defendem
que o projeto seja mais discutido, inclusive em comissões especiais. O texto
vazado na semana passada tem, por exemplo, vários artigos que não constaram na
versão anterior. Há o temor de que o processo, feito de forma que julgam
apressada, deixe a desejar em alguns pontos e gere riscos, como o excessivo
poder das plataformas para derrubar conteúdos potencialmente nocivos.
·
O
que diz o PL das fake news
De
maneira geral, o PL das fake news avança em algumas frentes importantes: obriga
as plataformas a divulgarem relatórios de conteúdos e a vetar contas
automatizadas que espalham mentiras, cria um órgão para fiscalizar e prevê
multas altas – até 10% do faturamento do grupo – em caso de descumprimento da
lei.
A
Câmara deve decidir sobre a responsabilidade civil das empresas por conteúdos
patrocinados ou monetizados – ou seja, se elas estão lucrando com conteúdos
criminosos –, e punição em relação a conteúdos que violem o Estatuto da Criança
e do Adolescente e a Lei do Estado de Direito. Também está em discussão a
criação do órgão regulador que pode aplicar sanções e a remuneração de
conteúdos jornalísticos pelas plataformas.
O
ponto central dessa discussão é a noção de “dever de cuidado”, um conceito
jurídico que diz que pessoas físicas e jurídicas devem atuar para reduzir os
danos de suas atividades. No caso das plataformas de internet, isso se
aplicaria à responsabilidade em relação aos conteúdos que circulam nelas.
O
artigo 19 do Marco Civil da Internet diz que as empresas só podem ser
responsabilizadas por um conteúdo postado por alguém se descumprirem uma ordem
judicial para removê-lo. O dispositivo foi incluído no Marco Civil justamente
para preservar a liberdade de expressão. Mesmo assim, na época da aprovação –
final do primeiro governo Dilma – não faltou esperneio da oposição acusando o
governo de censura.
O
artigo 19 não impede as plataformas, no entanto, de terem suas regras da
comunidade e esquemas de moderação de conteúdo para evitar que posts danosos e
criminosos circulassem em seus espaços. Mas, como sabemos, os esquemas de
moderação são falhos, pouco transparentes e negligenciados em países
periféricos no mundo.
Diante
do atual contexto, o Supremo Tribunal Federal realizou uma audiência pública
para discutir se esse artigo do Marco Civil é constitucional. A maioria
defendeu que sim – e que uma noção de “dever de cuidado” não contraria o artigo
19, já que “não há uma imunidade absoluta”, como disse Bruna Santos, da
Coalizão.
O
PL 2630 determina que as empresas de internet devem agir de “forma diligente e
em prazo hábil e suficiente, para prevenir ou mitigar práticas ilícitas no
âmbito do seu serviço” para combater conteúdos que tenham crimes de terrorismo,
racismo e violência de gênero ou crimes contra o Estado Democrático de Direito,
saúde pública, crianças e adolescentes, entre outros.
Os
opositores dizem que o PL pode dar uma espécie de “poder de polícia” às
plataformas. E criaram até um site apócrifo para provocar o pânico sobre a
proposta e divulgar um placar entre quem apoia a “censura” e a “liberdade”.
·
É
a publicidade, estúpido
Em
editorial nesta terça, o jornal O Globo elogiou o projeto de lei, que chamou de
“maduro”, e destacou o dispositivo que prevê remuneração às plataformas
jornalísticas. Esse trecho da lei é um “jabuti”, como chamou a jornalista
Natália Viana. Ele não tem a ver com a proposta original, mas foi incluído ali
por pressão das organizações Globo, interessadas na ideia por razões óbvias.
O
artigo diz que as plataformas de internet devem remunerar empresas
jornalísticas pela veiculação de conteúdos na forma de “direitos do autor”. A
justificativa é a valorização do jornalismo local, profissional, mas muita
gente vem alertando que, por trás das boas intenções, na prática esse
dispositivo pode acabar remunerando só os mesmos barões de mídia de sempre. O
tema deve ser decidido por regulamentação posterior, e eventuais disputas devem
ser resolvidas pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica, o Cade.
Mas
há ainda outro ponto na briga – que também envolve dinheiro. A Globo pode se beneficiar
de um artigo que diz que “a comercialização de publicidade e impulsionamento
para divulgação por provedores sediados no exterior deverá ser realizada e
reconhecida por sua representante no Brasil e conforme a legislação de regência
da publicidade no país, quando destinada ao mercado brasileiro”.
Na
prática, esse artigo poderia, segundo críticos, abrir margem ao pagamento da
chamada bonificação por volume, a BV, no ambiente digital. O BV é uma grana
paga pelos veículos diretamente à agência de publicidade. Os maiores conseguem
pagar adiantado e têm poder de barganha. A briga aqui é que a publicidade
digital não tem esse mesmo mecanismo, e opositores dizem que essa inclusão
poderia burocratizar e encarecer a propaganda online.
Com
discurso alinhado, deputados da Frente Digital argumentam que o texto do
projeto de lei menciona a palavra “publicidade” mais vezes do que
“desinformação”. O Google, em seu posicionamento, já havia dito que o PL tinha
deixado de ser sobre fake news. Entidades de publicidade digital divulgaram
manifestos contra o projeto, afirmando que não foram ouvidas, e que o projeto
dificultaria e burocratizaria a publicidade online.
É
uma argumentação parecida com a ofensiva que ajudou a travar o PL no ano
passado. Na época, o Google e o Facebook fizeram uma intensa campanha dizendo
que vários pequenos negócios que dependem dos anúncios na rede estavam em
risco. A campanha em tom catastrófico
deu resultado e a votação naufragou.
Em
uma entrevista à CNN em fevereiro deste ano, o deputado Kim Kataguiri, do União
Brasil – que foi viajar no ano passado para bajular big techs no Vale do
Silício com dinheiro público – defendeu que o PL mais parecia “reserva de
mercado” para a publicidade. Criticou o fato de as empresas de tecnologia
precisarem ter transparência sobre os algoritmos usados para exibir publicidade
direcionada. “Porque não aplicar para imprensa?”, ele questionou. “A gente não
tá tratando de notícia falsa, tá tratando de inviabilizar e tributar rede
social”.
O
discurso de Kim Kataguiri, no entanto, não leva em conta a própria lógica das
redes sociais, que são basicamente empresas que coletam dados para exibir
anúncios direcionados aos usuários. Com mecanismos pouco transparentes,
direcionam nossa navegação e até nosso comportamento em busca de mais atenção,
mais discurso de ódio, mais engajamento, mais tempo gasto e mais cliques em
publicidade. Não sou eu que estou dizendo – há uma literatura científica
robusta, inclusive produzida pelas próprias empresas, como revelado no Facebook
Papers, comprovando essas afirmações.
Se
não mexer no dinheiro, não vai servir para nada.
De
fato, o PL tem 36 menções à palavra “publicidade”, mas elas versam
principalmente sobre temas de interesse público, como transparência (provedores
devem informar os usuários, por exemplo, sobre os “principais parâmetros
utilizados para determinar o destinatário da exibição do anúncio publicitário e
de como alterar esses parâmetros, quando possível”). Você sabe porque vê os
anúncios que você vê? Eu também não. A ideia é que a gente saiba como isso
funciona.
Outras
menções são relacionadas, por exemplo, à exigência de informações nos portais
de transparência públicos sobre valores gastos em publicidade digital, sendo
vetado esse tipo de gasto em sites que violem a lei. Razoável, não?
Mencionar
publicidade é imprescindível em um projeto de lei que se propõe a regular as
big techs, cujo modelo de negócios vem basicamente da venda de anúncios
direcionados. Se não mexer no dinheiro, não vai servir para nada.
Por
mais que o processo tenha sido, sim, atropelado – e intensificado pelos
horrendos ataques em escolas, que deram um senso de urgência ao tema –, eu
concordo com quem defende que o projeto, neste momento, traz mais avanços do
que problemas. Há pontos de atenção e possíveis danos colaterais que precisam
ser monitorados de perto, mas chegamos ao ponto de não-retorno. No passado,
quando interessava, as big techs se posicionaram fervorosamente a favor da
democracia. Hoje, se alinham ao pior da extrema direita que quase usurpou nosso
Estado Democrático de Direito. Significa? Significa.
Fonte:
Por Tatiana Dias, em The Intercept
Nenhum comentário:
Postar um comentário