AS NORMALISTAS QUE
SOBREVIVERAM
Abril será marcante
para os quinhentos alunos do curso normal do Colégio Estadual Professor José
Accioli, no bairro de Marechal Hermes, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Depois
de três anos de rotina alterada pela pandemia da Covid, eles vestirão os
uniformes de gala para receber o distintivo em formato de estrela dos futuros
professores de nível médio. A “cerimônia de incorporação” reafirma a tradição
da escola, construída entre conjuntos habitacionais de baixa renda ocupados por
famílias de policiais militares e bombeiros. É um rito de boas-vindas para os
alunos novatos que, neste ano, incluirá todos que não puderam receber o
distintivo na pandemia.
As
normalistas sobreviveram à lei 9394/96, que estabeleceu o prazo de dez anos
para que professores do ensino fundamental tenham diploma obrigatório de
graduação universitária. Com isso, a maioria dos estados extinguiu o curso
normal. Ele segue ainda forte, porém, no Rio de Janeiro e na região Sul, e de
forma residual em mais oito estados. A lei deixou uma brecha para as normalistas
ao manter o nível médio como formação mínima para os professores do ensino
infantil (creche e pré-escolar) e dos cinco anos iniciais do ensino
fundamental.
Pelo
Censo escolar de 2022, divulgado pelo Ministério da Educação, há 44.830
estudantes matriculados no curso normal em todo o país. Ele praticamente
desapareceu nas regiões Norte e Centro-Oeste. Restam 4.315 alunos no Nordeste,
19.680 na região Sul e 19.802 no Sudeste. Restam duas escolas públicas
municipais, com poucos alunos, no estado de São Paulo: Derville Allegretti, na
capital, e a José Jabur, no município de Américo de Campos, a 537 km da cidade
de São Paulo.
O
Rio de Janeiro é o maior celeiro de normalistas, com 19.355 estudantes. O
governo do estado oferece o curso em 96 escolas espalhadas pela capital,
Baixada Fluminense e interior. As alunas com os uniformes tradicionais – saia
pregueada de tergal azul marinho, blusa branca de botões, meias três quartos e
sapatos pretos de cadarço – são vistas sobretudo nos subúrbios da capital, onde
estão os dois maiores institutos de educação – o Carmela Dutra, no bairro de
Madureira, na Zona Norte, e o Sarah Kubitschek, em Campo Grande, na Zona Oeste.
O
curso normal é predominantemente feminino (os meninos representam menos de
20%). Os estudantes, quase sempre de famílias de baixa renda, o encaram como
uma porta de acesso ao mercado de trabalho para ajudar no sustento da família e
custear a faculdade. Até os anos 1960, o curso normal também atraía moças da
elite e da classe média alta. A atriz Marieta Severo foi normalista. Ser
professora era uma das poucas profissões permitidas às “moças de família”. Este
período foi retratado na minissérie da TV Globo Anos Dourados,
exibida na década de 1980.
No
Rio de Janeiro, o perfil mudou depois que as formandas perderam o privilégio de
ingressar automaticamente no serviço público, em 1969. A partir daí, o concurso
para admissão se tornou obrigatório, explica o professor Fábio Correa, que fez
a tese de doutorado sobre a trajetória das normalistas cariocas. Ele foi professor
do Instituto Carmela Dutra e atualmente é professor de pedagogia na
Universidade Federal do Amazonas. Segundo ele, a partir dos anos 1950, houve um
processo de “suburbanização” do curso normal, com a construção de escolas
próximas às estações de trem, ao mesmo tempo em que as jovens de classes média
e alta buscavam outros rumos.
As alunas do
Instituto de Educação Sarah Kubitschek se enquadram no perfil descrito por
Correa. A escola tem 1.500 normalistas e 300 alunos no ensino médio regular. Há
várias turmas só com meninas. Vaidosas, elas formam filas para conferir o
visual diante dos espelhos que a diretora, Dayse Duque Estrada, instalou nos
corredores. A escola foi inaugurada em 1959, no bairro de Campo Grande, a 50 km
do Centro do Rio, e seu entorno possui favelas e muitos conjuntos habitacionais
populares. É também uma região com forte presença de milícias. As aulas ocorrem
em tempo integral, das 7 horas às 18 horas. É uma rotina intensa. As alunas que
moram mais distante acordam às 5 horas e chegam de volta em casa após as 20
horas. Encaram ônibus e trem lotados, e ainda ajudam nas tarefas domésticas à
noite.
Amanda
Victória de Almeida, de 17 anos, cursa o segundo ano e pega dois ônibus para ir
de casa à escola. O curso normal não foi sua primeira opção quando se
matriculou no Sarah Kubitschek. Fez o primeiro ano no ensino regular normal e
depois pediu transferência. “Eu sonhava em ser professora quando era criança, e
o encantamento voltou.” A mãe, cuidadora de idosos, foi sua principal
incentivadora. O pai morreu no ano passado. Ela diz que escolheu ser normalista
também pela possibilidade de entrar no mercado de trabalho. As creches e
escolas particulares são as que mais absorvem as professoras de nível médio.
Eduarda
Sinquini, também de 17 anos, cursa o terceiro ano no Sarah e é uma entusiasta
do curso normal. “Sou filha do ensino público e vou defender a escola pública
com toda garra, principalmente o curso normal”, disse a jovem. “Através da
educação podemos construir uma sociedade mais justa, mais igualitária. Essa
construção começa no curso normal. Quando fazemos estágio em áreas carentes,
levamos um choque de realidade, que nos impacta de forma profunda.”
Ela
conta que ser professora era um sonho de infância. “Chegando aqui, me
perguntei: de que criança eu gosto? Da arrumadinha que me chama de tia? O curso
normal me deu uma visão política e social. Estamos em uma região carente. Não
podemos fechar os olhos para a realidade”, diz a normalista. Ela afirma que,
entre uma escola de elite ou uma dentro de zona conflagrada, escolheria a
última, mesmo com a falta de segurança. “É a que mais precisa de atenção e
educação. Eu vivo aqui. Pego ônibus lotados todos os dias. Chego em casa à
noite, faço os deveres da escola e vou dormir para acordar de novo às cinco da
manhã. Essa é a nossa rotina de segunda à sexta. Acredito efetivamente na
educação, porque não é fácil ser normalista.”
As
alunas do Sarah Kubitschek movimentam uma curiosa estrutura de serviços nas
proximidades da escola. Os bares nas ruas próximas cobram 1,50 real para
esquentar marmita. O Estado oferece refeições, mas muitas preferem levar
marmita para não enfrentar a longa fila do almoço, ou por não apreciar o
cardápio do dia. Em frente ao instituto também é possível comprar os uniformes,
que ficam expostos em um carro estacionado. A vendedora é Ângela Maria
Floriano, que também se formou normalista, no município de Serra Talhada, no
sertão de Pernambuco, mas nunca exerceu a profissão. Ela estaciona o carro no
mesmo ponto há trinta anos. A filha cursou o normal ali e, depois da faculdade,
voltou como professora.
A
vendedora de uniformes lamenta a queda nas vendas provocada pela pandemia.
Segundo ela, antes do confinamento, o movimento era tanto que precisava
distribuir senhas para organizar a fila de interessados no começo do ano
letivo. As filas desapareceram. E a escola ficou menos exigente em relação ao
uniforme, em razão das dificuldades financeiras das famílias.
A
diretora Dayse Duque Estrada confirma: “Sempre fui muito exigente sobre o
uniforme, mas a pandemia mudou o cenário. Quando as aulas foram retomadas, ano
passado, muitos alunos estavam com pai e mãe desempregados. Outros haviam
perdido os pais para a doença. Não posso ter a mesma rigidez de antes, porque
eu também já não sou a mesma pessoa de antes. É claro que todos devem estar
uniformizados, mas se faltar um item do uniforme, eu relevo.”
As
normalistas dizem ter orgulho do uniforme, mas se queixam do comportamento de
homens mais velhos que encaram a vestimenta como um fetiche. Júlia Domingos de
Matos, de 17 anos, aluna do curso normal no Colégio José Accioli, diz que
percebe os olhares de admiração ou de cobiça por onde passa. “As pessoas nos
fotografam. Senhoras que foram normalistas se emocionam. Em geral, nos tratam
com respeito, porque sabem que ali está um futuro professor. Mas há um lado
negativo. É comum a normalista ser assediada pelos homens mais velhos nas ruas
e no transporte público.”
Cauan Rodrigues, de
17 anos, estudante do José Accioli, conversou com a reportagem ladeado por
quatro meninas. Ele mora com a família no bairro de Deodoro, nas proximidades
de uma vila militar. O pai é autônomo e trabalha em obras. Cauan diz que o pai
ficou orgulhoso quando soube que faria o curso normal e seria professor. “Meu
pai se orgulha de mim e me coloca em um pedestal. Quando digo em casa que vou
fazer um plano de aula, me olham com admiração. Tenho uma irmã pequena e treino
as aulas com ela.” Algumas entrevistadas disseram que seguirão outras
carreiras, mas contam em dar aulas no ensino infantil para pagar a
universidade. É o caso de Maria Eduarda Moura, que quer cursar psicologia.
As
escolas de curso normal são em geral mais exigentes na disciplina porque
entendem que as normalistas precisam saber disciplinar seus futuros alunos.
Essa regra é seguida sem concessões no Colégio Estadual José Accioli, em
Marechal Hermes. A escola é exclusiva de normalistas. As aulas começam às 7
horas. Os estudantes têm de se apresentar dez minutos antes para formar as
filas no pátio. A diretora, Maria Eduarda Rodrigues, de 71 anos, não faz
concessões na vestimenta correta. Além do uniforme do dia a dia, há o uniforme
de gala, usado nas ocasiões especiais, quando as meninas precisam prender o
cabelo em um coque e cobri-lo com rede branca.
“Nem
todas as escolas têm o mesmo grau de exigência. A disciplina é fundamental para
o professor, por isso mantenho o rigor. No início do curso, reúno os pais e
explico as regras. Fica quem quer. Sou portuguesa de Viseu, e trago a
disciplina no sangue. Estou no cargo há 27 anos por reeleição. Somos uma ilha
de excelência na Zona Norte. Vou manter a disciplina até meu último dia de
trabalho e espero morrer trabalhando, porque isto aqui é minha vida”, diz ela.
As
diretoras das duas escolas entrevistadas são enfáticas na defesa da manutenção
do curso normal. Para Dayse Duque Estrada, do Instituto Sarah Kubitschek, a
extinção do curso normal por vários estados se deve a uma interpretação errada
da lei. “O curso de nível médio e a formação universitária não são excludentes.
Se completam. A quem interessa tal equívoco, não sei.” Ela concluiu o curso
normal em 1981, na mesma escola que hoje dirige, e graduou-se em pedagogia pela
Universidade Federal Fluminense.
Maria
Eduarda Rodrigues, do Colégio José Accioli, diz que a defesa do curso normal é
sua bandeira. Ela exibe a grade curricular para mostrar o foco na formação do
professor. O curso tem um total de 5.520 horas; dois terços são ocupados com
aulas e estágios voltadas para a formação do professor. “Houve muita pressão
nos governos anteriores para acabar com o curso, mas resistimos. O curso normal
é uma ilha de excelência no ensino público. Os professores que se formam em
pedagogia sem ter passado pelo curso enfrentam muitas dificuldades na sala de
aula”, diz ela.
Pela lei, os
professores de nível médio estão aptos a disputar concursos públicos para o
ensino infantil e para os anos iniciais do fundamental. Os grandes municípios,
porém, raramente aceitam a inscrição de professores de nível médio. As
normalistas precisam garimpar os editais em busca de oportunidades. No momento,
as Prefeituras de Curitiba, Belford Roxo, Mangaratiba e Saquarema estão entre
as que oferecem vagas. Mas a inscrição é só o primeiro passo. Em geral, os
editais têm pontuação adicional por títulos, o que torna mais difícil o acesso
da normalista. Com isso, as escolas particulares se tornam a principal opção de
trabalho.
O
professor Marlon Campos de Araújo, de 31 anos, concluiu o curso normal no Sarah
Kubitschek em 2011 e no mesmo ano disputou concursos para as Prefeituras do Rio
de Janeiro e de Nova Iguaçu. Ficou entre os cem primeiros colocados no Rio, mas
foi excluído por não ter o curso superior na época. Recorreu à Justiça e perdeu
a causa. O juiz considerou que o contratante tem a prerrogativa de definir o
perfil desejado do candidato. Ele foi aprovado na seleção da prefeitura de Nova
Iguaçu e em três anos tornou-se diretor da escola Priscila Bouças, cargo que
ocupou por sete anos. Em 2020, já graduado em pedagogia, foi selecionado em
novo concurso da Prefeitura do Rio e hoje leciona nos dois municípios. Ele diz
que, por ter sido diretor de escola, constatou que os professores com graduação
superior que não passaram pelo curso normal enfrentam mais dificuldades em sala
de aula.
“Muitos
acadêmicos são contra o curso por não conhecerem essa realidade que
vivenciamos. Têm raiva e rancor do que não experimentaram. O que se aprende no
chão da escola no curso normal não é oferecido na graduação.”
Bernardete
Gatti, uma das mais reconhecidas educadoras do país – presidente da Câmara de
Educação Básica do Conselho Estadual de Educação de São Paulo – concorda que o
curso normal ainda tem papel relevante na formação dos alfabetizadores,
principalmente da fragilidade dos cursos de pedagogia e licenciaturas em várias
áreas oferecidos por ensino à distância. “Estamos transferindo a formação do
professor para o ensino à distância, e esse é um calcanhar de Aquiles do país.
Há mais de 800 mil matriculados em pedagogia. Só que eles não querem ser
professores. Buscam apenas o diploma”, diz ela.
Os
dados do Censo escolar de 2022 mostram que a meta de universalização do diploma
superior para os professores do ensino básico ainda não foi alcançada: 20,6%
dos docentes do ensino infantil (creches e pré-escolar) e 13,4% dos professores
dos cinco anos iniciais do fundamental, na soma nacional, têm nível médio ou
menos. O Espírito Santo tem o maior percentual de graduados: 97% no ensino
infantil, e o Rio de Janeiro, o menor: 52%. Para a diretora do Instituto Sarah
Kubitschek, a situação do Rio se explicaria pelo fato de ser o estado que mais
forma professores de nível médio.
Há
sinais de que o curso normal pode voltar a ganhar força. O número de alunos
aumentou no Paraná, segundo informa a chefe do departamento de educação
profissional da Secretaria Estadual de Educação, Daiane Fraile. No Censo de
2022 constavam 8.737 alunos no estado. Neste ano, estão matriculados 13.729. O
governo, segundo Fraile, considera o curso importante para a qualificação do
professor do ensino básico e firmou convênios com as prefeituras para facilitar
o estágio dos alunos nas escolas municipais.
O
curso parece estar ressurgindo em zonas rurais. Foi o que aconteceu no
município de Turiaçu, no Maranhão. Na rede estadual, o velho curso normal está
extinto desde 2005. A Prefeitura de Turiaçu abriu concurso, e faltaram
professores graduados para as escolas rurais. O município decidiu, então,
recriar o curso normal para suprir suas necessidades, e 1.834 jovens se
matricularam no ano passado. Neste ano, o número subiu para 1.309. Dois
municípios vizinhos – Lago da Pedra e Turilândia – devem seguir o exemplo.
Segundo
a secretária municipal de Educação de Turiaçu, Graciete dos Santos Ferreira, as
turmas são formadas quase totalmente por moças da área rural cujas famílias não
dispõem de recursos para enviá-las a cursar faculdades em cidades mais
distantes. A prefeitura quer agora atrair cursos de pedagogia e licenciatura
para que as futuras normalistas completem a formação.
Fonte:
Revista Piauí
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