Abin de Ramagem
gastou R$31 milhões com ferramentas de vigilância secretas e sem licitação
Desde
o início do governo Bolsonaro, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin)
adquiriu, sem licitação e por supostos motivos de segurança nacional, uma série
de aparatos e programas de espionagem sem informações disponíveis ao público,
seja da capacidade das ferramentas ou mesmo das empresas que as fornecem. O
fato se destaca porque durante o governo anterior, de Michel Temer (MDB), a
agência também fez compras nesses moldes, mas não ocultou informações sobre as
companhias contratadas – como na aquisição do First
Mile,
programa da israelense Cognyte capaz de monitorar, ilegalmente, a localização
em tempo real de até 10 mil alvos por ano a partir de dados transferidos do
celular para torres de telecomunicações instaladas em diferentes regiões,
conforme revelou o jornal O Globo.
A Agência Pública apurou que, além do First Mile, existem outros
programas com potencial de espionagem ilegal. É o que indica um levantamento
interno obtido pela reportagem. Entre dezembro de 2019 e outubro de 2021, o
então diretor-geral da Abin e hoje deputado federal
Alexandre Ramagem (PL-RJ) gastou, sem licitação, pelo menos R$ 31 milhões
em ferramentas espiãs sem nenhuma informação pública. Somada a outros três
contratos firmados com empresas divulgadas pela agência, a cifra torna o
ex-delegado da Polícia Federal (PF) – e homem de confiança do clã Bolsonaro – o
diretor-geral da Abin que mais gastou com tecnologias de espionagem nos últimos
cinco anos.
Para
se ter ideia, a cada R$ 10 gastos sem licitação pela Abin na gestão Ramagem,
praticamente R$ 9 foram para empresas secretas, genericamente definidas pela
agência como “Estrangeiro Sigiloso”.
O
maior entre os 11 contratos secretos firmados na gestão Ramagem custou R$ 8,4
milhões,
um negócio realizado com uma empresa chamada Digital Clues. A compra foi
fechada cerca de três meses após uma viagem de agentes da Abin aos Emirados
Árabes Unidos, ainda em 2021. Um dos membros da comitiva foi, inclusive,
promovido ao segundo posto mais elevado na hierarquia da agência um mês após
ter fechado o negócio.
Dias
depois da assinatura do contrato, a Digital Clues foi comprada por uma das
maiores companhias de inteligência no mundo, a israelense
Cellebrite,
suspeita de colaborar com ditaduras na
África e na América Central, além de
supostamente ter invadido
celulares a serviço do FBI. O grupo entrou no mercado brasileiro em 2019 graças
ao interventor militar no Rio de Janeiro, o então general da ativa do Exército
Walter Braga Netto, segundo o Diário
Oficial da União (DOU).
A
passagem do contrato da Digital Clues para os novos donos também consta no DOU,
por meio da assinatura de um termo
aditivo ao negócio milionário. Conforme apurado pela Pública, a Abin adquiriu pelo menos
dois softwares por meio desse contrato.
Um
dos programas permite “a exploração de
conexões ocultas de amigos e pessoas relacionadas aos suspeitos” – ou seja, a
vigilância ilegal de pessoas não necessariamente investigadas pela Justiça. Já
o outro software é vendido como “a ferramenta mais
abrangente para dar início a uma investigação que não tem suspeitos ou alvos”.
À Pública, a Abin disse que “dispensas
de licitação sigilosas são a exceção, e não a regra” e que a prática se
justifica “por riscos à segurança de operações de Inteligência e de outras
atividades sigilosas, por exemplo, associadas a temas como terrorismo,
extremismo violento, criminalidade organizada e espionagem”.
“A
publicidade dos fornecedores do serviço de Inteligência brasileiro gera
vulnerabilidades que podem resultar na adoção de táticas de espionagem e
sabotagem por atores adversos; exposição de capacidades operacionais da ABIN;
inserção de backdoors em softwares adquiridos ou alterações que prejudiquem
funcionalidade do equipamento; quebra de segurança de transmissão de
informações sigilosas; interceptação de comunicações e vazamento”, afirmou a
agência por meio de sua assessoria.
A
reportagem procurou também o ex-diretor-geral Alexandre Ramagem, mas não houve
retorno até a publicação.
·
Possível falha de segurança ronda o caso
Segundo
apurado pela Pública, os
programas adquiridos pela Abin da Digital Clues teriam ao menos uma brecha que
permite a vigilância ilegal: a exploração do
protocolo SS7,
criado para facilitar a conexão de redes móveis por operadoras de telefonia no
mundo todo.
Através
desse protocolo, ferramentas espiãs podem interceptar a íntegra de mensagens de
texto e chamadas de qualquer usuário, pois manipulam informações da localização
dos dispositivos monitorados. Mas a prática depende de autorização judicial, o
que pode não ter ocorrido no uso dos softwares comprados pelo governo
Bolsonaro.
Conforme o Código de
Processo Penal,
o “acesso ao conteúdo da comunicação de qualquer natureza” por meio de
programas de espionagem “dependerá de autorização judicial”. Sem isso, a
vigilância sobre qualquer indivíduo se torna ilegal no Brasil.
Vale
lembrar que foi por meio
de falhas no mesmo protocolo que o hacker Walter Delgatti Neto
invadiu os celulares do ex-ministro da Justiça e Segurança Pública e hoje
senador Sergio Moro (Podemos-PR) e de membros da Lava Jato no Paraná, reunindo
dados que, depois, deram origem ao escândalo
da Vaza Jato.
À Pública, a Abin informou a existência
de uma apuração “em andamento” quanto ao material adquirido da Digital Clues,
mas “os atos referentes ao contrato indicado, bem como as informações sobre a
ferramenta em si, suas funcionalidades, sua utilização e os atos/processos
decorrentes” possuem “caráter restrito”.
A
reportagem procurou a representante oficial do grupo Cellebrite, atual dono das
tecnologias desenvolvidas pela Digital Clues, no Brasil, para obter mais
detalhes dos softwares em questão. Mas a representante do
grupo israelense informou
não comercializar nem conhecer tais ferramentas adquiridas pela Abin de
Ramagem.
·
Agente virou número dois da Abin após a assinatura
do contrato
O
contrato milionário da Abin com a Digital Clues tem origem em uma ida de
servidores da agência aos Emirados Árabes em 2021, por conta de uma das maiores
feiras do setor de inteligência no mundo. O grupo era composto por quatro oficiais
de inteligência, um agente administrativo e dois policiais federais cedidos à
agência. Entre eles estava o então secretário de Planejamento e Gestão da
Abin Carlos Afonso
Gonçalves Gomes Coelho, gestor do orçamento e das contratações da agência no
dia a dia.
Delegado
da PF tal como Alexandre Ramagem, Gomes Coelho está diretamente ligado à
primeira compra secreta da Abin no período. Ao custo de cerca de R$ 1,5 milhão,
o negócio veio à tona em dezembro de 2020, após ser publicado no DOU sem mais
detalhes, dado o sigilo imposto pela agência.
Um
mês após ter fechado negócio com a Digital Clues, Gomes Coelho foi
promovido a diretor-adjunto da
Abin –
número dois na hierarquia da agência –, ocupando a vaga por quase seis meses.
Logo depois de sua saída
do cargo,
ele foi nomeado “Oficial de Ligação
da Polícia Federal”
no Colégio Interamericano de Defesa em Washington, Estados Unidos.
Segundo o jornal O
Estado de S. Paulo, Gomes Coelho teria sido levado para a Abin por
escolha de Ramagem, após ter sido assessor especial da Secretaria de Governo no
início da gestão Bolsonaro. Antes, o policial atuou na Secretaria de Operações
Integradas (Seopi) no governo Temer – a mesma pasta ligada à produção de
dossiês contra professores e policiais antifascistas, como revelado pelo
jornalista Rubens Valente no portal UOL – e como
segurança do então candidato presidencial Jair Bolsonaro, em 2018.
·
“Todo mundo deixa um rastro”
Fundada
na Suíça por Yossi Ofek, um desenvolvedor
israelense especialista em segurança digital e técnicas de espionagem, a
Digital Clues teria expertise na extração e obtenção de dados na internet
aberta, além de fóruns e
sites hospedados na deep e na dark web – onde diversas atividades criminais
correm soltas.
Fonte:
Por Caio de Freitas Paes, da Agência Pública
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