quinta-feira, 9 de março de 2023


 Teste da governabilidade depende do varejo no Congresso

Começou o jogo que contrapõe um presidente da República de esquerda — mas dono da caneta — a um Legislativo de maioria conservadora, mas que não sabe sobreviver politicamente sem emendas e cargos. No recém-empossado Congresso, já há uma bolsa de apostas em torno do primeiro teste legislativo do novo governo. Tudo indica que, em algum momento, os parlamentares — sobretudo os deputados de Arthur Lira — irão infligir uma derrota ao Planalto, só para mostrar quem manda. Nada grave, que desestabilize ou prejudique o governo de forma irreversível. Mas um recado — e a dinâmica que se estabelecer nesses primeiros minutos da partida será decisiva para o jogo da governabilidade até 2026.

O que se diz no tapete verde é que esse teste não vai esperar, certamente, pela reforma tributária, de horizonte temporal incerto e, principalmente, objeto de divergências que não se organizam em torno da disputa governo x oposição, mas talvez entre União x estados/municípios, entre estados ricos e estados pobres, ou mesmo entre interesses de setores diversos como indústria x serviços. Sua complicada aprovação vai depender do entendimento entre essas forças, tendo o governo como uma espécie de facilitador.

Dificilmente também veremos o Legislativo derrubar a proposta de nova âncora fiscal que o governo Lula apresentará ao Congresso sob a forma de lei complementar, provavelmente até abril. Há dúvidas, entre parlamentares experientes, de que se chegará a um consenso em torno desse arcabouço, destinado a substituir o teto de gastos. Mas o Planalto não iria ao plenário em clima de incerteza, e se não tiver os votos muito bem mapeados e acertados, não vota. Aliás, até no mercado há quem diga que não haveria nada demais em continuar sobrevivendo com o pé-direito alto estabelecido para permitir os gastos no Orçamento 2023 na PEC da Transição. No limite, usa-se mecanismo semelhante para o ano que vem. Tudo isso, porém, deve ficar para mais adiante. 

O teste de governabilidade poderá vir, e logo, na votação de temas menos importantes, como vetos, ou sob a forma de medidas  provisórias, como a da nova estrutura administrativa, que acabou com a Funasa. Suas atribuições foram divididas entre Saúde e Cidades, e com isso diluíram-se as superintendências estaduais que faziam a festa do Centrão do Nordeste. A pressão dos partidos aliados, como o PSD, e daqueles que começam a negociar uma aproximação ao governo para restabelecer a estrutura anterior é enorme, e tudo indica que o próprio PT não se entendeu internamente sobre o assunto. O ministro da Casa Civil, Rui Costa, diz que a separação será mantida, enquanto o líder na Câmara, Zeca Dirceu, prevê um acordo para a volta da Funasa.

Independentemente do desfecho desse caso específico, o que se constata é que ainda há muito varejo parlamentar a ser resolvido para que o Planalto tenha tranquilidade no Congresso. A base que uniu inicialmente os partidos com os quais Lula se elegeu, agregando MDB, PSD e União — que ganhou ministério mas não entregou o apoio prometido — é insuficiente, e haja Funasas e Codevasfs para trazer deputados do PP, do Republicanos e até do PL bolsonarista, hoje rachado ao meio. 

Sem contar o jogo mais pesado do presidente da Câmara, que segundo aliados continua muito insatisfeito por não ter emplacado o amigo Elmar Nascimento (União-BA) no primeiro escalão. Daí o aceno de integrantes do governo e do PT, como a presidente Gleisi Hoffmann, a mudanças que podem deslocar ministros do União de suas pastas se o partido fizer feio no primeiro teste de plenário. 

 

Ø  Afagos de Lula à esquerda e aos amigos empreiteiros irritam os partidos aliados

 

Declarações recentes do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que criticou o Banco Central, tem tratado o impeachment de Dilma Rousseff como “golpe” e defendeu o uso do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para financiar obras no exterior, provocaram incômodo na frente ampla de apoio ao governo, tratada pelo petista durante a campanha como fundamental para o sucesso de sua gestão.

O discurso agrada à base mais fiel do titular do Palácio do Planalto, mas gera críticas entre aliados do centro à esquerda, como PSD, PSB, MDB e Cidadania.

Parte deles levou o descontentamento a Lula na quarta-feira, durante a reunião do Conselho Político da coalizão, composto por representantes de legendas que integram a atual administração, no Planalto. O presidente do Cidadania, ex-deputado Roberto Freire, foi um dos que se manifestaram na ocasião.

— Eu estive com o presidente e coloquei muito claramente que temos divergências. Os juros estão na estratosfera, e isso é um problema, mas nós defendemos a autonomia do Banco Central — disse.

O BC tornou-se alvo ao longo da última semana. Nesse período, Lula questionou a taxa de juros de 13,75% e a independência do banco. Ele também atacou diretamente o presidente da instituição, Roberto Campos Neto, nomeado para o posto pelo ex-presidente Jair Bolsonaro.

“Quero saber do que serviu a independência do Banco Central. Eu vou esperar esse cidadão (Roberto Campos Neto) terminar o mandato dele para fazermos uma avaliação do que significou o Banco Central independente“ — disse o petista na segunda-feira.

Aliados também desaprovam o fato de Lula ter voltado a classificar o impeachment de Dilma como “golpe de Estado”, durante a viagem do petista à Argentina no final do mês passado. A frase de Lula reverberou em diferentes partidos da base. No MDB, Michel Temer, que assumiu a Presidência da República com a queda de Dilma, rebateu o petista.

“O presidente Luiz Inácio Lula da Silva parece insistir em manter os pés no palanque e os olhos no retrovisor, agora tentando reescrever a História por meio de narrativas ideológicas”, criticou, por meio de nota.

No PSD, que tem três ministérios (Minas e Energia, Agricultura e Pesca), tanto o discurso do golpe quanto os ataques ao Banco Central são malvistos.

— O presidente Lula nesses primeiros dias tem demonstrado, em relação à economia, que quer dar uma guinada. Isso é muito perigoso — disse o presidente do partido, Gilberto Kassab, na semana passada, em entrevista ao portal UOL.

Embora tenha por objetivo afagar a sua base mais à esquerda, as afirmações de Lula encontraram descontentes até nas legendas desse campo, entre elas o PSB, sigla do vice-presidente, Geraldo Alckmin, e um dos partidos mais afinados ao PT. Lideranças da sigla dizem que a trincheira aberta contra o BC e Campos Neto, assim como a classificação do impeachment como golpe são desnecessárias.

Dias depois de disparar contra a maior autoridade monetária do país, Lula saiu em defesa de uma das iniciativas mais criticadas dos governos petistas: o financiamento pelo BNDES de obras públicas em outros países, como Cuba e Venezuela.

Ele aproveitou a cerimônia de posse de Aloizio Mercadante como presidente do banco de desenvolvimento, na segunda-feira, para dizer que a instituição foi “vítima de difamação muito grave” durante a campanha. A declaração também pegou mal entre governistas.

Outro ponto que desagradou integrantes da frente ampla foi a discussão sobre uma moeda comum entre os países do Mercosul. Lula assinou uma carta com o presidente da Argentina, Alberto Fernandéz, anunciando estudos para implementá-la. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, teve que explicar que a ideia era ampliar os mecanismos que facilitassem o comércio entre os dois países e não criar uma moeda.

 

Ø  Palanque se impõe e já Lula se aproxima de posições de Dilma e Bolsonaro na economia

 

A linha que separa a retórica política e o tecnicismo governamental guarda grande capacidade de provocar ruídos. O debate puxado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobre a conveniência da atual política de juros do Banco Central — que envolve, inclusive, a autonomia da autoridade monetária frente ao Executivo — está longe de ser um caso isolado ou um fenômeno dos dias atuais.

Nos últimos 10 anos, a manutenção do capital político, em detrimento das recomendações técnicas, marcou os governos de Jair Bolsonaro (PL) e de Dilma Rousseff (PT). A ex-presidente, por exemplo, bancou a política de expansão de gastos nos primeiros quatro anos de governo.

Dilma Rousseff foi reeleita, mas, no segundo mandato, diante do recrudescimento dos desequilíbrios fiscais e da escalada da inflação, tentou dar uma virada ortodoxa ao chamar Joaquim Levy, “o homem do ajuste”, para calar as críticas que minavam sua base no Congresso. Ao fim, acabou tragada pela instabilidade política que levou ao impeachment. Também em sua gestão, o Brasil perdeu o grau de investimento que atestava a solidez das contas públicas.

Nova tentativa de ajuste das contas públicas foi feita na gestão de Michel Temer (MDB), com a aprovação, na Câmara e no Senado, da Lei do Teto de Gastos, que funciona até hoje como âncora fiscal.

Outra decisão do governo do emedebista que provoca reflexos até hoje é a paridade de preços dos combustíveis com as cotações internacionais, que o atual governo Lula tenta alterar. Ambos os casos ilustram aderência de Temer à cartilha de sua equipe econômica.

No governo Bolsonaro, retornaram as tensões entre áreas técnicas e posicionamentos político-ideológicos do grupo que assumiu o poder. Os ruídos também. Na maior crise sanitária mundial dos últimos 100 anos, Bolsonaro assumiu uma postura negacionista diante da gravidade da pandemia de covid-19, perdeu dois ministros da Saúde ligados à área médica, debochou do uso de máscaras e atrasou a compra de vacinas, não sem antes questionar sua eficácia.

Os exemplos acima mostram que o embate político atropelou o viés técnico e gerou desgastes para o governo de plantão, contaminando e fragilizando as relações do Executivo com as instituições.

Lula já não encontra unanimidade em suas críticas a Campos Neto, nem mesmo dentro de sua própria base aliada, incluindo congressistas e ministros. Na semana passada, o presidente disse não existir “nenhuma justificativa” para a Selic se manter no atual patamar de 13,75% ao ano. “Não é o Lula que vai brigar, não. Quem tem que brigar (para baixar a taxa de juros) é a sociedade brasileira”, disse.

A autonomia do Banco Central, assegurada por lei, também entrou no pacote de críticas, com aval de ministros como Flávio Dino, da Justiça e Segurança Pública. “Todos os órgãos administrativos estão sob a autoridade do chefe de governo delegatário da vontade popular. E nem o mandato presidencial é incondicional e ilimitado”, declarou o ministro, que complementou: “Autonomia não é soberania”

Aliado de Lula, o senador Renan Calheiros (MDB-AL) é a favor da manutenção da autonomia do BC, assim como os presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Ninguém admite pautar uma nova mudança da lei que blinda o banco Central de ingerências políticas.

Em 2016, Lula chegou a pedir pessoalmente a Renan Calheiros para que a autonomia do BC fosse pautada no Senado. Mas a “soberania” do BC só foi consolidada em 2021. Antes, havia sido defendida publicamente por Lula em 2013, e pelo PT, entre o fim da década de 1990 e o início dos anos 2000.

¨       Lula ameaça transformar seu governo num “Dilma 2”, adverte Armínio Fraga

O ex-presidente do Banco Central, Armínio Fraga, diz que Luiz Inácio Lula da Silva não é o único no Brasil a considerar que os juros estão elevados, mas afirma que a instituição precisa de ajuda para melhorar condições da economia e avançar para uma queda nas taxas.

Segundo Fraga, com quem conversei hoje, “é inegável” que os juros são altos, mas a solução para tentar reduzi-los não passa por dar declarações que reduzem a confiança dos agentes econômicos na capacidade do governo de manejar de forma responsável as contas públicas.

“As taxas de juros são mesmo uma questão, o Brasil é um ponto fora da curva. Mas para mim está mais ou menos claro que se o Banco Central, sozinho, não está conseguindo dar conta – ou até está, mas está custando muito caro – isso quer dizer que ele precisa de uma ajuda fiscal do governo”, diz.

Para ele, os ataques de Lula ao BC e a seu presidente, Roberto Campos Neto, provocam muitas dúvidas em relação à disposição do governo de manter a disciplina fiscal.

“Dar um apoio amplo a medidas dessa natureza teria um efeito importante sobre a credibilidade da política econômica, que reduziria o prêmio de risco (sobre os títulos da dívida brasileira) e ajudaria na valorização do real frente ao dólar. Mas o que a gente está vendo é uma ameaça de voluntarismo, que é Dilma.2, que está fadada ao insucesso, e que pode atrapalhar tudo de bom que esse governo pode fazer”.

Para Fraga, que comandou o Banco Central durante o governo de Fernando Henrique Cardoso e hoje é gestor do Gávea Investimentos, a reação do presidente da República ao comunicado do Copom que citava uma “incerteza maior do que o habitual” no âmbito da política monetária foi fruto de interpretação errada.

“O correto (seria entender que) apesar do esforço de Haddad em promover um ajuste, todo o estrago que foi feito pelo atual presidente com as suas declarações vai na direção contrária. O que ele diz tem peso, e não ajuda a eliminar a impressão geral de que o atual governo não tem uma convicção firme em relação à importância da disciplina fiscal”.

O ex-presidente do BC não está entre os gestores e investidores que consideram que as declarações de Lula são arroubos retóricos que poderão ser contidos pela equipe econômica.

“Isso é sério, e inclusive contradiz o que Lula disse na campanha, que era ‘não se preocupe, que em todos os meus governos eu tive superávit primário’, e agora não há um compromisso formal com o superávit. Esse compromisso tem que existir”, assinala Fraga.

Fraga, que defende a independência do Banco Central, reconhece que Roberto Campos Neto merece críticas por ter se alinhado politicamente ao bolsonarismo.

“Foi uma pena ele ter tomado certas atitudes, mas não vamos confundir as coisas. Eu não tenho por que achar que ele vai tomar medidas equivocadas de propósito para punir esse governo. Isso é de um nonsense completo”.

O ex-dirigente do BC diz que dá mais valor do que muitos de seus colegas ao ajuste que Haddad se comprometeu a fazer. “Acho que é um primeiro passo. Mas ainda deixa o saldo primário negativo em 1% mais ou menos, quando deveria ir para um superávit de no mínimo 2%”.

Chegar lá, segundo ele, depende de uma série de outras definições do governo Lula, como fazer a reforma tributária, não retroceder nas reformas previdenciária e trabalhista natureza da reforma tributária, ou entrar na OCDE, por exemplo.

Fraga acha que não é necessário mudar a meta de inflação. Em sua opinião o BC já trabalha com um horizonte mais longo para a política monetária, que segundo a própria ata do Copom é o terceiro trimestre de 2024. Ou seja, a inflação pode cruzar este ano um pouco acima da meta, desde que chegue à meta no final de 2024. “Minha leitura é que isso já é uma flexibilização, e uma flexibilização adequada”.

O que ele considera que o governo Lula não pode perder de vista é a noção da importância do ajuste. Isso porque, em sua visão, o presidente da República está influenciado por pessoas que “prometeram a ele milagres, dizendo que não tem problema em se endividar e que pode tomar dinheiro emprestado sem limites”.

Um dos protagonistas da transição entre o governo FHC e o primeiro governo de Lula, o ex-presidente do BC afirma que “se o presidente refletir sobre a própria experiência dele, talvez ele dispense essas ideias meio malucas que estão surgindo e siga um caminho que a meu ver é não só compatível com a busca da responsabilidade social, mas é necessário. Porque na bagunça fiscal, pode ter certeza que os pobres sempre perdem”.

 

Fonte: Por Helena Chagas, em Os Divergentes/O Globo/Correio Braziliense

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