quarta-feira, 29 de março de 2023

Parente próximo comete 8 em cada 10 casos de violência contra crianças de até 6 anos no Brasil, diz pesquisa

O Brasil registra 673 casos de violência contra crianças de até 6 anos por dia ou 28 a cada hora, e 84% dessas agressões têm pais, padrastos, madrastas ou avós como suspeitos, segundo dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, analisados em estudo produzido pelo comitê científico do Núcleo Ciência pela Infância (NCPI).

Ainda segundo o estudo, crianças até 13 anos representam a maior parte das vítimas de estupro no Brasil (61,3% do total de casos), segundo dados do Anuário Brasileiros de Segurança Pública. E a maior parte das crianças vítimas de morte violenta intencional são meninos (59%) e crianças negras de ambos os gêneros (66%).

“A violência contra a criança no ambiente familiar tem impacto negativo a curto, médio e longo prazos na saúde física e mental das vítimas e pode levar a um ciclo intergeracional de violência — quando a vítima de violência na infância repete com os filhos os abusos que vivenciou”, alerta Maria Beatriz Linhares, professora da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP) e coordenadora do estudo.

Para a pesquisadora, a solução do problema exige uma estratégia integrada de políticas públicas, envolvendo as áreas de saúde, educação, proteção social e Justiça.

“Não podemos esperar chegar aos casos extremados para tomar providências. É preciso acabar com a naturalização da violência contra a criança, temos que progredir”, diz Linhares, que defende ainda a adoção de programas voltados para a formação dos pais contra a violência na infância.

Responsável pelo estudo, o NCPI é composto por sete organizações: Center on the Developing Child e David Rockefeller Center for Latin American Studies (ambos da Universidade Harvard), Faculdade de Medicina da USP, Fundação Bernard van Leer, Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, Insper e Porticus América Latina.

·         A violência na primeira infância em números

A primeira infância vai do nascimento aos 6 anos da criança, uma fase determinante para definir habilidades afetivas, sociais e cognitivas – que dizem respeito à nossa capacidade de compreender o mundo ao redor e responder adequadamente aos estímulos recebidos.

Assim, a violência nessa fase tem impactos no desenvolvimento e comportamento presente e futuro das crianças, destacam os pesquisadores do NCPI.

Para mapear essa violência, eles analisaram dados do canal de denúncias Disque 100, compilados pela Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, atualmente ligada ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Também olharam para números do Anuário Brasileiros de Segurança Pública 2022, produzidos pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Segundo os dados do Disque 100, em 2021, foram registradas 118.710 violações de direitos de crianças de 0 a 6 anos no Brasil. Em 2022, apenas no primeiro semestre, foram 122.823 casos — uma média de 673 violências registradas por dia, ou 28 casos a cada hora.

Para os pesquisadores, o salto no número de casos registrados em 2022 pode ser um sintoma da subnotificação que marcou o período da pandemia de covid-19.

“Durante a pandemia, ocorreram mais violências, mas não houve notificação compatível. Isso porque muitos serviços foram fechados e muitas das notificações são feitas pelos serviços de saúde, pelas escolas. Então o isolamento das crianças em casa pode ter impactado nessa subnotificação”, diz Linhares.

Na maioria dos casos, os agressores eram familiares das crianças. No primeiro semestre de 2022, os suspeitos de violência em 57% dos casos eram as mães, seguidas pelos pais (18%), padrastos e madrastas (5%), além de avôs e avós (4%).

A professora da USP observa, porém, que é preciso olhar com cautela para o fato de que as mães costumam ser as principais suspeitas de agressão contra crianças pequenas.

Isso porque as crianças costumam passar mais tempo sob o cuidado delas e os pais muitas vezes são figuras ausentes. Então é preciso ponderar os dados considerando essa disparidade no tempo de cuidado.

“A violência intrafamiliar é um fato”, afirma Linhares. “Temos um grande fator de risco e ameaça ao desenvolvimento [da criança], que é o próprio cuidador, que deveria proteger, estimular, cuidar física e afetivamente, ser muitas vezes o perpetrador da violência”, observa a pesquisadora

“Às vezes você têm famílias com uma série de fatores de risco, desde o desemprego, abuso de drogas, psicopatologias, depressão materna, questões de estresse. Então há uma série de fatores que levam ao que chamamos dessa ‘parentalidade negativa’ — mas esses fatores não justificam as agressões. Nada justifica a violência contra a crianças”, enfatiza a especialista.

·         Os principais tipos de violência contra crianças

Ainda conforme os dados do Disque 100 do Ministério dos Direitos Humanos, maus-tratos (15.127 casos), insubsistência afetiva (13.980 casos), exposição ao risco de saúde (12.636 casos) e tortura psíquica (11.351 casos) foram os principais tipos de violência registrados contra as crianças de 0 a 6 anos no primeiro semestre de 2022.

Olhando para os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, um outro número chama a atenção: 61,3% dos estupros no Brasil são cometidos contra crianças de 0 a 13 anos – o que é considerado estupro de vulnerável, já que a criança não tem maturidade para consentir.

Do total de estupros de vulneráveis registrados no Brasil em 2021, 19,5% das vítimas tinham entre 5 e 9 anos e 10,5%, entre 0 e 4 anos.

Ainda conforme o Anuário, houve 2.555 mortes violentas intencionais de crianças e adolescentes em 2021 — incluindo crimes de homicídio culposo, feminicídio, latrocínio, lesão corporal seguida de morte e morte decorrente de intervenção policial.

Entre as crianças de 0 a 11 anos vítima de mortes violentas intencionais, 59% eram meninos e 41%, meninas. Por raça ou cor, 66% das crianças eram negras (soma de pretos e pardos) e 31% brancas.

·         Os efeitos da violência e como combatê-la

Maria Beatriz Linhares explica que a violência na infância tem efeitos para a criança e para a sociedade como um todo.

“Crianças expostas à violência estão submetidas a situações de estresse tóxico. Isso provoca alterações fisiológicas e psicológicas que podem interferir no funcionamento do sistema nervoso central em áreas relacionadas à memória, ao aprendizado, às emoções e ao sistema imunológico. Tais alterações podem trazer prejuízos que persistem até a vida adulta, contribuindo, inclusive, para o surgimento de doenças crônicas”, diz a professora da USP.

Além disso, a exposição à violência pode gerar agressividade, problemas de atenção, hipervigilância, ansiedade, depressão, problemas de adaptação escolar e problemas psiquiátricos como fobia e estresse pós-traumático, destacam os pesquisadores do NCPI.

Também afeta o desempenho escolar e a sociabilidade e é um fator de risco para criminalidade e delinquência na adolescência, observa Linhares.

Os pesquisadores observam que não é por falta de leis que a violência contra crianças se perpetua no Brasil. O país conta com marco regulatório extenso de proteção à infância, que tem se renovado ao longo dos anos.

Vai desde a Constituição de 1988, passando pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) de 1990, pela Lei da Palmada (2014), Marco Legal da Primeira Infância (2016), Lei da Escuta Protegida (2017) e Lei Henry Borel (2021), que tornou crime hediondo o homicídio contra menores de 14 anos.

Para Linhares, um dos problemas no país é a morosidade da Justiça. Ela cita como exemplo o caso do menino Bernardo Boldrini, assassinado aos 11 anos em 2014. O autor do crime e pai da criança, Leandro Boldrini, foi condenado somente este ano – nove anos depois do crime – a 31 anos e oito meses de prisão, após uma primeira condenação (em 2019) ter sido anulada.

“Não basta ter a lei, ela precisa ser aplicada”, diz Linhares.

Ela destaca, porém, que a Justiça não basta e que o combate à violência na infância exige uma estratégia interdisciplinar. “A assistência social, a educação, as estratégias de saúde de família, todas têm papel importante no combate à violência na infância”, diz a pesquisadora.

Ela destaca ainda a importância dos chamados “programas de parentalidade”, que ajudam a prevenir a violência aumentando “a compreensão dos cuidadores sobre o desenvolvimento infantil” e incentivando estratégias de disciplina positiva — isto é, não violenta ou punitiva.

Programas do tipo, desenvolvidos em parceria com o poder público, já estão em aplicação em 24 municípios do Ceará e em Pelotas (RS), cita a professora.

 

Ø  O polêmico caso da adolescente britânica vítima de abuso acusada de terrorismo

 

O caso de uma adolescente que se suicidou após ser indiciada por terrorismo no Reino Unido levantou questões sobre como o país lida com o problema de menores envolvidos em extremismo.

Uma investigação da BBC revelou que a menina britânica tinha sido vítima de aliciamento e exploração sexual — e que evidências disso tinham sido encaminhadas ao MI5, o serviço de inteligência doméstico britânico antes de seu indiciamento.

Rhianan Rudd, que aos 15 anos se tornara a menina mais jovem acusada de terrorismo no Reino Unido, se matou em um abrigo para menores em maio de 2022.

A mãe diz que os investigadores da agência MI5 deveriam ter tratado sua filha "como uma vítima e não como uma terrorista".

Aos 14 anos, Rhianan Rudd se aproximou de grupos de extrema-direta. Sua mãe, Emily Carter, lembra dela como uma "garota adorável" que gostava de cavalos — mas que, de repente, começou a expressar pensamentos racistas e antissemitas.

"Se você não tivesse cabelos loiros e olhos azuis — arianos, como dizem — ela não queria te conhecer. Você era uma raça inferior e não deveria estar vivo", lembra a mãe.

Ela diz que sua filha absorvia essas visões extremistas "como uma esponja". "Ela estava mudando, já não era mais a Rhianan", diz Emily. "Era uma criança que se fixava em algumas coisas."

Rhianan, que vivia em Derbyshire, na região de East Midlands, no centro-leste da Inglaterra, tinha dificuldade em se relacionar com outras pessoas e fora diagnosticada com autismo.

Rhianan havia fugido de casa no passado e sua família era acompanhada pelo órgão britânico equivalente, no Brasil, ao Conselho Tutelar. A mãe reconhece que cometeu erros, mas que "sempre tentou fazer o melhor".

Em setembro de 2020, Carter estava tão preocupada com a saúde mental de Rhianan que a encaminhou para o Prevent, um programa do governo para evitar a radicalização de jovens. A essa altura, a menina havia admitido ter baixado um manual de fabricação de bombas na internet.

Em um mês, Rhianan foi presa por investigadores antiterroristas e largou o Prevent. Ela foi interrogada, fichada como suspeita de terrorismo, solta sob fiança e não pôde mais frequentar a escola.

Há algum tempo, ela vinha conversando com pessoas mais velhas pela internet, entre elas um americano chamado Christopher Cook, que promove o neonazismo e tinha crido uma célula para realizar atentados.

Evidências mostram que o então parceiro da mãe de Rhianan também teve influência no aliciamento de Rhianan. Emily Carter diz que não sabia de nada.

O então parceiro, o americano Dax Mallaburn, tinha sido membro de uma gangue de prisão supremacista branca nos Estados Unidos. Ele conheceu a mãe de Rhianan por meio de um sistema de correspondência para prisioneiros.

Antes mesmo de Rhianan ser presa, o relacionamento de Mallaburn com sua mãe havia acabado e ele havia voltado para os Estados Unidos. Mas a BBC descobriu que Cook e Mallaburn estiveram em contato, e que Cook pediu que Mallaburn ensinasse o "caminho certo" a Rhianan.

Durante os interrogatórios policiais, Rhianan disse que foi coagida e aliciada, inclusive sexualmente, e que enviou imagens explícitas de si mesma para Cook. O abuso que ela descreveu ajudou o governo a identificar o caso como sendo de exploração infantil.

De acordo com as leis britânicas modernas de escravidão, certos órgãos públicos, como a polícia, são obrigados a notificar o Ministério do Interior sobre quaisquer vítimas em potencial de exploração.

No entanto, nos meses anteriores à acusação de Rhianan, nenhuma das organizações envolvidas a encaminhou para a unidade especializada do governo que investiga esses casos. E não foi por falta de informação.

A BBC descobriu que, na época da prisão de Rhianan, o MI5 recebeu evidências mostrando que ela havia sido explorada — inclusive sexualmente — por Cook.

Uma investigação da agência americana FBI descobriu mensagens e imagens dos dispositivos de Cook mostrando Rhianan sendo coagida e explorada. O FBI entregou o material ao MI5.

Rhianan passou mais de seis meses sob fiança aguardando uma decisão sobre se seria indiciada. Sua mãe diz que esse período levou a um declínio na saúde mental de Rhianan, com casos de automutilação, fuga e tentativa de suicídio. A jovem foi transferida para um abrigo para menores.

Em abril de 2021, mais de seis meses após ter sido presa, ela foi indiciada, acusada de seis crimes de terrorismo por ter baixado instruções para fabricar explosivos e armas. Os promotores alegaram que as instruções estavam ligadas a um possível plano de atentado.

Dias depois de ela ter sido acusada, quando advogados de defesa recém-nomeados intervieram, o município de Derbyshire encaminhou o caso de Rhianan ao Ministério do Interior como o de uma possível vítima de exploração.

Mas a decisão sobre isso demorou mais de sete meses. O Ministério do Interior concluiu que ela havia sido traficada e explorada. E no final de dezembro de 2021, a acusação de terrorismo foi suspensa.

Rhianan faz parte de uma tendência crescente de crianças sendo investigadas pelo MI5 e pela polícia — muitas vezes envolvidas com extremismo de direita online.

Entre as condenações nos dois últimos estão as de um garoto da região de Cornualha que liderou sua própria célula terrorista online aos 14 anos e um da cidade de Darlington, preso aos 13 anos.

Os casos envolvendo crianças são complexos. Mesmo que uma criança tenha sido vítima de aliciamento e exploração, ela ainda pode representar um risco real de ameaça a outras pessoas.

Poucas crianças acusadas de crimes terroristas acabam sendo presas. O processo de investigação, prisão e acusação pode levar vários meses e, em alguns casos, bem mais de um ano.

O revisor independente da legislação sobre terrorismo, Jonathan Hall, diz que em 2020 e 2021 apenas uma criança condenada por crime de terrorismo foi presa. O especialista sugere mudanças na lei que ofereçam alternativas ao indiciamento, como limite no uso do telefone celular, monitoramento de atividades via software e aconselhamento por mentor.

A mãe de Rhianan acredita que sua filha nunca deveria ter sido indiciada.

Ela diz que a polícia "obviamente" tem que investigar e buscar evidências, mas ela acredita que as autoridades deveriam ter lidado com tudo de forma "completamente diferente".

"Eles deveriam tê-la tratado como uma vítima e não como uma terrorista. Ela é uma criança, uma criança autista. Ela deveria ter sido tratada como uma criança que foi explorada sexualmente."

Christopher Cook, o americano que explorou Rhianan, se declarou culpado nos EUA de uma conspiração terrorista neonazista junto com outras pessoas para destruir uma rede elétrica. Ele estava sob fiança aguardando sentença.

Mas a BBC descobriu que o tribunal de Ohio só recentemente tomou conhecimento da conduta predatória de Cook em relação a Rhianan. Sua relação com a menina britânica não fazia parte do processo original contra ele, apesar de o FBI saber do abuso há muito tempo. Depois que o tribunal soube da relação, Cook foi colocado sob custódia em dezembro, antes da sentença.

Depois que a acusação contra Rhianan foi abandonada, a jovem optou por seguir morando no abrigo em Nottinghamshire e voltou a frequentar o programa Prevent.

Mas havia sinais de que ela não estava bem.

Nas semanas anteriores à sua morte, Rhianan pediu à mãe que a ajudasse a entrar em contato com um extremista neonazista nos EUA. Sua mãe denunciou isso ao abrigo. Ela diz que foi informada pelo serviço social e pela polícia que o contato com o extremista havia sido autorizado. Mas não está claro se de fato houve esse contato.

Sua mãe havia alertado o município de Derbyshire sobre o risco de Rhianan tirar a própria vida. Em e-mails para uma assistente social em 2021, ela escreveu: "espero que ela não tente se matar quando estiver sozinha em seu quarto."

Emily Carter diz que ficou tão preocupada com a aparência de Rhianan dias antes da sua morte que entrou em contato com o lar. Ela diz que alertou os funcionários de que sua filha "ia fazer alguma coisa" e pediu que eles a vigiassem. Mas mais tarde naquela semana, ela diz, três policiais estavam "na minha sala me dizendo que minha filha havia morrido enforcada".

Rhianan foi encontrada morta em maio, aos 16 anos. Haverá um inquérito sobre sua morte.

As organizações contatadas pela BBC disseram que não poderiam comentar detalhes de sua apuração até que o inquérito seja concluído.

 

Fonte: BBC News Brasil

 

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