O presentinho do general Villas Bôas a Bolsonaro: o diploma do Exército
Bolsonaro
havia acabado de ser eleito presidente da República – tomaria posse em um mês.
Era 29 de novembro de 2018, e ele estava de pé, em uma pequena sala na Escola
de Aperfeiçoamento de Oficiais (EsAO), de terno preto e gravata cinza listrada,
visivelmente emocionado. Bolsonaro não recebeu seu diploma em 1987 porque foi
acusado e condenado por um plano para plantar bombas em quartéis do Exército
para protestar contra os baixos salários. Agora, receberia finalmente o
documento que o consagraria como capitão do Exército.
Ao
seu lado, em meio a 11 oficiais-generais, estava o então comandante do
Exército, general Eduardo Villas Bôas, sentado em uma cadeira de rodas e com
aparelhos que o ajudavam a respirar por conta de uma doença degenerativa. Ao
lado dele estava a sua esposa, Maria Aparecida, vestida elegantemente. Estava
presente, ainda, o general Mauro Cesar Lourena Cid, que foi colega de Bolsonaro
na academia e é pai de Mauro Cid, acusado de participar
de um esquema de Caixa Dois no Planalto.
O
comandante da EsAO, general Marcos de Sá Affonso da Costa, abriu a cerimônia,
que disse ser “singela” mas revestida de significado, “porque pretendemos aqui
reconhecer o esforço de um ilustre aluno da escola, que em breve estará
assumindo o comando do país”.
Quem
fez a entrega do diploma – colocado educadamente no seu colo – foi o próprio
general Villas Bôas, que disse: “muita honra, presidente”.
Bolsonaro
respondeu com uma promessa ao então comandante: “O senhor pode ter certeza,
muita coisa que nós aprendemos na vida militar, levaremos para o Planalto. Nós
temos uma chance ímpar de mudar o destino do Brasil. E não será eu sozinho,
será com mais pessoas, em grande parte militares das Forças Armadas que estão ao
nosso lado.”
“Juntos,
prezado comandante, o senhor tem história, nós pretendemos também fazer a nossa
história, a guinada do nosso país ao rumo daquilo que não devia ter saído,
naquele período de 20 e poucos anos atrás”, finalizou Bolsonaro, referindo-se à
ditadura militar. Nenhum dos generais presentes respondeu ou fez qualquer
defesa à democracia.
A
cerimônia ocorreu pouco antes da solenidade de diplomação e encerramento do
Curso de Aperfeiçoamento de Oficiais daquele ano, ocorrida na Vila Militar, no
Rio de Janeiro. Mas foi mantida como um evento à parte, de baixo perfil.
Jair
Bolsonaro recebe diploma de pós-graduação na EsAO em 2018
Bolsonaro
compareceu à solenidade pública na qual foram diplomados 420 capitães da linha
bélica, 15 oficiais das chamadas Nações Amigas, seis oficiais fuzileiros navais
e 29 oficiais médicos. Ele chegou a dar declarações à
Agência Brasil de
que as recordações do período em que cursou a Aman “o emocionam”, mas não
mencionou o diploma que acabara de receber.
·
Entrega só foi possível por portaria publicada dois
dias depois da eleição
Não
era a primeira vez que Bolsonaro se encontrava com o então comandante do
Exército naquele ano de eleição. Villas Bôas – autor do tweet que demandava ao
STF a manutenção de Lula na prisão seis meses antes – encontrou-se duas vezes
com o então candidato e outra vez logo depois que Bolsonaro foi eleito.
Mas
a cerimônia de formatura, um agrado ao futuro Comandante Supremo das Forças
Armadas, não gerou nenhum documento oficial, segundo o Comando do Exército
respondeu à Agência Pública via
Lei de Acesso à Informação.
Segundo
a resposta à LAI, Bolsonaro “concluiu, com aproveitamento, em 1987, o Curso de
Aperfeiçoamento de Oficiais de Artilharia da Escola de Aperfeiçoamento de
Oficiais (EsAO)”.
A
resposta não diz por que ele não recebeu o diploma na época, mas explica que
com a Lei de Diretrizes e Bases, houve uma equivalência entre o curso da EsAO e
cursos de pós-graduação.
Entretanto,
a nova diplomação só foi permitida, segundo a resposta, a partir de uma
portaria expedida em 31 de outubro de 2018 – dois dias depois de Jair Bolsonaro
vencer a eleição para presidente da República. A portaria 238 aprova as regras
para a expedição de novos diplomas.
Ex-presidente
conversa com generais em cerimônia especial de formatura
“O
Sr. Presidente da República Jair Messias Bolsonaro é um dos mais de 20.000
oficiais do Exército que fazem jus ao diploma de pós-graduação, por haver se
graduado antes de 1999. Tal reconhecimento de direito não necessita de qualquer
requerimento ou procedimento, uma vez que está garantido pela Portaria nº 238,
de 31 de outubro de 2018, a qual aprova as Instruções Reguladoras do Suprimento
de Diplomas, Certificados, Apostilamentos e Registros do Sistema de Educação
Superior Militar do Exército, cabendo à EsAO reconhecer e fornecer um novo
diploma aos graduados, nos anos anteriores a 1999”, diz a resposta à LAI.
“Quanto
à entrega do diploma físico, o Oficial poderá fazer uma solicitação à Escola, a
qualquer momento. No caso do Sr. Presidente da República, à época recém-eleito
para o cargo, após agendamento informal, decidiu-se entregar o diploma, em 29
de novembro de 2018, em singela cerimônia no salão de honra da Escola, com a
presença do Comandante do Exército. Naquela ocasião, não foram expedidos
documentos sobre o assunto”.
Além
de Villas Bôas e da esposa, do comandante da EsAO e do general Cid, estavam
presentes na cerimônia os ex-comandantes do Exército, generais Gleuber Vieira,
e Enzo Martins Peri; o comandante logístico, general Carlos Alberto Neiva
Barcellos; o comandante do Comandante de Operações Terrestres, general José
Luiz Dias Freitas; e o ex Chefe do Estado-Maior do Exército e antigo Comandante
da EsAO, Renato Cesar Tibau Da Costa. Estavam também o general Edson Leal
Pujol, Chefe do Departamento de Ciência e Tecnologia e futuro comandante do
Exército demitido por Bolsonaro em 2021 por ser legalista; e o general Luís
Carlos Gomes Mattos, futuro presidente do Superior Tribunal Militar (STM)
durante o governo Bolsonaro.
·
Um sonho realizado
Jair
Bolsonaro concluiu os créditos para se formar na EsAO como oficial de
artilharia com uma nota 7,68, segundo detalha o livro “O cadete e o Capitão”,
do jornalista Luiz Maklouf Carvalho. Mas, em meio a um processo aberto no
Conselho de Justificação, o então Ministro do Exército, general Leônidas Pires
Gonçalves, decidiu que ele deveria ser desligado “por faltar com a verdade” –
Bolsonaro negou que tivesse feito os croquis de bomba
publicados pela revista Veja e ainda ameaçou a jornalista que o
denunciou. Para o Conselho, Bolsonaro foi condenado por “ter tido conduta
irregular” e “praticado ato que afete a honra pessoal, o pundonor militar ou o
decoro da classe”.
Assim,
como resultado dessa decisão, Bolsonaro chegou a ser expulso da própria
formatura, segundo ele relatou no seu recurso ao STM:
“Desgraçadamente
vejo agora a tentativa de afastar-me oficialmente do Exército – que verbalmente
já o fui – em nome da honra militar que eu teria conspurcado”, escreveu.
“Repudio o tratamento que tenho sofrido […] Desprezo mais recente, ao me ver
negado o diploma de conclusão [e da ] expulsão, cujo pródromo
configurou-se na ordem para retirar-me do recinto da EsAO, onde me encontrava
para assistir à solenidade da formatura”.
No
final, o STM absolveu-o por 4 a 9, em junho de 1988. Mas Bolsonaro já havia
pedido desligamento do Exército para iniciar sua carreira na
política.
No
seu livro de memórias, o general Eduardo Villas Bôas diz que soube da situação
de Bolsonaro quando era comandante da EsAO, entre 2006 e 2008. “[Ele] Concluiu
o ano letivo, o que constatei quando no comando da EsAO; ele me pediu para
verificar o que constava a respeito”, explicou. “Depois de
eleito presidente, solicitou que recebesse o diploma, o que foi feito em uma
cerimônia simples.”
Semanas
depois da diplomação, na sua posse como presidente da República, Bolsonaro
agradeceu pessoalmente a Villas Bôas. “General Villas Bôas, o que já
conversamos ficará entre nós. O senhor é um dos responsáveis por eu estar
aqui”, disse.
Villas
Bôas deixou o comando do Exército dez dias depois, mas, mesmo tendo sido reformado por
invalidez,
foi trabalhar como assessor especial no Gabinete de Segurança Institucional,
ganhando um salário extra de R$ 13,6
mil mensais, além da aposentadoria de R$ 36,9 mil. O governo Bolsonaro eliminou o teto
salarial para militares aposentados, permitindo o acúmulo de salários.
A
reportagem pediu via LAI a frequência do general no GSI e uma lista das
reuniões das quais teria participado, mas não teve resposta. O GSI afirmou
apenas que em 2020 ele passou ao regime de “teletrabalho” por causa da
covid.
“Tratam-se
de atribuições de assessoramento, que podem ser exercidas por qualquer
servidor, exigindo tão somente capacidade intelectual e de comunicação. A
capacidade de comunicação de Eduardo Dias da Costa Villas Bôas encontra-se
preservada e sua capacidade intelectual de alto nível é pública e notória”,
descreveu o GSI.
E
acrescentou que a reportagem não deveria questionar se o ex-comandante estava
de fato trabalhando ou não.
“Ressalta-se
que questionamentos em relação à capacidade laboral de pessoas com deficiência
vão de encontro às ações e políticas públicas nacionais e internacionais de
inclusão de tais pessoas no mercado de trabalho”.
Villas
Bôas foi exonerado em 21 de junho de 2022. Em dezembro, sua esposa frequentou o
acampamento golpista montado diante do quartel-general do Exército em
Brasília.
Ø
Atas
mostram que resolução sobre presos provisórios incomodou Ministério da Justiça
A
Covid-19 atingiu mais de 80% das prisões em 14 estados brasileiros, revelou
reportagem da Agência Pública em maio de 2021. Entretanto, 233 atas do Comitê
de Crise da Covid analisadas pela Pública indicam que o Ministério da Justiça e
Segurança Pública (MJSP) parecia estar mais preocupado com a Resolução nº
62/2020 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que recomendou, entre outras
medidas, a reavaliação de prisões provisórias, do que com a disseminação da
doença entre pessoas privadas de liberdade.
A
primeira citação ao sistema prisional — marcado pela superlotação, falta de
estrutura e de atendimento médico, condições propícias para a disseminação da
Covid-19 — foi feita na primeira reunião do CCOP, em 17 de março de 2020, pelo
Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP). O responsável pela pasta
ainda era o ex-ministro e atual senador, Sergio Moro (União Brasil), que
deixaria o governo no dia 24 do mês seguinte. Naquela reunião, o MJSP apenas
comunicou que o CNJ havia publicado a Resolução nº 62/2020, informou que houve
algumas fugas de pessoas em regime semiaberto, e solicitou equipamentos de
proteção individual (EPIs). O pedido por EPIs se repetiria em outras reuniões,
em especial visando os servidores do sistema.
Em
6 de abril de 2020, o MJSP voltou a se pronunciar sobre o tema, dessa vez com
críticas à Resolução. “Estão preocupados com o sistema carcerário devido a
Recomendação no 62, de 17 de março de 2020, do Conselho nacional de Justiça
(CNJ), que já colocou mais de 32.000 presidiários nas ruas, mesmo sem ter, até
a presente data, relato de presos contaminados pela Covid-19, dado que se
mantém isolados e sem visitas íntimas (sic)”, registrou a ata.
Oito
dias depois, em 14 de abril daquele ano, ainda com Moro de Ministro, o MJSP
reconheceu que a disseminação da doença estava ocorrendo dentro das detenções,
mas ressaltou que nenhum óbito pela doença havia sido registrado. De acordo com
a ata, os integrantes do ministério se disseram “preocupados com o Sistema
Prisional, onde testaram positivo para Covid-19, 26 presos, e ainda 145
suspeitos, porém, não houve óbito ainda no Sistema Carcerário”.
Em
17 de abril, o Ministério da Justiça e Segurança Pública relatou ter feito uma
reunião com os Secretários Estaduais de Segurança Pública. A ata registra ainda
que: “externaram preocupação com relação à disponibilidade de EPIs e também no
tocante aos efeitos da Resolução 62/CNJ e da possível decisão de juízes na
liberação pouco cautelosa de presos”. No entanto, a ata não deixa claro se a
preocupação com a “liberação pouco cautelosa de presos” era do ministério ou
dos secretários de segurança pública.
Essa
reunião gerou um dos poucos encaminhamentos quanto ao tema: o MJSP ficou
responsável por monitorar “efeitos da Resolução 62/CNJ e da possível decisão de
juízes na liberação pouco cautelosa de presos”.
Três
dias depois, o MJSP relatava que houve “03 óbitos no Sudeste, sendo que 02
deles servidores e o outro detento”, ao que o Ministério da Saúde responde
prometendo a disponibilização de testes aos agentes de segurança pública. O
Subchefe de Articulação e Monitoramento, Heitor Abreu, “ofereceu auxílio na
questão logística para resolver ou mitigar essa questão”, registra o documento.
Até
março de 2022, última publicação do boletim do CNJ sobre contaminações e mortes
no sistema prisional, já haviam sido registrados 661 óbitos por Covid-19 entre
pessoas presas (320) e servidores (341) desde o início da pandemia. O boletim
indicou ainda a existência de 108.358 casos, 75.337 entre os presidiários e
33.021 entre os agentes prisionais.
Essas
foram as principais citações sobre a Covid-19 no sistema prisional nas atas do
Comitê de Crise. Em nenhum dos casos de “preocupação” citados houve
encaminhamentos voltados às pessoas privadas de liberdade.
A
reportagem buscou nos documentos todos os registros ligados às palavras
“prisional”, “carcerário” e “preso”, e obteve 10 registros de discussões. Os
três registros que não foram abordados nesta matéria se referem à campanha de
vacinação de gripe, a um repasse de dados do Espírito Santo e uma preocupação
do MJSP de que presos se cadastrariam para receber o auxílio emergencial
indevidamente. Os outros que não foram citados diretamente repetem falas sobre
a necessidade EPIs, que já foram contempladas.
Ao
menos 70 vezes o MJSP compareceu à reunião do CCOP e não fez nenhuma
“consideração relevante”, de acordo com os registros das atas. O ministério
registrou ainda no mínimo 32 ausências — o registro de presenças não é
padronizado, o que impede a contagem exata.
A
única ação concreta abordada nas atas para impedir a disseminação da Covid-19
no sistema carcerário é a distribuição de EPIs aos servidores.
No
dia 13 de abril, os documentos registram que a mineradora Vale doou
equipamentos de proteção individual. O Ministério da Justiça e Segurança
Pública então ressalta a importância de “uma ampla divulgação dessa doação aos
servidores do sistema carcerário”, e a Secretaria de Articulação e
Monitoramento pede para a “SECOM [Secretaria de Comunicação da Presidência da
República] e ASCOM [Assessoria de Comunicação] serem avisadas sobre os locais
de entrega e quanto a questão da publicidade”.
A
Pública já mostrou que o governo utilizou a estratégia de divulgar informações
positivas e omitir dados negativos para diminuir as críticas da sociedade civil
e da imprensa em casos como a crise sanitária de Manaus e a disseminação da
Covid-19 entre populações tradicionais.
Nesta
série de reportagens, a Agência Pública analisou 806 páginas que são o registro
escrito de 233 reuniões organizadas pelo CCOP (Centro de Coordenação das
Operações do Comitê de Crise da Covid-19) entre março de 2020 e setembro de
2021. O órgão era vinculado à Casa Civil, à época chefiada pelo General Braga
Netto. Os documentos foram disponibilizados via Lei de Acesso à Informação no
fim de janeiro deste ano. As atas são inéditas e nunca foram analisadas pela
CPI da Covid.
Depois
de iniciada a publicação desta série, senadores membros da CPI disseram que vão
pedir a reabertura de inquéritos com base nas novas revelações.
Realizadas
na Sala 97 do Palácio do Planalto, às 233 reuniões envolveram representantes de
26 órgãos da Esplanada, incluindo os principais ministérios, agências
reguladoras, bancos públicos, a Polícia Federal e a Abin (Agência Brasileira de
Inteligência). O CCOP foi criado a partir de um decreto de Bolsonaro logo no
início da pandemia, em 24 de março de 2020.
Fonte:
Agencia Pública
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