Ferrovia, estrada e
petróleo na Amazônia: os projetos 'antiambientais' no governo Lula
Na
noite de 30 de outubro de 2022, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) subia ao palco
cercado de aliados para comemorar a vitória nas eleições e conquistar seu
terceiro mandato. Após quase quatro anos de aumento nas taxas de desmatamento
na gestão de seu antecessor, Jair Bolsonaro (PL), Lula fez uma promessa que
animou ambientalistas do Brasil e do mundo.
"Vamos
provar mais uma vez que é possível gerar riqueza sem destruir o meio
ambiente", disse Lula.
Cinco
meses depois deste discurso, a realidade se impôs e, agora, o governo Lula tem
pelo menos três grandes dilemas que podem definir o futuro de parte da Amazônia
e contribuir para a emissão de gases do efeito estufa.
Os
projetos foram elaborados em governos passados, mas ganharam ou mantiveram
status de prioritários ou estratégicos na nova gestão de Lula: a pavimentação
da BR-319, que corta uma das regiões mais preservadas da Amazônia; a exploração
de petróleo na região da foz do Rio Amazonas, uma das regiões mais ambientalmente
sensíveis do país; e o complemento das obras da Ferrogrão, uma estrada de ferro
projetada para escoar a produção de grãos do Centro-Oeste pela região Norte,
mas que, segundo entidades, pode causar prejuízo a inúmeras comunidades
indígenas.
Os
três projetos foram colocados como prioritários pela atual gestão e pela
Petrobras, que agora está sob a liderança de um indicado pelo presidente Lula,
o senador Jean Paul Prates (PT-RN).
Especialistas
alertam para o que seriam projetos "antiambientais" e afirmam que a
execução deles na forma como está inicialmente prevista representa uma
contradição grave em relação ao discurso ambiental de Lula e o que pode vir a
ser a prática do seu terceiro mandato.
Procurado
pela reportagem, o Palácio do Planalto não respondeu. A Petrobras disse que
suas atividades na foz do Rio Amazonas estão em fase inicial e que são
desenvolvidas sob "protocolos rigorosos de responsabilidade social e
ambiental". O Ministério dos Transportes disse que não dará "nenhum
passo sem alinhamento prévio com o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do
Clima".
• BR-319: 'Bomba de desmatamento'?
A
BR-319 é uma rodovia federal que liga Porto Velho (RO) a Manaus (AM). Ela tem
aproximadamente 880 quilômetros e corta uma das regiões mais preservadas da
Amazônia, conhecida como o interflúvio dos rios Purus e Madeira.
No
início do ano, o governo Lula colocou a rodovia na sua lista de obras
prioritárias, conforme nota enviada pelo Ministério dos Transportes à BBC News
Brasil.
A
BR-319 foi construída nos anos 1970, durante a ditadura militar, mas, sem obras
de conservação, ficou praticamente intransitável durante anos.
A
partir de 2015, o governo federal começou a dar sinais de que poderia
repavimentar a rodovia.
Nos
últimos anos, obras de recuperação foram iniciadas nas duas extremidades da
rodovia e o governo começou o processo de licenciamento para pavimentar o
chamado "trecho do meio", com uma extensão de aproximadamente 400
quilômetros.
Defensores
da obra apontam que trechos sem pavimento causam prejuízos a quem precisa
passar por lá - e apontam que as alternativas são transporte aéreo ou por
barco.
Ambientalistas
e cientistas, no entanto, alertam que a recuperação da rodovia pode levar ao
desmatamento sem controle da região, a exemplo do que aconteceu na BR-163, que
liga Mato Grosso ao Pará. Nessa região, ocorreu o que os cientistas chamam de
"efeito espinha de peixe", que é a abertura de pequenas estradas
vicinais conectadas à rodovia central e que servem para viabilizar o
desmatamento da área.
O
temor é que o de que a finalização da BR-319 aumentaria a especulação fundiária
na região e facilitaria o acesso de grileiros e desmatadores.
Um
estudo realizado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), divulgado em
2020, estimou que a pavimentação da rodovia poderia quadruplicar o desmatamento
na região cortada por ela até 2050, lançando mais de 8 bilhões de toneladas de
CO2 na atmosfera, contribuindo com o aquecimento global.
Apesar
disso, em julho de 2022, ainda durante o governo do então presidente Jair
Bolsonaro, o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais
Renováveis (Ibama) concedeu uma licença-prévia para a obra do trecho do meio.
Essa
licença ainda não autoriza o início das obras, mas é uma espécie de
"atestado" de que ela é ambientalmente viável e dá sinal verde para
que as próximas etapas dela continuem.
Para
o secretário-executivo da organização não-governamental Observatório do Clima,
a pavimentação da BR-319 coloca o governo Lula diante de um dilema.
"O
governo vai ter que escolher. Ou ele vai controlar o desmatamento ou ele vai
fazer a BR-319 do jeito como ela está sendo licenciada. As duas coisas não dá
pra ter. A pavimentação na forma como está o projeto é uma bomba de
desmatamento. Vai ser muito difícil proteger a Amazônia fazendo obras que
incentivam o desmatamento", disse Astrini.
Márcio
Astrini afirma que a licença-prévia concedida pelo governo anterior não
determina condicionantes consideradas importantes para impedir ou dificultar o
avanço do desmatamento desordenado na região, como a criação de unidades de
conservação ao longo da rodovia. Segundo ele, a área não tem uma estrutura
sólida de governança que barre o desmatamento.
"Com
o crime ambiental muito mais empoderado como está hoje, a estrada vai ser uma
espécie de tapete de concreto para o desmatador e para o grileiro",
afirmou o especialista.
Para
prosseguir, a obra precisa de novas licenças do Ibama.
À
BBC News Brasil, o presidente do órgão, Rodrigo Agostinho, disse que a
concessão da licença-prévia intensificou o desmatamento na região e afirmou que
o órgão analisa recomendações feitas pelo Ministério Público Federal (MPF)
sobre a obra.
Agostinho
admitiu que existe a possibilidade de a licença-prévia concedida no ano passado
ser suspensa.
"O
MPF fez várias recomendações ao Ibama e estamos analisando todas elas [...]
Dependendo das recomendações que foram feitas, se forem acatadas, existe
possibilidade, inclusive, de suspensão dessa licença prévia. Estamos tratando
isso com muita cautela", disse Agostinho.
• Petróleo na foz do Rio Amazonas
Outro
projeto que vem deixando ambientalistas e populações tradicionais do Amapá
preocupados é a exploração de petróleo na região conhecida como foz do Rio
Amazonas.
A
região é considerada extremamente sensível e os impactos da exploração de
petróleo na área ainda são desconhecidos.
Em
2017, ambientalistas do Greenpeace realizaram uma expedição que conseguiu
registrar em vídeo a existência de recifes de corais na região que vinha sendo
cobiçada por petroleiras. Em 2020, a empresa Total, da França, desistiu de
explorar petróleo na região.
Apesar
disso, a Petrobras colocou a exploração na área, que fica dentro da chamada
Margem Equatorial, como uma de suas prioridades para os próximos anos. A
posição é anterior ao início do governo Lula, mas foi mantida pela atual
gestão.
Em
março, logo após assumir a presidência da estatal, Jean Paul Prates, indicado
por Lula, disse a analistas de bancos que a Petrobras pretende prosseguir com
os planos na Margem Equatorial.
“Planejamos
um futuro promissor na Margem Equatorial nas regiões Norte e Nordeste”, disse
Prates, segundo reportagem do jornal Valor Econômico.
Em
nota enviada à BBC News Brasil, a estatal reforçou a fala de Prates.
"A
Margem Equatorial é considerada uma área estratégica para a Petrobras e se
encontra em fase de estudos para avaliar seu potencial e viabilidade
comercial", disse a empresa.
A
expectativa é de que os investimentos nessa região sejam de US$ 3 bilhões nos
próximos cinco anos.
O
projeto pode se tornar um dos pontos de tensão entre a ministra do Meio
Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, e o presidente Lula.
Em
entrevista publicada ao site Sumaúma, Marina Silva admitiu que a exploração na
foz do Amazonas inspira cuidados, mas não adiantou que posição o Ibama daria sobre
o assunto.
"Estou
olhando para esse desafio do petróleo na foz do Amazonas do mesmo jeito que
olhei para (Usina Hidrelétrica de) Belo Monte. É altamente impactante, e temos
instrumentos para lidar com projetos altamente impactantes", disse.
O
temor entre ambientalistas é de que a exploração de petróleo nessa região possa
afetar ecossistemas ainda pouco conhecidos. Um dos pontos levantados é a falta
de conhecimento sobre a dinâmica das marés na área e a influência da vazante do
rio Amazonas.
Atualmente,
a Petrobras aguarda uma licença do Ibama para que a empresa possa perfurar um
poço na costa do Amapá, a aproximadamente 2,8 mil metros de profundidade. Caso
a licença seja dada, a empresa deverá perfurar o poço que pode indicar se a
exploração de petróleo na região é economicamente viável ou não.
Para
Márcio Astrini, do Observatório do Clima, além dos riscos aos ecossistemas
locais, a aposta na exploração de petróleo é uma contradição no discurso de
Lula, que prometeu conduzir o Brasil para uma transição energética e uma
economia de baixo carbono.
Isso
acontece porque implicaria em mais investimentos na extração de combustíveis
fósseis que contribuem para o aquecimento global enquanto diversos países
aumentam suas apostas em fontes de energia limpa.
"Isso
é grave tanto do ponto de vista dos riscos mais imediatos para os ecossistemas
e para a população que vive ali, quanto pela possibilidade de extrairmos mais
petróleo num momento em que a gente deveria repensar esse tipo de aposta",
diz Astrini.
À
BBC News Brasil, Rodrigo Agostinho, do Ibama, afirmou que a equipe técnica do
órgão está analisando o pedido de perfuração da Petrobras e que o órgão deverá
dar uma resposta em até 30 dias.
• Ferrovia, a floresta e os indígenas
A
EF-170, conhecida como Ferrogrão, é um projeto de ferrovia que liga o município
de Sinop, em Mato Grosso, a Miritituba, no Pará.
A
ideia é escoar a produção de grãos do norte mato-grossense em direção ao Rio
Tapajós, de onde seguiria em barcaças até Barcarena, no Pará, e de lá para o
exterior, em navios.
Ela
ainda não foi construída e o processo de concessão para que as obras fossem
iniciadas foi suspenso em 2021, por uma decisão liminar (temporária) do
ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes.
A
decisão teve como base um pedido do PSOL que contestou o fato de que, para que
o traçado original fosse mantido, seria necessário alterar a área da Floresta
Nacional do Jamanxim, no Pará, uma unidade de conservação federal já afetada
pelo avanço do garimpo e desmatamento ilegais.
A
obra também enfrenta questionamentos feitos por povos indígenas, que acionaram
o Tribunal de Contas da União (TCU) alegando que não foram consultados pelo
governo sobre os impactos que algumas comunidades sofreriam com o projeto.
O
Brasil é signatário da Convenção nº 169 da Organização Internacional do
Trabalho (OIT), que determina a consulta prévia de populações originárias em
caso de projetos que possam afetá-las.
Uma
das etnias que exige ser consultada é a Kayapó.
Para
a assistente-técnica do Instituto Socioambiental Mariel Nakane, os possíveis
impactos da Ferrogrão precisam ser vistos dentro do contexto da região. Ela
argumenta que a obra, ao facilitar o escoamento de grãos na região, diminuindo
os custos de produção, pode aumentar a especulação fundiária e atrair ainda
mais desmatamento em Mato Grosso e no Pará em áreas próximas a terras
indígenas.
"Não
podemos ver a obra de forma isolada. Os estudos que existem apontam que ela
pode ser um vetor de pressão para o desmatamento na região e isso afeta
populações tradicionais que já estão sob enorme pressão", afirmou.
Rodrigo
Agostinho, do Ibama, afirmou que o órgão aguarda o julgamento, pelo STF, da
ação movida pelo PSOL. O mérito da ação está previsto para ser avaliado pela
Corte em maio deste ano.
• 'Contradição'?
Para
Márcio Astrini e Mariel Nakane, a priorização de projetos como a BR-319,
exploração de petróleo na Margem Equatorial e a Ferrogrão são uma contradição
do governo Lula.
"É
uma contradição porque acontece em um governo que diz ter uma agenda ambiental
diferente, que se pretende ser liderança nesse assunto", segundo Astrini.
Nakane
diz: "Isso é uma contradição porque a gente percebe que a agenda de
investimentos do governo está caminhando em paralelo com a agenda ambiental.
Isso nos preocupa porque parece haver uma caixa-preta no processo de definição
dessas obras prioritárias".
Indagado
sobre a BR-319, Rodrigo Agostinho, do Ibama, negou que haja "bateção de
cabeça" entre diferentes órgãos do governo.
"Não
há bateção de cabeça. O que há é cada órgão fazendo a sua atribuição. A do DNIT
é tocar as estradas. A nossa é cuidar do meio ambiente", afirmou.
Sobre
a exploração de petróleo na Margem Equatorial, Agostinho disse que o Ibama não
é responsável pela política energética do país, mas que, como cidadão, ele
preferia ver a Petrobras investindo em energias renováveis.
"Como
cidadão brasileiro, meu sonho é ver a Petrobras investindo numa transição
energética justa e sustentável que coloque o Brasil na liderança mundial de
energia limpa e renovável. Agora, como presidente do Ibama, vamos analisar os
empreendimentos que tramitam com o rigor necessário porque é uma região
bastante sensível", disse.
Fonte:
BBC News Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário