Economia: tudo o
que falta mudar
A
muralha de silêncio erguida para que o Brasil mantenha-se tão desigual e
regredido foi vazada brevemente esta semana. Pensadores convidados pelo André
Lara Resende sustentaram, num seminário promovido pelo BNDES1 no início desta
semana (20 e 21/3), ao menos quatro ideias esperançosas, e contrárias à
ortodoxia econômica que sufoca o país há muito. Num Ocidente mergulhado em
crise civilizatória e acossado pelo fascismo, afirmam eles, um processo de
reconstrução nacional com redução das desigualdades, desencadeado por aqui,
pode ter repercussão global. O prestígio internacional de Lula é um catalisador
muito potente.
Falta
romper obstáculos. A taxa de juros obscena mantida pelo Banco Central em favor
do rentismo é o primeiro – mas não o único. Ao invés de lançar sinais de
bom-mocismo ao BC e aos oligarcas financeiros, o governo federal pode, por meio
do ministério da Fazenda, fazer a sua parte. Significa multiplicar o
investimento público, em duas direções complementares: serviços públicos e
infraestrutura. Além de melhorar as condições de vida da população, desfazendo
a sensação de desamparo que alimenta o fascismo, estas ações são capazes de
gerar milhões de postos de trabalho.
De
onde virão os recursos? Não faltam ao Estado – que emite todos os anos centenas
de bilhões de dólares não previstos no Orçamento, para pagar juros ao 0,1% –
condições de financiar este movimento. Mas no seminário surgiu uma ideia
suplementar. Num ambiente parlamentar fisiológico, em que cada mínima elevação
do gasto público é negaceada por deputados e senadores em busca de “compensações”
pelos seus votos, talvez os capitais externos tenham papel acelerador. A visita
que Lula inicia à China neste domingo ajudará a testar a hipótese.
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A
ambição do seminário, de arejar um debate econômico marcado pelo marasmo e
pelos dogmas, ficou clara já nas intervenções de abertura. André Lara Resende,
em cujo currículo está a condição de cocriador do Plano Real, fez uma das
provocações essenciais [veja no vídeo 1, entre 1h14m22 e 1h26m20]. Lembrou que
a teoria não pode permanecer cega aos fatos novos e marcantes ocorridos nos
últimos anos. Referia-se à criação maciça de dinheiro pelos Estados, para
salvar o sistema financeiro na crise de 2008 e na pandemia. Este movimento não
provocou inflação – frisou ele – e desmente a velha teoria quantitativa da
moeda, base teórica usada como pretexto pelos bancos centrais do Ocidente para
elevar as taxas de juros. Uma nova concepção, prosseguiu André, precisa rever o
viés antiestatista, que marcou os anos do neoliberalismo, e perceber que a ação
de um “Estado competente” tornou-se cada vez mais essencial para ativar as
economias, livrá-las do peso do rentismo e voltá-las à realização dos objetivos
éticos das sociedades. (Vale acompanhar uma exposição mais detalhada das ideias
do economista, em aula seminal que ele proferiu na Unicamp, a convite da
professora Simone Deos, em 2022).
A
mudança nos rumos do debate macroeconômico, que tarda tanto em chegar ao
Brasil, foi realçada na intervenção de Joseph Stiglitz, Nobel de Economia, que
fez questão de vir ao seminário em pessoa e dialogou diretamente com Lara
Resende [vídeo 1, de 1h26m30 até 2h06m25].“Há hoje a compreensão profunda de
que os mercados, sozinhos, não solucionam os problemas das sociedades – nem os
da economia”, frisou ele. Na revisão das velhas teorias, acrescentou, algumas
mudanças estão ficando claras. Os países que seguiram o neoliberalismo
estagnaram. E a crença no “trickle-down” – ou seja, a ideia de que o dinheiro
despejado no topo da pirâmide social escorreria para o conjunto da sociedade –
fracassou inteiramente. Ela só resultou em mais desigualdade. “É ótimo”,
avançou o pesquisador, “que um novo governo Lula possa assumir sob os novos
ares”.
Feitas
estas considerações conceituais, Stiglitz passou a debater explicitamente o
cenário brasileiro. Seu foco concentrou-se em desnudar a política do Banco
Central, demonstrando que seu objetivo não é combater a inflação, mas manter e
até ampliar a concentração de riquezas. Nas condições atuais, argumentou o
Prêmio Nobel, juros altos não debelam a espiral de preços, podendo inclusive
expandi-la ainda mais. É que a inflação de hoje não é causada por excesso de
demanda, mas por estrangulamento de pontos importantes das cadeias produtivas.
Para saná-lo, seria preciso investir: por exemplo, na produção de alimentos
para o consumo interno, de chips para automóveis e eletrônicos, ou de casas
para suprir o déficit habitacional. Ocorre que, ao remunerar as aplicações
especulativas com taxas de juro real muito superiores até mesmo que o
crescimento da economia chinesa, o BC desestimula estes investimentos. As
empresas em condições de especular, ou de exercer controle monopolista sobre os
mercados (as concessionárias de serviços públicos, por exemplo), lucram – mas
não aplicam seus ganhos na expansão das atividades.
A
economia patina. Stiglitz citou dados eloquentes. Entre 2010 e 2021, o PIB
brasileiro per capita cresceu mirrados 0,53% ao ano, muito abaixo dos 4%
alcançados pelos países de renda média-alta e mesmo do 1,4% nas economias
maduras da OCDE. “Os números da taxa de juros brasileira – 13,75% ao ano, ou 8%
acima da inflação – teriam condenado à morte qualquer economia. Se o Brasil
escapou, foi porque ainda conta com os bancos públicos como o BNDES”, concluiu
o economista.
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Menos
de 48 horas depois de ele falar, o Banco Central brasileiro manteria, em
reunião mensal, sua aposta na taxa de juros mais alta do planeta e na política
que mediocriza a economia brasileira para que siga intacta a captura da riqueza
social pelos mais ricos. Dirigido por um bolsonarista que tem mandato até o
final de 2024, o BC dificilmente mudará, exceto se crescer muito a pressão
política e social sobre ele. E o que fazer até lá? Foi ao tratar deste tema que
o seminário do BNDES apontou a importância crucial do investimento público.
Evidenciou-se, por consequência, o erro desastroso de perspectiva do ministério
da Fazenda, ao não adotar ações que ampliem este investimento, preferindo
apostar até o momento num “ajuste fiscal”. Dois expositores ilustres abordaram
o tema: a indiana Jayathi Ghosh e o norte-americano Jeffrey Sachs.
Ghosh,
que é professora na Universidade de Massachussets (EUA) e cocoordena a ICRICT –
Comissão Independente para a Reforma da Tributação Internacional sobre as
Corporações – usou um termo forte e raro no ambiente macroeconômico:
“masoquista”. É esta, segundo ela, a impressão transmitida pelo Brasil, quando
adota por iniciativa própria medidas que restringem o investimento público, não
vivendo condições que o obriguem a isso [ver vídeo 2, entre 1h56m50 e 2h18m40].
“Não
consigo pensar em nenhum outro país que esteja obcecado em obter superávits
primários, quando não tem débito externo relevante e não está constrangido a
fazê-lo por um acordo com o FMI”, destacou Ghosh. Ela disse considerar a
ausência de um grande plano de investimentos públicos tão grave quanto as taxas
de juros estratosféricas impostas pelo Banco Central. E explicou por quê: “Os
programas sociais são ótimos, mas não bastam. Para transformar o país, vocês
precisam de gastos que só o Estado é capaz de realizar, porque têm como
objetivo reduzir a desigualdade. E são estes gastos, aliás, que estimularão as
empresas a também investir, para aproveitar as oportunidades criadas”.
Ao
final de sua fala, a economista enviou dois recados suplementares, que o ministério
da Fazenda também deveria ouvir. Nenhuma reforma tributária, afirmou ela,
ajudará a transformar a sociedade, se não tiver como foco central obrigar os
mais ricos – “o 0,1%, e não a classe média” – a pagar impostos relevantes. E o
Brasil não deveria apressar-se em ingressar na OCDE, nem em firmar acordos de
“livre” comércio como o que está em negociação com a União Europeia. Tais
compromissos impõem cláusulas que constrangem a ação dos Estados, em favor das
grandes corporações. Fazem-no, por exemplo, ao impedir determinados tipos de
tributação sobre as transnacionais e ao proibir o controle dos fluxos cambiais.
São limites que o Brasil por que aceitar.
Já
Sachs, diretor do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de
Colúmbia e assessor da secretaria-geral da ONU [vídeo 2, de 36m30s a 1h01m],
foi ainda mais enfático e incisivo ao abordar a necessidade de multiplicar o
investimento. Para ele, a falta deste componente é a razão essencial para a
estagnação da economia brasileira, há quatro décadas e – pior – para o fato de
o país estar se distanciando dos grandes saltos tecnológicos previstos para
futuro breve.
Se
a taxa geral de investimento já é raquítica (17% do PIB, contra cerca de 30% na
China, por exemplo), o caráter minúsculo inversões realizadas pelo Estado
impressionam ainda mais, afirmou o economista. Educação e Saúde públicas,
necessárias para a formação de capacidades humanas, recebem menos de 2,5% do
PIB cada uma. Como resultado, há um declínio abrupto da escola frequentada
pelas maiorias, o que se escancara em testes comparativos internacionais, como
o PISA e os da OCDE. Neles, o país, cujo PIB é hoje o 12º do mundo (tendo
chegado a ser o 6º), está atrás de mais de 80 nações. E a mesma condição
paupérrima, acrescentou Sachs, repete-se na infraestrutura – bastando, para
constatá-lo, observar a falta de saneamento básico, as precaríssimas condições
de transporte nas cidades, os riscos recorrentes de apagões elétricos ou a
ausência completa de uma rede ferroviária para passageiros.
Por
tudo isso, “não é momento pra austeridade fiscal, mas de aumento firme dos
investimentos públicos”, frisou o professor. Ao apontar os caminhos para
fazê-lo, uma de suas sugestões despertou polêmica. O Brasil tem, segundo ele,
capacidade de se endividar externamente. Poderia fazê-lo, em especial, em
agências oficiais – em vez de recorrer aos bancos privados. Entre tais
agências, Sachs destacou a Banco dos BRICS, que passará a ser presidido por
Dilma Rousseff e as “Novas Rotas da Seda” (ou “Iniciativa do Cinturão e da
Estrada”), por meio da qual a China tem investido centenas de bilhões de
dólares em todo o mundo.
Intervenções
posteriores discordaram deste aspecto da fala de Sachs. A indiana Jayathi
Ghosh, e o economista Leonardo Burlamaqui, do Centro Brasileiro de Relações
Internacionais (Cebri) e da UERJ, lembraram que não faltam ao Estado brasileiro
condições para criar recursos e destiná-lo aos investimentos públicos. E
realçaram que esta faculdade é hoje empregada para alimentar o rentismo.
Ainda
assim, há ao menos uma razão para observar a sugestão de Sachs de forma mais
atenta. A capacidade material do Estado brasileiro em criar moeda não se traduz
automaticamente em capacidade política. A razão é a captura das instituições
pelo capital financeiro. Para destinar bilhões de reais aos rentistas, basta
uma reunião do Banco Central, sem necessidade alguma de consulta ao Congresso
Nacional ou de alteração do Orçamento. No entanto, para cada autorização mínima
do Parlamento à elevação do investimento público é necessário muitas vezes
emendar a própria Constituição. Conservadores em sua grande maioria, os
parlamentares vendem muito caro o seu voto. Frequentemente, negam-no, tanto
para evitar que um governo democrático seja bem-sucedido quanto por estarem
alimentados pelo discurso em favor da “disciplina fiscal”.
Nestas
condições específicas, talvez a entrada de recursos estatais ou paraestatais
externos pudesse ter efeito-demonstração saudável. Ela tornaria visível a
importância do investimento público, sua capacidade de melhorar as condições de
vida e de gerar ocupações dignas em quantidade. E ajudaria a evidenciar o
absurdo das restrições atuais. O tema demanda mais debate e talvez a hipótese
de Sachs possa ser averiguada num evento importante, como a viagem que Lula
fará à China a partir de 26/3.
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É
impossível relatar todo o seminário neste texto breve. A programação completa
está disponível aqui e a íntegra das falas, nos vídeos citados no texto. Entre
os participantes brasileiros, destacaram-se três mulheres. A procuradora Élida
Graziane coordenou a segunda mesa do primeiro dia de maneira cortês, porém
mordaz. Fez questão de frisar mais de uma vez, aos palestrantes que convergiam
para cálculos sobre superávit primário, que o Orçamento não pode ser, num governo
democrático, um amontoado de planilhas – mas uma peça política destinada a
fazer valer os direitos inscritos na Constituição. A ministra Esther Dweck, que
falou na abertura, destacou a necessidade de abandonar a busca de índices que
agradam aos mercados e buscar o planejamento de médio e longo prazos. A
ex-ministra Tereza Campello, hoje diretora do BNDES (video 2, de 1h17m até
1h35m20) lembrou que, nos últimos anos, o país regrediu, em diversos campos, à
condição que vivia no início do século passado. Referiu-se ao trabalho escravo,
à fome, ao garimpo em áreas indígenas. Afirmou que o BNDES estará a serviço da
reconstrução nacional, objetivo proposto por Lula. Mas sustentou que este
processo não pode servir para reprisar as distorções do passado – em especial a
desigualdade. Suscitou um exemplo expressivo: o do agronegócio atual, que se
apresenta como “contemporâneo”, mas produz devastação ambiental e índices
baixíssimos de emprego, estando também associado a um sistema alimentar
deplorável. Beneficia-se ainda assim a grande massa de empréstimos destinados à
agricultura, restando à produção familiar menos de 20%…
O
ministro Fernando Haddad fez, à distância, a penúltima fala. Foi correto, porém
protocolar. Não se envolveu no debate dos temas suscitados pelos palestrantes –
embora estes dialogassem com opções políticas de sua pasta. Preferiu expor, sem
entrar em polêmicas, a agenda do ministério, baseada na apresentação de um
“novo arcabouço fiscal” e numa “reforma” tributária.
A
última intervenção coube a Aloísio Mercadante, presidente do banco. Saudou
Haddad e desejou-lhe sucesso. Mas realçou: “o BNDES está de volta”, frisando
que o banco teve historicamente, além do papel de financiador, o de espaço de
reflexão sobre os rumos da economia brasileira. Lembrou que na condução das
políticas econômicas conviveram, em muitos momentos da República, pontos de
vista diferentes – “uns pisando mais no acelerador, outros no freio”. E
prometeu: “estarei sempre do lado esquerdo”…
Houve
quem visse, nesta expressão de não-unanimidade, um alento e um alívio. É ótimo
saber que o debate está aberto no próprio governo e que, portanto, a Economia
brasileira não está fadada outra vez ao comando de um pensamento único.
Fonte:
Por Antonio Martins, em Outras Palavras
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