sexta-feira, 10 de março de 2023


Calígula: assassino e depravado ou vítima da História? Essa e outras 3 perguntas sobre imperador romano

O Império Romano forjou alguns imperadores particularmente ruins ao longo dos séculos.

Passaram pelo mais alto posto de comando da Roma Antiga figuras como Heliogábalo, que transitava pelo Palatino (a região central da cidade em que ficavam os palácios imperiais) em carruagens puxadas por escravos, e Cômodo, que, além de governante, era gladiador no Coliseu. Não há como esquecer Nero e seus excessos tirânicos.

Mas nenhuma lista dos piores imperadores romanos estaria completa sem Calígula, que ficou conhecido por suas orgias obscenas, por ter feito sexo com suas irmãs e por ser um torturador sádico. E, claro, era completamente louco.

No entanto, muito do que pensamos que sabemos sobre Calígula hoje vem de relatos (antigos e modernos) baseados na imaginação fértil de alguns autores, e não exatamente em registros históricos.

É verdade que poucas vidas experimentaram em apenas 28 anos altos e baixos tão significativos como a de Calígula.

Ele era o filho mais novo de Germânico, a estrela em ascensão da dinastia imperial e parte de uma família reverenciada, que combinava o glamour das celebridades com a monarquia e o culto à personalidade.

Germânico era sobrinho e filho adotivo do imperador Tibério, sucessor de Augusto, fundador do Império Romano e seu primeiro imperador.

        'Botinhas'

Sendo o mais jovem deste panteão romano, Calígula era mimado, o "queridinho" da família.

A alcunha de Calígula, que significa "botinhas" em português, lhe foi dada pelos soldados, na frente dos quais Germânico exibiu o filho vestido como um legionário romano em miniatura.

Desconfortável com o apelido, mais tarde insistiu que fosse chamado pelo primeiro nome que compartilhou com um ancestral famoso: Caio Júlio César.

O idílio da infância de Calígula acabou quando seu pai aparentemente contraiu malária no Egito e morreu na província da Síria - acreditando, até o último instante, que havia sido envenenado.

        A ameaça

A população de Roma compareceu em massa à cerimônia fúnebre. Uma das exceções, contudo, chamou atenção: a do imperador Tibério.

Os filhos de Germânico eram possíveis sucessores ao trono, o que tornava a família uma ameaça a seu número dois, o sinistro Sejano, que tinha suas próprias ambições.

A essa altura, Tibério estava mais velho e havia se recolhido em sua vila na ilha de Capri, deixando grande parte do governo de Roma nas mãos de Sejano.

Este, no entanto, não poderia fazer nada contra seus rivais enquanto a protetora deles, Lívia, mãe de Tibério, estivesse viva.

        De perseguido a herdeiro do trono

Foi somente após a morte de Lívia, em 29 d.C., que a mãe de Calígula e seus dois imãos mais velhos foram presos.

Nem mesmo a morte do braço direito de Tibério aliviou a pressão que Calígula vivia

A mãe foi açoitada com tanta violência que perdeu um olho e logo depois morreu (ou foi morta) no exílio. O irmão de Calígula, Druso, passou tanta fome na prisão que tentou comer parte do colchão. O outro irmão evitou um destino semelhante cometendo suicídio.

Antes que pudesse atacar Calígula, contudo, Sejano foi executado, quando Tibério percebeu a traição do subordinado.

Calígula, o último filho sobrevivente de Germânico, foi nomeado herdeiro imperial e ordenado a viver com Tibério em Capri.

Os seis anos seguintes foram penosos para Calígula.

O biógrafo Suetônio nos conta que ele era vigiado dia e noite em busca de sinais de insatisfação ou indícios de deslealdade - deliberada ou involuntária.

Não esqueçamos de que era uma época em que um senador podia ser condenado à morte por ir ao banheiro com um anel com o retrato do imperador.

        Ataque nervoso

Calígula ia para a cama todas as noites se perguntando se seria acordado ao amanhecer e levado às celas para sua execução sumária.

Mesmo enquanto Tibério estava morrendo, o volátil imperador poderia, subitamente, ter nomeado um sucessor diferente. Isso significaria a morte certa para Calígula, já que nenhum outro imperador toleraria sua reivindicação ao império.

Assim que ele faleceu, no ano 37 d.C., Calígula passou literalmente, da noite para o dia, da condição de quase refém a soberano oficial de Roma.

Seu retorno à capital do Império foi recebido com grande entusiasmo. Logo depois, ele teve um colapso nervoso.

Hoje, estamos familiarizados com o estresse pós-traumático: o verdadeiro impacto psicológico é sentido apenas depois do retorno à normalidade e à segurança. E depois de experimentar a alienação total das pessoas em volta que não compartilharam a mesma experiência.

O colapso de Calígula o deixou acamado e delirante, enquanto uma Roma ansiosa orava por sua recuperação.

Biógrafos antigos relatam que, quando se levantou de seu leito de doente, ele estava louco.

A verdade é pior.

        Descartável

Calígula, governante de Roma, esteva fora de ação por várias semanas e nada havia acontecido.

As províncias foram administradas como de costume, o Senado se reuniu e aprovou decretos e os prefeitos pretorianos administraram a Justiça.

O império tratou de seus assuntos pacificamente. A forma como o sistema imperial funcionava significava que, na prática, Roma realmente não precisava de um governante.

Calígula não era realmente necessário e, para alguém com a educação dele, "desnecessário" significava "descartável".

Sendo um jovem teimoso com um instinto de sobrevivência enraizado em cada fibra de seu ser, se propôs a retificar o que considerava uma situação inaceitável.

Ele queria se fazer necessário, queria tornar o Senado e o povo de Roma dependentes de seu governo.

Acabou se tornando uma estratégia fracassada e fatal, mas foi uma continuação lógica do que havia sido, até então, a experiência de vida de Calígula.

        Calígula contra o Senado

Ele imediatamente descartou o exemplo de seus antecessores, que passavam, cuidadosamente, a impressão de que trabalhavam juntos com o Senado, mesmo ordenando a morte de alguns senadores.

Ao tomar para si o controle do império, Calígula não só esteva à frente de seu tempo, como declarou guerra ao Senado.

Seu reinado não foi uma sequência de travessuras de um jovem louco, mas a história de uma luta política pela supremacia, contada pelos vencedores, para quem as leis de difamação não existiam e a verdade era opcional.

O último governante de Roma que se colocou abertamente acima do Senado foi Júlio César, e isso lhe custou a vida.

Apesar disso, Calígula fez o mesmo ao se declarar um deus. O que mais tarde acabaria se tornando mais comum, na época pareceu uma blasfêmia e uma atitude bizarra. Mas mesmo nessa época, havia precedentes. No leste da Grécia, os governantes eram quase que rotineiramente deificados, e seus sucessores macedônios tinham adotado o status divino dos faraós egípcios.

Mas o fato de Calígula ter concedido a si mesmo esse status em Roma só foi uma loucura no sentido de que era uma jogada política com grandes chances de dar errado.

        Propaganda armada

Calígula, o deus, tinha o apoio do povo e do Exército, mas era um neófito político com uma personalidade totalmente inadequada para lutar contra um Senado de armadores implacáveis e experientes em batalhas políticas selvagens. Muitas vezes fatais.

Os senadores tinham conexões e um controle oculto sobre as alavancas do poder.

Ambos os lados nesta luta usaram todos os meios à sua disposição, mas foi Calígula que levou a pior.

Uma das armas do Senado foi a propaganda. Na inventiva política romana, era comum jogar lama e mentiras sobre os outros, com total desprezo pela verdade, apenas para ver o que surtiria de efeito.

O Senado usou a reivindicação de Calígula de que seria um deus para expô-la como um ato de loucura.

Eles deturpavam todas as ações de um imperador que, de fato, era jovem e teimoso, e inventaram outras inexistentes.

Até o fato de ser amado por sua esposa foi usado como prova de sua suposta insanidade - com a história de que ele teria ameaçado torturá-la para saber por que ela o amava.

Ainda foi dito que ele era um bom pai, mas apenas porque sua filha, de apenas 1 ano, compartilhava de suas inclinações sádicas. Isso serviu, mais tarde, para justificar a crueldade dos assassinos que a mataram, batendo a cabeça da criança contra a parede.

        Incesto?

Ainda no tema das relações familiares, o biógrafo Suetônio relata que o imperador gostava de fazer sexo com suas irmãs durante os banquetes, enquanto os convidados olhavam horrorizados.

Mas o biógrafo escreveu isso um século depois, quando já estava bem estabelecida a fama de Calígula como um lunático. Àquela altura, muitos acreditavam que o imperador tinha se tornado um maníaco sexual porque teria recebido, de sua mulher, uma dose exagerada de uma poção do amor.

Como muitos dos detalhes do estado de espírito de Calígula vêm de Suetônio, a alegação de incesto merece ser melhor examinada.

O historiador Tácito nasceu 15 anos após a morte do soberano romano. Ao contrário de Suetônio, ele relata as acusações feitas contra Calígua como apenas isso — acusações, em vez de fatos — e não menciona nenhum desses banquetes.

Nem o filósofo — e senador — Sêneca, que conheceu Calígula, menciona esses banquetes.

Os dois autores abordam o assunto, mas se referem a relações incestuosas da irmã de Calígula, Agripina, apenas com seu tio e filho, não com seu irmão.

        Sedento por sangue?

Quanto à fama de assassino, há uma nítida escassez de vítimas.

Embora Suetônio goste de dizer que o imperador matou dezenas de pessoas, ele curiosamente reluta em nomeá-las.

Calígula ordenou a execução de Gemellus, neto de Tibério, de seu prefeito pretoriano Macro (que parecia determinado a imitar Sejano em sua ambição) e de seu primo, Ptolomeu, rei da Mauritânia.

Mas a maioria de suas supostas outras vítimas são duvidosas, como o gladiador que morreu de um ferimento infeccionado depois de receber uma visita do imperador.

No total, existem menos de uma dúzia de nomes. Compare isso às centenas de pessoas assassinadas por Augusto, dezenas por Tibério e muitos mais por Nero e Cláudio.

Depois do assassinato de Calígula, no ano 41, por membros de sua guarda pretoriana, quatro anos depois de ele assumir o poder, tornou-se ainda mais urgente enfatizar que ele havia enlouquecido: ele ainda era popular entre o povo e entre os militares, apesar da guerra com o Senado.

O novo imperador, Cláudio, não estava seguro em sua posição e o Legislativo estava ansioso para justificar o assassinato de Calígula, de 28 anos. Portanto, a vítima não estando mais presente, estava aberto o caminho para que seu nome fosse jogado na lama.

< E abaixo, as respostas a três perguntas frequentes sobre a vida e o reinado de Calígula.

        1. Ele realmente nomeou seu cavalo cônsul?

Calígula tinha um cavalo de corrida preferido, chamado Incitatus, que ele regularmente alimentava com iguarias e para quem tinha feito um estábulo de mármore. Os soldados tinham que silenciar a vizinhança enquanto o cavalo dormia.

"Dizem até que ele planejava tornar o cavalo um cônsul."

Essa afirmação vem de Suetônio. Mesmo quando ele usa a palavra "dizem", precisa ser lido com muita cautela.

Na verdade, isso não aconteceu.

Talvez ele tenha brincado publicamente que até seu cavalo seria um cônsul melhor do que os então ocupantes do cargo, e a máquina de propaganda do Senado se encarregou de apimentar a história. Também é possível que o imperador tenha pensado seriamente em tornar seu cavalo cônsul, mas como uma forma de degradar o Senado.

        2. Ele declarou guerra ao mar?

Se isso realmente aconteceu é discutível.

Conforme diz a história, Calígula liderou uma campanha malsucedida contra a Grã-Bretanha, que chegou às costas da Gália antes de ser abortada.

Como era impensável retornar a Roma sem uma vitória, Calígula declarou guerra a Netuno, deus do mar, e ordenou que ondas do mar fossem chicoteadas Seus soldados receberam ordens de coletar conchas como prêmio de guerra.

        3. Ele foi tão mau quanto pensamos?

Às vezes, só ouvimos o que queremos ouvir. (Qualquer pessoa que se apaixonou perdidamente e depois ficou desapontada entenderá esse fenômeno.)

Hoje, esse conceito tem um nome mais científico — viés de confirmação — e, graças a Suetônio, o viés de confirmação acabou moldando nossa visão de Calígula.

Por que ele cometeu suas atrocidades? Porque estava louco. Como sabemos que estava louco? Porque ele cometeu atrocidades.

Uma vez que quebramos o viés de confirmação, outros motivos vêm à tona e a história que emerge é a de uma disputa pelo poder político... algo muito mais mundano, especialmente quando comparada com a ideia de um império colossal governado por um tirano assassino e louco por sexo.

 

Fonte: Por Philip Matyszak, para o BBC HistoryExtra

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