A solução da Europa
medieval contra enchentes que salva vidas até hoje
No meio de 2021, após dias de chuva, o rio Meuse
transbordou e a cidade de Liège, na Bélgica, foi sua vítima. Águas de cor
marrom correram pela cidade, levando os residentes a usarem canoas enquanto
suas casas desapareciam ao seu redor. Na cidade e em sua província, mais de 20
pessoas morreram, sendo que um homem se afogou em seu porão.
E
este local no leste da Bélgica não estava sozinho. Na vizinha Alemanha, cerca
de 200 pessoas morreram em enchentes no ano passado. A imprensa descreveu o
nível das águas como um evento que ocorre uma vez em um século. O impacto
financeiro do desastre também foi grande. Perto de Liège, uma única fábrica de
chocolate sofreu danos no valor de cerca de 12 milhões de euros (mais de R$ 75
milhões).
No
entanto, uma parte do norte da Europa sofreu muito menos. Na Holanda, as
enchentes de verão também foram descritas como as piores em um século e os
danos materiais foram graves, mas o país sobreviveu ao evento climático sem uma
única fatalidade. As razões são muitas: evacuações rápidas, diques fortes e
comunicação robusta entre eles. Mas o que sustenta essas formas variadas de
defesa contra enchentes é uma instituição: os chamados "comitês da
água", que protegem essa terra por quase um milênio.
Vale
a pena entender essas associações pela maneira como combinam a democracia
local, a tributação direta e a transparência para colocar a água no centro da
vida holandesa.
E
a Holanda não está sozinha. Das terras altas da Etiópia às comunidades ao longo
do Danúbio, gestores de água em todo o mundo aplicaram aspectos do modelo
holandês para suas próprias necessidades, melhorando a vida de milhares de
pessoas ao longo do caminho. Em breve, outras regiões poderão precisar se
juntar a elas, à medida que os países em todo o mundo enfrentam o aumento das
inundações e alagamentos que vêm com as mudanças climáticas.
Quando
Piet-Hein Daverveldt vai para o trabalho todas as manhãs, em meio às igrejas e
paralelepípedos da cidade holandesa de Delft, ele diz que enxerga a história ao
seu redor. "Obviamente, você está ciente de que é um sucessor", diz
ele. "Você se apoia em muitas pessoas do passado."
No
endereço 167 Oude Delft, é fácil ver o que ele quis dizer. Se você parar ali e
olhar para cima, verá os brasões, as delicadas janelas com painéis, a imponente
fachada gótica com acabamento de 1505. Este é o gemeenlandshuis da
cidade, traduzido como a sede do conselho de água local, onde Daverveldt serve
como o presidente - ou dijkgraaf, como seu título é conhecido lá.
Este
elegante edifício tornou-se o gemeenlandshuis de Delft em 1645
- e mesmo isso é bastante novo no mundo dos lençóis freáticos. Conhecidos em
holandês como waterschap (autoridade da água) ou hoogheemraadschap, alguns
remontam ao século 12.
"Os
agricultores, em particular, tiveram que se unir para proteger suas
terras", explica Tracy Metz, co-autora de Sweet & Salt: Water
and the Dutch (Doce e sal: a água e os holandeses, em tradução livre).
"Claro,
cada corrente é tão forte quanto seu elo mais fraco, então houve uma pressão
comum para que todos fizessem sua parte para manter suas terras secas."
Mesmo hoje, isso ainda faz sentido em uma nação onde quase um terço da terra e
metade das casas ainda estão abaixo do nível do mar. Os polders holandeses
(terrenos baixos, planos e alagáveis) e diques precisam ser mantidos
coletivamente.
Essa
vulnerabilidade natural - "Netherlands" significa literalmente
"país de baixa altitude", ou Países Baixos - ajuda a explicar o poder
crescente dos conselhos de água. Na época em que os artistas Vermeer e
Rembrandt estavam molhando seus pincéis em meados do século 17, os conselhos
podiam cobrar seus próprios impostos e punir os poluidores. Nos escritórios do
Rijnland Water Board em Leiden, você ainda pode encontrar um mastro de quase
dois metros com um ferrete na ponta - que costumava ser usado para manter as
pessoas na linha.
Mesmo
assim, diz Metz, os comitês de água eram essencialmente órgãos representativos.
Embora não fossem democráticos no sentido moderno, eram administrados em
comunidade, com fazendeiros ou burgueses moldando sua organização local. Metz
argumenta que os conselhos formaram a base do que viria a ser a democracia
holandesa.
Os
conselhos da água claramente evoluíram a partir daquela época. Onde antes eram
3.500, restam apenas 21, representados por uma associação nacional. Mas, embora
seu número tenha sido reduzido, seu papel foi possivelmente estendido: além de
organizar e manter as defesas contra enchentes, também são responsáveis pelo controle de
qualidade da água, manutenção de rios e canais
e tratamento de esgoto.
E
sua história distinta ainda se infiltra na vida holandesa contemporânea. Além
de belos exemplos construídos em tijolo e pedra, isso pode ser visto claramente
na linguagem.
O
termo dijkgraaf, por exemplo, tem tons distintamente aristocráticos
- significa literalmente "conde dos diques", servindo como um
lembrete impressionante do passado profundamente feudal da Holanda. Enquanto
isso, os políticos holandeses usam o verbo polderen para
descrever o espírito de cooperação implícito nos comitês de água.
A
história dos comitês da água também tem consequências práticas nos dias
modernos. Como seus antepassados medievais, por exemplo, os conselhos de água
ainda arrecadam verba de forma independente. De modo geral, as famílias
pagam dois tipos de impostos: ao município e ao órgão
de água. E, como Emilie Sturm argumenta, essa independência traz benefícios
financeiros óbvios. Ao contrário de outros lugares, onde a gestão da água
disputa por dinheiro com educação ou moradia, o modelo holandês "garante"
que os cofres estejam sempre cheios, explica Sturm, gerente de programa do Blue
Deal, o órgão que promove a expertise holandesa em água no exterior.
Isso
se reflete nas estatísticas: os conselhos de água geram até 95% de seus
orçamentos por meio de seus próprios impostos. Compare isso com o Estado
americano do Texas, onde o Departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano
dos Estados Unidos anunciou recentemente que Houston e seu condado não
receberiam nenhum novo financiamento para alívio das enchentes - apesar de
terem pedido US$ 1,3 bilhão (R$ 7,25 bi).
Ao
mesmo tempo, os comitês de água continuam sua longa tradição de governo aberto
e eleito. A maioria dos cargos do conselho é agora eleita diretamente pelo
público, embora alguns ainda sejam atribuídos a interesses corporativos na
indústria, agricultura e meio ambiente. É certo que o holandês médio geralmente
não se preocupa com seu conselho local: Rens Huisman, do Conselho de Água de
Zuiderzeeland, os compara a árbitros de futebol: você os ignora quando eles
trabalham bem.
Mesmo
assim, esse poço profundo de localismo é útil. Por um lado, diz Daverveldt, a
democracia promove investimentos e monitoramento transparentes. Por outro lado,
os conselhos são compostos por especialistas, com conhecimento de sua própria
localidade.
Esse
regionalismo ficou patente no verão holandês de 2021, quando as diretorias
adotaram diversas táticas para combater as enchentes. Em Rivierenland,
atravessada por cursos de água, a equipe correu para inspecionar a solidez dos
diques locais. Em Limburg, espremido entre a Bélgica e a Alemanha, o conselho
propôs uma abordagem regional para cobrir os três países.
·
Além da Holanda
Ao
sul de Addis Abeba, na Etiópia, o rio Awash faz uma curva por cerca de 1.200 km
através do coração do país, passando por matas e campos de trigo e por meninos
cuidando de suas cabras ao sol. O terreno é acidentado aqui: muitas das colinas
perto do rio chegam a 2.000 metros. À noite, grupos de babuínos dormem nas
folhas das palmeiras para se esconder dos predadores. Em outras palavras, este
é um lugar que parece tão diferente das terras baixas da Holanda quanto você
pode imaginar.
No
entanto, se você souber onde procurar, encontrará vestígios da Holanda em
muitos lugares. Isso vale para as barragens e diques que revestem o Awash, mas
também na forma como a hidrovia é administrada - desde os impostos até a
representação. Tegenu Zerfu, um especialista em água da Etiópia, argumenta que
isso não é nada surpreendente. "Garantir o futuro", diz ele, "pode
ser obtido a partir
do modelo de polder".
Nem
as terras altas da Etiópia são únicas neste sentido. Durante anos, os gestores
hídricos holandeses levaram seu conhecimento a terras distantes, construindo
relacionamentos com países do Peru ao Vietnã. Ao todo, o Dutch Blue Deal
funciona em 14 países, e os conselhos de água individuais também têm suas
próprias parcerias, algo que os profissionais envolvidos veem como uma
consequência natural da tradição polderen.
Jo
Caris, colega de Huisman no Conselho de Água de Zuiderzeeland e especialista em
hidrovias da Etiópia, diz que apoiar o conselho de água vizinho e o distante
Awash são, na verdade, dois lados da mesma moeda.
Esse
apoio também pode ser descrito como uma troca, acrescenta ele, com países de
baixa renda também ensinando coisas aos veteranos holandeses. Sturm afirma algo
semelhante. "A necessidade desse programa", explica ele,
"realmente veio do entendimento de que, para nos adaptarmos às mudanças
climáticas, precisamos aprender uns com os outros em todo o mundo".
Como
este último comentário indica, os holandeses têm o cuidado de não exportar seus
métodos no atacado e tentam trazer lições valiosas para casa também. Mas,
embora seja improvável que uma gemeenlandshuis brote em Adis
Abeba tão cedo, os comitês de água deixaram sua marca na Etiópia.
Isso
fica claro, por exemplo, quando se trata de como Zerfu e seus colegas
reformaram a tributação ao longo do Awash. Até a chegada dos holandeses, há
vários anos, as principais empresas industriais tinham poucos incentivos para
economizar água, um sério desafio em um país onde apenas 42% das pessoas têm
acesso a um abastecimento de água potável. Mas as coisas são diferentes agora:
os agricultores pobres ao longo do Awash estão isentos do imposto sobre a água,
enquanto os usuários maiores devem pagar sua parte.
Melhor
ainda, Zerfu diz que, assim como o modelo holandês, este sistema é
autofinanciável - crucial em um país onde há conflitos contínuos, abusos dos
direitos humanos e pobreza (um quarto da população vivia abaixo da linha da
pobreza em 2016).
Você
também pode ver reflexos dos sistemas holandeses na abordagem da representação
na Etiópia.
Nada
como uma eleição de conselhos de água existe ao longo do Awash: a democracia da
nação é muito frágil. Mesmo assim, os holandeses e as autoridades locais
encorajaram os pequenos agricultores a se juntar às associações locais de
usuários de água, dando-lhes poder coletivo para negociar com o estado e a
indústria.
Esquemas
modestos como esse, diz Huisman, são típicos de como os holandeses operam no
exterior. "Você tem que olhar para os princípios que estão em nosso modelo
de governança - e adaptá-lo quando você o aplica a outros países."
Isso
vale também para países mais próximos da Holanda. Mirela Ciucur é a chefe de
assuntos econômicos da Administração Nacional de Águas da Romênia. Como Tegenu
Zerfu, ela viu a influência do modelo holandês em sua terra natal,
especialmente quando se trata de boa governança.
Historicamente,
os gastos dos impostos romenos sobre a água careciam de transparência, explica
Ciucur. Inspirada na Holanda, Ciucur desenvolveu um modelo de análise econômica
para entender exatamente o que precisava de dinheiro - de defesas contra
enchentes à manutenção de praias. Além de ser mais transparente, esta abordagem
incita a Romênia ao modelo de "recuperação de custos" tão
bem-sucedido na Holanda.
Como
na Etiópia, com certeza, as comparações não são exatas. Embora a Romênia já
tenha 11 conselhos regionais de água, por exemplo, seus orçamentos são
administrados centralmente a partir de Bucareste. Mesmo assim, Ciucur está
finalmente convencida da necessidade de ir para o modelo holandês.
Quando
as chuvas chegaram, uma polegada (2,5 cm) por hora na máxima força, a torrente
era imparável. As pessoas tiveram que ser salvas em cerca de 900 vilas, e as
enchentes vieram tão rápido que os soldados tiveram que salvar as pessoas em
frágeis barcos de madeira, guiando mulheres idosas pela lama.
A
descrição acima serviria para as inundações na Alemanha ou na Bélgica:
aconteceram no verão, poucas semanas depois de Liège e seus vizinhos terem sido
devastados, e mais de 100 pessoas morreram ali também. Mas, na verdade, esta
última catástrofe aconteceu do outro lado do mundo em relação à Holanda, no
Estado indiano de Maharashtra.
Esses
desastres, iguais em causa, consequência e escala de tempo, mostram de maneira
pungente a ameaça de enchentes em uma era de emergência climática. Em uma faixa
da Europa Ocidental, os cientistas descobriram que as mudanças climáticas
aumentam a quantidade de chuva que cai em um determinado dia em até 19%, o que aumenta
drasticamente o risco de inundações.
Os
pesquisadores sugeriram que as mudanças climáticas tornaram as recentes
inundações na Alemanha nove vezes mais prováveis. Os cientistas chegaram a
conclusões semelhantes sobre o subcontinente, observando que as mudanças
climáticas estão ajudando a colocar 75% dos distritos indianos em risco de
desastres climáticos, como inundações. E não apenas nessas duas áreas do mundo.
Partes de Dakota do Sul, Nebraska e Novo México podem ter um aumento de cinco vezes na exposição a
enchentes até 2100.
Em
outras palavras, os problemas que recentemente afetaram a Bélgica e a Índia
estão se tornando ameaças verdadeiramente globais. Isso naturalmente levanta a
questão: o que deve ser feito? Claro, a resposta final é assustadoramente
complexa, abrangendo desde energia verde até melhores leis de planejamento. Mas
poderia o modelo holandês de gestão da água - com seus pilares de
independência, transparência, colaboração e adaptabilidade às condições locais
- oferecer lições mais amplas também?
Especialistas
acreditam que sim. "Poderia funcionar muito bem", argumenta Tracy
Metz, "se essas organizações tivessem autonomia e influência suficientes
para que o que decidissem realmente acontecesse". Sturm concorda. A água,
ela enfatiza, vai ter um "papel imenso" no mundo de amanhã.
"Portanto, a necessidade de uma autoridade de recursos hídricos estar
presente e ter o conhecimento certo, as instituições certas, o gerenciamento
certo das partes interessadas é muito importante".
Também
há sinais de que até mesmo lugares sem vínculos diretos com o Blue Deal estão
pensando em parâmetros holandeses. Na Virgínia (EUA), por exemplo, cidades vulneráveis
em todo o Estado
estão cooperando para desenvolver um plano diretor costeiro
unificado, incentivando o governo a tomar mais iniciativas financeiras após uma
emergência. Enquanto isso, do outro lado do país, o Conselho Estadual de
Controle de Recursos Hídricos da Califórnia está pensando em se conceder mais
poderes, potencialmente obrigando as pessoas que controlam rios e riachos a
compartilhar com a comunidade. Se eles puderem fazer isso sem recorrer a um
ferrete, melhor.
Fonte:
BBC Future
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