A rixa de Lula e
Campos Neto e a autonomia do Banco Central
As
críticas frequentes do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à política de juros
e controle de inflação do Banco Central (BC) têm nome e sobrenome: Roberto Campos
Neto. O presidente da autarquia que define a política fiscal do país foi
indicado ao cargo em fevereiro de 2019, pelo antecessor de Lula, Jair
Bolsonaro.
Campos
Neto é o primeiro no cargo após a Lei Complementar 179, que instituiu a
autonomia política na presidência da autarquia federal, em vigor também desde
fevereiro de 2019. O mecanismo estabelece mandatos de quatro anos para
presidente e diretores do BC, com o argumento de blindar esses servidores de
eventuais intervenções por parte do Executivo na definição da taxa de juros
básica, a Selic, e no controle da inflação. Definida pelo Comitê de Política
Econômica (Copom) do Banco Central, a taxa está atualmente em 13,75%, o maior
patamar desde agosto de 2022 e considerado excessivo por Lula.
Nesta
quinta-feira (24/03), o presidente voltou a criticar Campos Neto após o Copom
ter decidido, pela segunda vez no atual governo, manter a Selic em 13,75% ao
ano.
"Eu
digo todo dia: não tem explicação para nenhum ser humano do planeta Terra a
taxa de juro no Brasil estar a 13,75%. Não existe explicação", afirmou
Lula, durante visita a um complexo da Marinha no Rio de Janeiro onde são
construídos os novos submarinos brasileiros.
"Como
presidente da República, não posso ficar discutindo cada relatório do Copom, eu
não posso. Eles que paguem o preço pelo que eles estão fazendo. A história
julgará cada um de nós", disse o presidente, que ainda sugeriu que o
Senado interviesse no tema.
"Quem
tem que cuidar do Campos Neto é o Senado que o indicou. Ele não foi eleito pelo
povo, ele não foi indicado pelo presidente, ele foi indicado pelo Senado.
Quando eu tinha o Meirelles, que era indicado meu, eu conversava com o
[Henrique] Meirelles. Agora, se ele quiser, esse cidadão nem precisa conversar
comigo."
Por
um lado, economistas ouvidos pela DW afirmam que as pressões de Lula sobre
Campos Neto para baixar a Selic são uma maneira de transferir a
responsabilidade para a instituição por um provável baixo crescimento econômico
neste ano – 0,88% segundo o boletim Focus. Já analistas políticos apontam para
a proximidade do atual presidente do BC com o ex-presidente Bolsonaro, o que
tem causado desconforto no governo atual.
Juros
e inflação
A
Selic regula o acesso ao crédito, com níveis mais altos levando, ao menos na
teoria, a um menor consumo como forma de conter a inflação, mantendo-a dentro
da meta, que é definida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), colegiado
composto pelos ministros da Fazenda, Planejamento e pelo próprio presidente do
BC.
A
meta para este ano está em 3,25%, e conta com tolerância de 1,5 ponto para cima
e para baixo. De acordo com a última edição do Boletim Focus, a expectativa é
que a inflação ultrapasse a meta em 2023, com os agentes econômicos prevendo um
IPCA de 5,95%. Isso aconteceu em 2022, quando o IPCA ficou em 5,79%. Cada vez
que a meta é estourada, o presidente do BC precisa prestar contas ao ministro
da Fazenda, como ocorreu recentemente.
Além
da Selic, as pressões sobre o BC também vêm recaindo na meta de inflação.
Segundo Ecio Costa, o professor titular de Economia da Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE), mudar essas balizas econômicas "na marra" tampouco
significaria um maior acesso ao crédito, porque o mercado continuaria cobrando
mais caro pelo crédito. "Se você tira ou eleva essas expectativas, os
juros não necessariamente vão cair, porque se a expectativa de inflação é mais
alta, o mercado precifica os juros num patamar mais elevado, para justamente
conter essa inflação", explica.
Ele
diz que os demais países emergentes têm seguido, no geral, metas de inflação de
3%, dentro do que é defendido pelo CMN. "Quando você tem esse processo
inflacionário, os alimentos têm uma inflação mais alta que os demais itens. Se
vai para 5% ou 6% no geral, para os mais pobres talvez esteja 10%, o que faz o
poder de compra cair. Aí temos um problema sério", complementa.
Durante
a pandemia, a Selic chegou a 2%, o que, para Costa, foi justificado pela queda
na atividade econômica causada principalmente pelo isolamento social, o que
gerou deflação em alguns meses.
A
Selic voltou a aumentar durante 2021 e 2022, chegando ao patamar atual em
agosto do ano passado. O economista aponta que a inflação só não foi maior em
2022 por causa da PEC dos Combustíveis, que limitou o ICMS. "Ainda há
pressão inflacionária aqui, como nos outros países", acrescenta.
Autonomia
do Banco Central
Embates
entre chefes de governo e presidentes de bancos centrais não ocorrem apenas no
Brasil. Nos Estados Unidos, o Federal Reserve (Fed), que também goza de
autonomia junto ao Executivo, foi alvo constante de Donald Trump durante o
mandato do ex-presidente republicano. Ele chegou a chamar a instituição de
"patética" justamente pela política de juros. Na União Europeia, a
independência dos bancos centrais dos países-membros foi uma exigência da Alemanha
para a construção do bloco continental.
Para
o professor de economia do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), Ricardo
Rocha, as críticas de Lula à autonomia do BC vão contra o praticado nos
primeiros dois governos do petista, que teve Henrique Meirelles à frente da
autarquia. "Quando o Meirelles presidiu o BC, ele tocou a política
monetária do jeito que tinha que tocar. Nos dois mandatos do Lula, teve momento
de taxas de juros muito altas, então não me parece que a briga dele é técnica",
afirma Rocha, que diz que uma das justificativas para o embate pode ser uma
pressão ao próprio CMN para que se aumente as metas de inflação.
Segundo
a legislação, a deposição do presidente do Banco Central deve ser aprovada por
maioria simples no Senado (41 votos de 81 parlamentares). O professor do
Insper, porém, diz que a reação do mercado a uma medida como essa seria
péssima. "Se isso acontecer, juros e câmbio vão ter um salto muito grande.
É mais ou menos dar um tiro no pé", acrescenta.
Costa,
da UFPE, lembra que a autonomia do BC foi importante principalmente nas
eleições de 2022, quando a autarquia comandada por Campos Neto não reduziu a
Selic às vésperas do pleito. "Se o Banco Central não fosse autônomo,
possivelmente o presidente [Bolsonaro] não teria deixado assim. Teria
acontecido alguma interferência, como houve no passado. Era um ano eleitoral,
qualquer notícia positiva ajudaria muito", destaca.
Resquício
do bolsonarismo
Politicamente,
no entanto, a questão entre Lula e Campos pode ir além de uma briga por rumos
econômicos, chegando a uma disputa ideológica. Segundo o cientista político
Christian Lynch, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ), o contexto político atual faz o terceiro
governo de Lula ser bem diferente dos dois primeiros mandatos.
"Lá
atrás, Lula assumiu na esteira do FHC. Estava habituado a uma ideia de
república estável, de princípios democráticos. Agora a oposição não é mais
galante de tucanos esclarecidos – tem um grupo de aloprados golpistas que
aparelharam o Estado. Nessa conjuntura, uma das preocupações dele é a garantia
das instituições republicanas contra o golpismo bolsonarista", analisa
Lynch.
O
pesquisador da UERJ afirma que, por causa disso, o presidente do Banco Central
é visto como um meio pelo qual o bolsonarismo tenta se manter. "Ele vê o
Campos Neto como alguém que não é confiável. O problema é menos a independência
do BC do que a pessoa do Roberto Campos, que é comprometido com o projeto
neoliberal do Paulo Guedes até o pescoço", acrescenta.
Apoio
a Bolsonaro
Durante
as eleições de 2022, Campos Neto foi votar vestido com a camisa da seleção
brasileira, num ato simbólico de apoio a Jair Bolsonaro. Em fevereiro o
presidente do Banco Central também foi flagrado em um grupo de WhatsApp com
outros ex-ministros do governo anterior. Para Carolina Botelho, pesquisadora do
Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP e do Laboratório de Estudos
Eleitorais, de Comunicação Política e Opinião Pública (Doxa/IESP) da UERJ, esse
último ponto coloca em xeque a independência de Campos Neto.
"A
autonomia do BC não tira o caráter político de quem está cumprindo o mandato. A
indicação é um cargo político", diz ela. "Portanto, é bastante
surpreendente ver que Campos Neto mantém um diálogo com o ex-governo. Essa é a
grande questão. A crise veio daí, de um presidente que se outorgou a autonomia
pela Constituição, o que não dá liberdade para conversar com pessoas do governo
Bolsonaro", acrescenta.
Botelho
afirma que cabe ao gestor do BC agir com responsabilidade, assim como a
responsabilização. "Numa situação republicana, o próprio presidente do
Banco Central deveria se desculpar ou mesmo se demitir, porque isso fere um
espaço político importante que ele ocupa. Essa mensagem que ele deu para a sociedade
é desastrosa. Ele está como um presidente de um banco de um novo governo
conversando com ministros e elites estratégicas de um outro governo",
opina a cientista política, que vê o movimento de Lula como uma forma de evitar
um problema de governabilidade. "O jogo está claro, e há poucas razões
para crermos que eles são cooperativos", conclui.
Fonte:
Deutsche Welle
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