A “reforma” do
ensino médio e o compromisso de resistir
Ao
defendermos a revogação, afirmamos o compromisso de formar a juventude e lutar
pela dignidade dos docentes. Queremos tomar a política nas mãos e enfrentar a
educação financeirizada que nos reduz a objetos de sua gestão.
1.
Finalmente,
o debate acerca dos efeitos deletérios da reforma do ensino médio saiu dos
círculos mais estritos de quem está em constante contato com a educação da
juventude e com o trabalho da imensa categoria de docentes da rede básica. As
manifestações pela revogação da reforma que ocorreram em todo Brasil neste mês
de março tiveram efeito no alcance do debate, que ganhou espaço nas redes sociais,
na mídia tradicional, assim como chamou a atenção de intelectuais e militantes
de outros setores e movimentos. A denúncia acerca dos conteúdos do Novo Ensino
Médio é imprescindível para a luta, uma vez que a formação massiva da juventude
é elemento extremamente relevante na composição das relações de uma dada
conjuntura. Mas é preciso também que se atente para a forma social da educação.
A análise de que o tempo de escolarização está sendo gasto para se aprender a
fazer brigadeiros caseiros, jogar RPG, saber “o que rola por aí” e ajustar os
“projetos de vida” à precariedade do empreendedorismo dos pobres, é tão
importante quanto trazer à tona o desprezo pela formação especializada de
professores e professoras de sociologia, história, geografia, física, química,
artes etc. e, consequentemente, de tais conhecimentos. Não obstante, a crítica
precisa ainda considerar que a reforma do ensino médio, assim como grande parte
das transformações organizacionais e pedagógicas que estão em curso na
educação, fazem parte das estratégias de uma ampla dominação empresarial e
financeira. A privação da formação intelectual da juventude e a degradação das
condições de trabalho docente, em meio ao descalabro da educação estatal, são
antes de tudo frutos de anos de trabalhos e projetos de empresários, acionistas
e investidores em “negócios sociais”, embora não se possa subestimar o papel de
quem governa no aprofundamento da “parceria” entre empresa e Estado.
2.
Em
setembro de 2022, pouco antes das eleições, a “ONG que foi o MEC da Sociedade
Civil” venceu o “Prêmio Empreendedor Social”, segundo a Folha de São Paulo. O
mesmo jornal que financia, seleciona e faz propaganda de empresas que prestam
serviços sociais, assim como – é claro – faz marketing de seu próprio investimento
neste setor, noticiou que o critério decisivo para escolha do Todos Pela
Educação (TPE) foi o êxito da atuação da organização para a retomada das
escolas durante a pandemia.
Não
espanta que outra organização tenha feito as vezes do MEC durante o governo
Bolsonaro, sobretudo no período crítico da pandemia e de gestão pela negação e
máxima brutalidade que conhecemos bem. Mas isso não se deve ao fato de que a
organização governamental tenha sido completamente inoperante no período. Além
dos efeitos do amplo corte de gastos e da implementação do programa
cívico-militar de escolas básicas, houve uma inédita experimentação do “efeito
propaganda” de programas não implantados, mas colocados em pauta pelo governo e
seus ativistas. Isso não foi nada desprezível em termos de gestão, pois alterou
e deixou marcas em nossas práticas e embates em nossos ambientes de trabalho. A
disputa entre esses projetos conservadores não implementados formalmente (como
o Escola Sem Partido em conjunto com toda pauta ligada à “guerra cultural”), os
projetos neoliberais (como o Future-se) e a militarização, refletiu-se também
na dança das cadeiras de ministros. A concorrência pelo controle da educação
diferenciava os programas, ao mesmo tempo em que explicitava o que é comum a
todos: uma noção de política social contra o povo, que expandiu a rapinagem de
recursos públicos para além do mercado já cativo do empresariado, e chegou aos
pregadores do evangelho e do agronegócio, renovando, assim, as formas de
inscrição do Ministério em seu histórico de escândalos. O pior dos temporais
aduba o jardim, e ainda colheremos frutos apodrecidos do bolsonarismo nessa
reedição de “redemocratização”.
O
que espanta é que a apropriação privada dos mecanismos de gestão e controle da
educação estatal por organizações empresariais esteja tão naturalizada ao ponto
de tais entidades serem premiadas e apresentadas como se fossem apenas ONGs
benevolentes e filantrópicas, que salvaram a educação do bolsonarismo. É
verdade que os programas emergenciais da pandemia, a criação de estruturas de
ensino à distância e de retorno presencial, aconteceram e foram coordenadas
pelo TPE e outras organizações empresariais, do mesmo modo que nenhum
encaminhamento deixou de ser dado em políticas polêmicas, como a expansão da
rede de escolas de tempo integral e de implementação da Reforma do Ensino
Médio. Isso porque tais políticas têm sido construídas e encaminhadas por
fundações e institutos empresariais que atuam na mudança das políticas, mas
também em laboratórios de experimentação de formas pedagógicas e de organização
do trabalho educativo que se instalaram na educação formal e não formal desde
os anos 2000.
O
fato de que o TPE possa exercer tarefas que substituam parte das funções do MEC
apenas reflete o grau de aparelhamento e apropriação privada dos mecanismos de
gestão e controle da educação estatal por organizações empresariais. O problema
é que o “nexo entre o MEC e o TPE não é apenas conjuntural”, como nos avisavam
Olinda Evangelista e Roberto Leher, já em 2012. Já faz tempo que “a base
programática da educação pública, historicamente ponto central de programas
partidários, tornava-se uma base programática empresarial” como já estudou
Virgínia Fontes (2017). Mesmo a assinatura da medida provisória que instituiu a
Reforma é muito mais fruto da advocacy empresarial do que do trabalho de
qualquer governo ou partido. Que a canetada tenha sido dada no período de
Temer, deixa mais fácil para os governos não transitórios lavarem às mãos por
sua responsabilidade de deixar livre o caminho para que as estruturas
carcomidas e sucateadas da educação estatal sejam preenchidas pelo trabalho de
organizações privadas. Essa ocupação tem expandido os tentáculos empresariais
por anos a fio de modo que ela passou a compor de modo orgânico a gestão da
educação, sem, no entanto, apresentar-se como plano de reorganização da
educação, suprimindo a possibilidade de decisão política, e, em grande medida,
eliminando as possibilidades de confrontos e embates entre projetos de
educação.
O
Todos Pela Educação foi criado em 2006 por meio de uma convocatória da Holding
Itaú-Unibanco. Em seu documento de fundação constam nomes de presidentes das
empresas e instituições financeiras das mais lucrativas do país, além políticos
e ativistas dos direitos sociais. Na lista dos sócios fundadores aparece o nome
do então ministro da educação e ex-analista de investimentos do Unibanco,
Fernando Haddad – que inclusive batizou seu plano de educação de “Compromisso
Todos Pela Educação”. O TPE é uma organização da sociedade civil sem fins
lucrativos, mas só onde “a sociedade civil é Estado e este é sociedade civil”
(EVANGELISTA; LEHER, 2012), ou quando passamos a crer numa realidade paralela
na qual existam empresas que abnegam a razão de sua existência, que é lucro,
para atuar contra as desigualdades sociais que – como é obvio – as sustentam.
3.
O
tamanho dos logos diz respeito aos diferentes níveis de investimento de cada
empresa no Todos Pela Educação, o que corresponde ao poder de voto dos
processos de decisão dos rumos da educação nacional. A composição se altera de
tempos em tempos e o ingresso e participação exigem doações de recursos
financeiros que compõe um fundo da organização privada. Em seu site,
enfatiza-se que o TPE não recebe investimentos estatais, – “somos financiados
por recursos privados, não recebendo nenhum tipo de verba pública” –, o que
lhes garante, em suas palavras, “a independência necessária”. Não obstante,
omite-se o fato de que cada uma das empresas que o compõe capta recursos
estatais por meio de isenções fiscais, de parcerias, convênios com escolas,
redes de ensino, secretarias e diretorias de educação para prestações de
serviço, projetos e programas. Sua atuação combina alteração das grandes linhas
da política educacional com atuação prática numa imensa rede de projetos e
programas capilarizados na educação formal e não formal. É ascendente a curva
da transferência de renda estatal para o desenvolvimento de programas privados
com efeitos questionáveis para produção da qualidade educacional, que envolve a
privatização de diversas dimensões da relação educativa.
Mas
essa forma de captura de recursos estatais é complementada por outra forma de
financiamento, na qual os conglomerados empresariais sustentam seus “trabalhos
sociais”, por meio da criação de fundos patrimoniais e de investimento em
programas sociais. A entrada da B3 Social – o braço social da Bolsa de Valores
– no TPE, neste ano de 2023, escancara o processo de financeirização da
educação estatal, não apenas porque ela se torna uma das financiadoras dos
“negócios sociais” educativos, mas também porque ela é uma das instituições
financeiras que tipifica as empresas sociais e regula as negociações do mercado
de capitais. Trata-se de uma rede entre empresas que financiam, executam ou
fazem ambos os processos em organizações privadas híbridas que tanto trabalham
na execução de programas próprios, quanto investem em projetos de outras
empresas sociais.
A
nova onda na qual surfa o empresariado que se dedica aos trabalhos sociais que
até então identificávamos como direitos, é a sustentabilidade – leia-se, o
rentismo. O discurso de desonerar o Estado com investimentos sem retornos
lucrativos para promoção de direitos sociais é orientado pelo lema
#EntreGanharDinheiroeMudaroMundo #FiqueComOsDois, expresso no logo da
Artemísia, empresa que apoia e acelera a geração de “negócios de impacto
social” nos setores populares de moradia, alimentação, saúde, energia,
mobilidade, meio ambiente etc. Interessante notar que a educação só aparece
dentro do investimento em empregabilidade, o que tem tudo a ver com a função da
educação atual, cindida da formação cultural e intelectual. Mas o que importa
aqui é que, de fato, como diz o site dessa empresa, está sendo criada “uma nova
geração de negócios”, pautada em mudanças no mercado financeiro ligadas à
implementação das estratégias ESG, sigla em inglês para ambiental, social e
governança, três critérios de “sustentabilidade” empresarial para atrair
investimentos.
A
consolidação dessa nova regulação do mercado financeiro fortalece o amplo ramo
de serviços oferecidos por fundações e institutos empresariais e induz empresas
ainda não voltadas ao “social” a criarem serviços, na medida em que se torna
regra do mercado financeiro. O longo processo de privatização caminha no sentido
da financeirização dos serviços sociais e indica uma mudança mais radical na
organização da educação.
A
saída do Instituto Ayrton Senna (IAS) do TPE corresponde ao momento de criação
de seu fundo patrimonial próprio. Esse patrimônio em dinheiro é investido em
títulos empresariais e seus rendimentos financiam projetos sociais. Ao mesmo
tempo, o IAS convida outras empresas a fazerem seus investimentos nos programas
que coordena – “Faça parte dessa rede e priorize a educação em sua agenda ESG”.
Tais quadros de “parceiros” devem ser vistos exatamente como o que são:
plataformas de investimento nos ativos financeiros da educação.
É
recente também a mudança de apresentação do Instituto Unibanco, que passou a
declarar-se “mantido por um fundo patrimonial (endowment)”, que lhe “garante o
alinhamento estratégico e a oferta gratuita de serviços e produtos para
secretarias de educação, escolas, profissionais de educação e estudantes que
participam de seus projetos”. Apesar da lei que regula tais fundos patrimoniais
para investimentos sociais ser bastante nova (a Lei 13.800, de 2019), desde
2006, já constava no estatuto do TPE que dentre suas fontes de recursos estão
as contribuições associativas, bem como doações e subvenções que compõe uma
receita patrimonial, “inclusive oriundas da aplicação dos recursos do Fundo
Patrimonial no mercado financeiro e de capitais”.
Em
nome da defesa do direito à educação para todos, o empresariado transforma os
serviços sociais em ativos financeiros, deixando a educação à deriva de investimentos
que podem ser rentáveis, numa nova desigualdade entre públicos-alvo com
condições de vida e inserção produtiva ou empreendedora absolutamente
distintas.
4.
Por
que o Itaú, o Unibanco, o grupo Lemann, a Vivo-Telefônica, o Ifood e tantas
outras empresas têm se dedicado a defender o ensino integral, a BNCC, a
flexibilização curricular, os itinerários formativos, as disciplinas eletivas,
o ensino de empreendedorismo, o protagonismo juvenil, a ênfase na formação
profissional e técnica, as habilidades práticas e as competências
socioemocionais em detrimento de conhecimentos disciplinares?
Cada
uma das empresas que compõe o TPE defende a Reforma e os programas de ensino
integral não só porque comandam a política educacional, mas também porque cada
um dos elementos que compõe o Novo Ensino Médio (NEM) corresponde a um nicho de
atuação em negócios de impacto social e das estratégias ESG empresariais.
Não
é possível compreender a propalada “educação para todos” no contexto da
implementação dos programas de ensino integral, que empurra milhares de jovens
que precisam trabalhar para a evasão, se não observarmos os programas que estão
sendo implementados pelo empresariado no sistema educacional. Já faz tempo que
quem está na linha de frente das reformas propõe que as escolas se tornem
“atrativas” para a juventude trabalhadora. Ao torná-las unidades produtivas nas
quais a juventude passe a trabalhar no período escolar, associa-se a tomada de
controle da educação com o controle da exploração do trabalho de quem busca
formação. O Itaú Educação e Trabalho, criado durante a pandemia, por exemplo,
criou modelos de projetos empreendedores para se implementar dentro das
escolas, o que inclui a proposta de criação de “empresas pedagógicas” para que
estudantes aprendam a trabalhar trabalhando, durante o período letivo em
escolas de tempo integral. As publicações dessa instituição descrevem inúmeros
projetos pelo Brasil, nos quais ela tem papel central, em conjunto com outras
organizações privadas, no agenciamento de trabalho de jovens em empresas num
dos turnos escolares, jovens esses que recebem uma bolsa ou auxílio financeiro
em troca de trabalho precarizado.
A
evasão provocada pela implementação das escolas de tempo integral também está
fazendo com que escolas regulares fiquem superlotadas e que muito mais jovens
abandonem o ensino médio. Destes, uma parte retorna ao sistema estatal de
ensino, a partir dos 18 anos, buscando a Educação de Jovens e Adultos (EJA)
que, não obstante, está sucateada e gravemente subfinanciada. Enquanto isso,
empresas que exploram o trabalho de entregadores por aplicativos até o limite,
como o Ifood – que recentemente ingressou no Todos Pela Educação –, são alçadas
à condição de empresas que prestam serviços sociais. Além de vários programas
de educação não formal, o Ifood, em parceria com a Descomplica, empresa de
educação à distância, está oferecendo a seus funcionários, ou – como a empresa
insiste em colocar – os entregadores que se cadastram em suas plataformas para
oferecer serviços de entrega, um curso de EJA de 3 meses e apenas 2,5 horas por
dia, para que estudantes façam o exame (Enceja), por meio do qual tem acesso ao
certificado do ensino médio. Os direitos trabalhistas estão na berlinda, mas os
investimentos de impacto social estão na crista da onda e as empresas estão
liberadas para cumprir “seu papel social” atraindo investimentos e oferecendo
serviços gratuitos.
A
diversificação dos negócios sociais educativos se reflete na distinção entre
modalidades de educação da juventude com maior ou menor rentabilidade. A
fundação Lemann, por exemplo, não investe apenas na privatização das escolas,
de secretarias municipais de educação e na formação de quadros, mas também na
criação de uma rede de educação não formal de projetos socioeducativos ofertada
por ONGs nas favelas brasileiras, como é o caso do projeto de Eduardo Lyra, da
Gerando Falcões. Não é por acaso que o Todos Pela Educação se dedique a colocar
em pauta e a encaminhar a lei por um Sistema Nacional de Educação, que amplia a
noção de sistemas de ensino para uma rede de educação formal e não formal
interligada. Educação escolar de tempo integral para a parcela dos mais
“rentáveis”, seguida pelas escolas de meio período, mas também pela oferta de
educação pelas empresas e por uma ampla rede de educação não formal e
socioeducativa para os “não rentáveis”. Parte da solução para os
“inimpregáveis” da sociedade do descarte é manter a juventude “desalentada”
ocupada em programas de pacificação social. Mozart Neves Ramos – que já foi
considerado um dos homens mais influentes do Brasil e quase foi ministro da
educação no início do governo Bolsonaro,7 que também foi presidente do Todos
Pela Educação e do Consed (Conselho Nacional de Secretários de Educação),
dirigente do IAS, além de secretário de educação de Pernambuco, membro do
Conselhos Nacional de Educação e que hoje se dedica a colocar as fundações
dentro da universidade pública para controlar a formação de professores –
considera que, para enfrentar a crise do trabalho e a violência social ligada à
desigualdade, é necessária uma oferta educacional que “passa tanto
por uma Educação formal de qualidade – para aqueles
que estão na escola – como pela oferta de uma Educação não formal para
aqueles que deixaram de
sonhar com uma
vida próspera” (RAMOS, 2019)
Essa
segmentação de públicos-alvo entre estudantes aparece também na fragmentação do
corpo docente da escola básica dividido em inúmeras categorias de contrato, uma
mais precarizada que outra. A subordinação à política empresarial está
desqualificando o trabalho docente em todos os níveis – da formação e
conhecimento que detém, da autonomia pedagógica, das condições de trabalho, dos
processos de decisão política e coletiva dos quais são alijados. A evasão
estudantil é acompanhada pela desistência e pela exoneração de trabalhadores e
trabalhadoras da educação formados pelas licenciaturas, submetidos a uma
intensificação excessiva do trabalho. A situação de desprofissionalização
docente deve ser compreendida à luz de uma reorganização na divisão do trabalho
educativo promovido por outros negócios de impacto social empresariais. Com o
empenho de empresas-filhas da Fundação Lemann, por exemplo, estão sendo criadas
plataformas de seleção e contratação intermitente de docentes por notório saber,
isto é, profissionais com ensino superior, mas leigos em educação. A “Ensina
Brasil” está se especializando na seleção de pessoas que “querem mudar o Brasil
pela educação”, e que cheias de boa vontade e engajamento, inscrevem-se em
programas de contratação temporária para dar aulas das disciplinas eletivas e
projetos de vida e passarem por uma formação de “lideranças” empresariais na
educação, mas recebendo salários pelos estados e municípios, formando novas
redes de profissionais para um mercado de trabalho reconfigurado. Do mesmo
modo, outra empresa nascida das entranhas da Fundação Lemann, a Vetor Brasil,
que carrega o lema “seja a mudança que você quer no governo”, faz o mesmo
processo de seleção, contratação e formação de quadros de gestores e gestoras
da educação, além de diversos outros cargos “públicos”.
A
desorganização com a qual foram implementados os itinerários formativos no
estado de São Paulo induziu à rápida criação de um grande mercado de materiais
pedagógicos nos grupos de redes sociais de professoras e professoras, que
buscavam apoio e ajuda para dar conta do recado. Professores de química,
matemática, sociologia, etc., com 5 aulas da disciplina para a qual se formaram
e mais de 20 aulas dos itinerários formativos, com temas distintos e completamente
disparatados, viraram a regra. Junto com novos modelos de controle do trabalho,
que envolve postar planejamentos, alguns docentes ou pequenas empresas passaram
a vender planos de aula. É só uma questão de tempo para que esse mercado
informal de materiais pedagógicos seja engolido pelas grandes corporações.
Basta ver o site da Fundação Telefônica-Vivo, por exemplo, que por meio de seu
programa PenseTech oferece a venda de itinerários formativos de técnico e
profissional em ciência de dados, Linguagem Matemática e suas Tecnologias,
Língua Portuguesa e suas Tecnologias, além de programas para eletivas e projeto
de vida. As empresas conduziram a implementação da flexibilização curricular de
maneira caótica para apresentar a solução que já está pronta e sendo
comercializada em alguns estados.
É
um sistema que induz à mercantilização de tudo. Uma cadeia de produção de
conteúdos e prestação de serviços privados de educação. Na verdade, uma cadeia
de produção de negócios de impacto social que está subordinando a formação da
juventude e o trabalho docente.
5.
Apesar
da política educacional empresarial ter sido aclamada midiaticamente como
“alternativa democrática” ao bolsonarismo, ela submete a formação da juventude
a uma naturalização do empreendedorismo concorrencial de “capitais humanos” que
se lançam numa luta encarniçada em busca de recursos para tornar sua força de
trabalho rentável, além de deixar crescer entre a juventude o negacionismo e o
anti-intelectualismo. Que tais elementos característicos da extrema direita
estejam sendo fomentados pelo “empresariado progressista” nada tem de
paradoxal. Despida dos disfarces da ideologia de sua propaganda, apenas
evidencia que para tais empresas o que importa é a realização de sua própria
função de dominação de classe e reorganização dos serviços dos quais depende a
classe oposta, projeto este que coloca o controle da educação como caminho
estratégico. A “empresa soberana” dá passos no desenvolvimento de sua
“democracia totalitária” (BERNARDO, 2004), transformando toda relação – até
mesmo o processo de formação – em trabalho ou simulacro de trabalho, de modo a
impor que toda relação educativa seja objeto de sua gestão, seja para
exploração ou para a contenção dos conflitos sociais.
Para
tanto, é preciso subordinar o trabalho educativo ao massacre da submissão da
gestão empresarial pelo descarte e pela precarização absurda das condições de
trabalho, impondo ao professorado o exercício do papel de coachs que orientam
para “projetos de vida” ou “oficineiros” que desenvolvem projetos de inclusão
de seus estudantes na barbárie do trabalho. Isso tudo em meio a uma
reengenharia completa do sistema educacional, cada vez mais pautada na
voracidade por mais rendimentos lucrativos no processo de financeirização da
educação, transformada em negócio de impacto social.
A
nossa organização pela revogação da Reforma do Ensino Médio é uma luta em
defesa do trabalho docente e da formação da juventude, mas é também uma chance
de tomarmos a política como nossa matéria e nossa arma, pelo combate à política
empresarial e financeirizada da educação que nos subordina como objetos de sua
gestão. Uma luta que não se dá apenas nas ruas, mas no cotidiano das escolas,
pela auto-organização de coletivos estudantis e docentes, pelo estudo e pela retomada
da política como confronto entre projetos antagônicos, que deite por terra esse
falso consenso empresarial e nos tire de uma posição meramente defensiva e
reativa. É preciso estancar urgentemente o processo de degradação da educação,
e isso só ocorrerá por meio da organização e da luta coletiva.
Fonte:
Por Carolina Catini, no Blog da Boitempo
Nenhum comentário:
Postar um comentário