terça-feira, 28 de março de 2023

A história dos 15 mil livros de Gabriel García Márquez queimados por Pinochet

Em 28 de outubro de 1986, após vários dias de viagem, o navio a vapor Peban, do Panamá, finalmente atracou no porto chileno de Valparaíso. Enquanto se preparava para preencher os documentos da alfândega, a tripulação recebeu a notícia de que parte da carga seria apreendida.

O capitão, que tinha certeza de que toda carga de seu navio estava em ordem, perguntou que mercadoria eles iriam reter.

A resposta foi a que ele menos esperava: os livros.

Especificamente, 15 mil exemplares de A aventura clandestina de Miguel Littín no Chile, escrito pelo ganhador do Prêmio Nobel de Literatura Gabriel García Márquez. Os livros tinham sido enviados do porto de Boaventura, na Colômbia, país natal de García Márquez.

Os livros eram destinados a Arturo Navarro, representante da editora Oveja Negra no Chile. Na época, a editora era a responsável pela publicação dos livros do escritor no Chile.

O livro conta as dificuldades do cineasta chileno Miguel Littín, que vivia no exílio desde o golpe que levou Augusto Pinochet ao poder em 1973.

Littín havia retornado ao Chile por duas semanas em 1985, 12 anos após o golpe, para filmar secretamente um documentário sobre o que estava acontecendo no país.

Chamado Acta Central de Chile (Ato Central do Chile), o filme estreou no Festival de Cinema de Veneza de 1986.

Mas o livro de García Márquez foi mais longe: contava sobretudo detalhes que não constavam nas imagens, como o encontro de Littín, que se passara por empresário uruguaio, com o próprio Pinochet nos corredores do Palácio de la Moneda, onde o presidente de fato não o reconheceu.

"Fiquei sabendo da apreensão dos livros duas semanas depois porque estava fora do país", lembra Arturo Navarro tomando um café sob a nave central do Museu Nacional da Memória, no coração de Santiago.

Navarro havia retornado de uma viagem aos Estados Unidos para visitar sua família quando encontrou uma mensagem de alerta na secretária eletrônica de sua casa.

Era do seu despachante aduaneiro e ele descreveu uma situação crítica: "Arturo, me disseram que os livros foram queimados".

Para Navarro, a remessa era essencial: era o principal produto que ele esperava expor durante a feira do livro de Santiago, que aconteceria algumas semanas depois do incidente.

Navarro havia sido funcionário da Editorial Nacional Quimantú (amplamente perseguida pelo regime) e tinha visto de perto os militares destruírem livros. Mas ele também sabia que o regime de Pinochet havia relaxado suas políticas de censura.

Nesse contexto, ele acreditou que a apreensão poderia ter sido mais um mal-entendido do que um ato de repressão e decidiu viajar para Valparaíso para resolver o problema pessoalmente.

"O livro já havia sido publicado em capítulos no Chile por uma revista (Análisis) meses antes", diz Navarro. "No entanto, o que me preocupou é que, segundo a imprensa, a apreensão dos livros deveu-se ao mau estado dos contêineres, o que me pareceu uma desculpa incomum.

Quando Navarro se aproximou do prédio militar onde poderia tentar resgatar os livros, percebeu imediatamente a tensão que se fazia sentir no governo naqueles dias.

Um mês e meio antes, em 7 de setembro, militantes da Frente Patriótica Manuel Rodríguez tinham estado muito perto de matar Augusto Pinochet, em um ataque feroz quando voltava para Santiago de sua residência em Cajón del Maipó, a cerca de 50 quilômetros da capital. O ataque deixou cinco guarda-costas mortos e vários feridos.

"No prédio pude conversar com um militar de médio escalão a quem pedi que pelo menos me permitisse devolver os livros a Lima", conta. "Mas depois de fazer algumas ligações, ele finalmente me disse: 'Navarro, já queimamos os livros'."

A versão na mídia foi mantida: contêineres em mau estado, o que poderia explicar a apreensão, mas nunca a incineração.

·         'Feito de trouxa'

Para Navarro, estava claro que a ordem tinha vindo de cima e, mesmo que ele não tivesse provas, ele não ficaria parado até que as pessoas soubessem que o regime de Pinochet havia ordenado a queima de 15 mil volumes de nada menos que um ganhador do Prêmio Nobel.

"Ainda defendo que foi um capricho de Pinochet: ele não queria ver um livro, muito menos depois do ataque, que descreve basicamente como eles o fizeram de trouxa", diz Navarro.

A notícia o deixou desanimado e sem cópias para a feira.

Mas Navarro convocou coletivas de imprensa para divulgar o ocorrido, fez a denúncia pertinente perante a Câmara do Livro do Chile e, embora não houvesse muito eco no país, a notícia foi publicada mundo afora.

Navarro guarda recortes de jornais da Grécia, Holanda e Estados Unidos que falam dos livros queimados.

"Eu realmente não acreditei em nada que eles me contaram. Nem mesmo que eles foram queimados", diz Navarro.

Um de seus colegas recomendou que a melhor forma de obter uma resposta do regime seria pelos canais diplomáticos, então ele decidiu ir à embaixada colombiana, país de origem dos livros.

"Lá conheci Libardo Buitrago, o cônsul colombiano, que se ofereceu para me ajudar."

·         O documento

Pouco depois, por pressão do país estrangeiro, um documento muito revelador chegou ao cônsul, uma carta datada de 9 de janeiro de 1987, assinada pelo vice-almirante John Howard Balaresque, que não só confirmava a cremação dos livros, mas também as razões: as cópias de A aventura clandestina de Miguel Littín no Chile foram queimadas como "uma medida de censura prévia" sob o argumento de que o conteúdo "transgrediu abertamente as disposições constitucionais".

"Aquele papel é o único documento oficial existente em que o regime Pinochet aceita que queimou livros e que foi feito por meio de censura. Algo impossível de obter naqueles tempos", diz Navarro. "E agora está aqui, no Museu da Memória."

O documento, com assinatura oficial, serviu à editora Oveja para poder cobrar o seguro, mas também implantou na cabeça de Navarro uma certeza que nunca o abandonou: a cultura seria a chave para o fim do regime.

"Essa repressão dos livros, da cultura, daria uma reviravolta e acabaria sendo um dos principais motivos para que Pinochet deixasse o poder. Porque eram os cantores, os artistas, os escritores que seriam fundamentais na campanha pelo voto no plebiscito de 1988 que poria fim à ditadura", conclui.

 

Ø  A Ucrânia de Clarice Lispector: como nascimento e migração ilustram capítulo sombrio do povo ucraniano

 

A pequena Haia Pinkhasovna Lispector tinha um ano e três meses quando desembarcou no porto de Maceió, em Alagoas, em 1922. Acompanhada dos pais e das duas irmãs, ela migrou da Ucrânia para o Brasil logo após a Guerra Civil Russa (1918-1921).

Em solo nordestino, as meninas foram rebatizadas com nomes brasileiros. A caçula, Haia, virou Clarice. E, 20 anos depois, se tornaria a famosa escritora Clarice Lispector — naturalizada brasileira nos anos 1940.

De origem judaica, quase toda a família Lispector — não só os pais de Clarice, como também seus tios e primos — chegou ao Brasil fugindo das perseguições contra judeus na Ucrânia no início do século 20.

"Os familiares que não saíram da Ucrânia naquela época certamente morreram. É o caso de um dos avós de Clarice, que teria sido assassinado em um pogrom", afirma a escritora Teresa Montero, uma das maiores biógrafas de Clarice Lispector.

Os "pogroms" foram uma onda de ataques violentos contra judeus, com motivações políticas e religiosas, que varreu a Ucrânia nas décadas de 1910 e 1920.

Os Lispector foram alvo de um pogrom praticado por militares russos na aldeia onde moravam, em Chechelnyk, na província de Podólia, por volta de 1919. O episódio foi descrito no livro Clarice, Uma Biografia, do crítico americano Benjamin Moser.

Segundo a obra, o ataque aconteceu durante uma viagem do pai de Clarice, o comerciante Pinkhas, e a mãe dela, Mania, teria sido estuprada e contraído sífilis.

Clarice foi concebida neste contexto: a família acreditava, segundo uma crença popular, que uma gravidez poderia curar a doença de sua mãe. Não à toa, o nome Haia significa "vida" em ucraniano.

A cura de Mania, contudo, não aconteceu, e ela morreu quando Clarice tinha dez anos. A escritora contou o episódio em uma crônica, publicada no livro A Descoberta do Mundo, de 1968:

"(...) Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha mãe. E sinto até hoje essa culpa: fizeram-me para uma missão e eu falhei."

·         Os pogroms

"Os anos 1910 e 1920 foram difíceis para toda a Ucrânia, mas particularmente para a população judaica", afirma Jeffrey Veidlinger, professor de história e estudos judaicos da Universidade de Michigan, nos EUA.

Ele explica que, durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a maioria dos judeus na Ucrânia, na época pertencente ao Império Russo, eram artesãos ou comerciantes pobres que viviam em pequenas aldeias e sofriam perseguições religiosas e políticas.

"Durante a Primeira Guerra, os militares russos deportaram centenas de milhares de judeus das fronteiras do império russo, temendo que eles pudessem ser recrutados como espiões para os alemães", explica Veidlinger.

A situação piorou a partir de 1917, com a Guerra Civil Russa instaurada com o fim do czarismo e a consolidação da Revolução Russa, liderada pelos bolcheviques.

"Os pogroms mais letais foram praticados entre 1917 e 1921 por gangues armadas e unidades militares dos exércitos russos, ucranianos e poloneses", diz Veidlinger.

Estima-se que mais de 100 mil judeus foram mortos durante os pogroms de 1917 a 1921, segundo o professor, e outros 600 mil foram forçados a fugir da Ucrânia.

Com o desmantelamento do Império Russo, a Ucrânia e a Polônia vivenciaram um breve período de independência, mas também passaram por uma guerra civil em que judeus frequentemente eram alvos de saques e perseguições.

"O Exército ucraniano e o Exército Branco [russos contrários à Revolução Russa] atacaram os judeus com a suspeita de que eram leais aos bolcheviques. Já os poloneses acusaram os judeus de serem leais aos ucranianos", descreve Veidlinger.

A maior parte da violência contra os judeus, no entanto, foi cometida sob a acusação de que eles estavam do lado dos bolcheviques.

"Os bolcheviques inicialmente atacaram os judeus sob a acusação de que eram capitalistas burgueses. Depois, o Exército Vermelho defendeu os judeus. Vários dos líderes bolcheviques mais visíveis, incluindo o chefe do Exército Vermelho, Leon Trotsky, eram conhecidos por terem origem judaica", completa Veidlinger, lembrando que o próprio Trotsky nasceu na Ucrânia.

Depois do Holocausto cometido pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial (1941-1945), os pogroms são considerados o pior episódio antissemita da história.

·         Memórias da Ucrânia

Teresa Montero lembra que, apesar de Clarice ter falado muito pouco sobre a sua origem, trechos de suas crônicas publicadas no Jornal do Brasil, onde foi colunista entre 1967 e 1973, tocam brevemente no tema.

"Na Polônia, eu estava a um passo da Rússia. Foi-me oferecida uma viagem à Rússia, se eu quisesse. Mas não quis. Naquela terra eu literalmente nunca pisei: fui carregada de colo", escreve Clarice em uma crônica sobre suas viagens como mulher do diplomata Maury.

A escritora também nunca se manifestou publicamente sobre os episódios políticos que marcaram a Ucrânia e a Rússia.

"Não tem nenhum depoimento ou entrevistas em que Clarice tenha falado sobre a vida política da Ucrânia, nem sobre a União Soviética", afirma Montero.

Uma das hipóteses sobre o silenciamento de Clarice diante das questões políticas do seu país de origem era o medo de ser deportada.

"Quando entrevistei a tradutora Tati de Moraes, amiga de Clarice, ela me contou que a escritora tinha medo de ser deportada", lembra a biógrafa.

Contudo, isso não significa que Clarice não tivesse uma postura política.

"Ela [Clarice] foi fichada pela ditadura por ter participado da Passeata dos Cem Mil. Antes, ela já havia sido fichada pelo governo [Eurico Gaspar] Dutra, certamente por ser judia e de origem russa", ressalta Montero.

A Passeata dos Cem Mil foi uma manifestação popular contra a ditadura militar e a favor da democracia, encabeçada por intelectuais, artistas e estudantes, em 1968, no Rio de Janeiro.

Marcos históricos ocorridos na Ucrânia que foram contemporâneos de Clarice:

- 1921: Parte da Ucrânia é incorporada à Polônia.

- 1922: Ucrânia é incorporada à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).

- 1930: tem início o Holodomor (matar pela fome, em ucraniano), em que Joseph Stalin passa a exigir dos camponeses ucranianos grande parte da produção agrícola. Estima-se que 5 milhões de camponeses morreram de fome na região em pouco mais de três anos.

- 1953: a Ucrânia anexa a Crimeia.

Quem seria responsável por narrar as memórias da família Lispector na Ucrânia seria a irmã mais velha de Clarice, a também escritora Elisa Lispector.

"Elisa nasceu em 1911, era a mais velha das três irmãs. Clarice, a caçula, nasceu em 1920. Então, quem tinha memória do período na Ucrânia era Elisa, que chegou no Brasil já com 10 anos", diz Montero.

No livro Retratos Antigos, publicado postumamente em 2011 (Elisa morreu em 1989, deixando a obra inédita), a escritora conta sobre os pogroms e a vida dos judeus na Ucrânia.

"Como se iniciava um pogrom?, já me perguntaram por mais de uma vez, e eu não soube responder. Talvez porque eles mesmos, os que faziam os pogroms, não pudessem dizer", diz ela em um trecho do livro.

Elisa escreve que as cidades permitiam que apenas uma porcentagem de judeus frequentasse a escola e universidade e que, apesar de terem o direito de morar nas cidades, "até nos pequenos vilarejos, nos casebres de madeira, nas ruas tortuosas de caminhos de lama, os judeus viviam segregados e com medo".

·         Nacionalidade russa

"Hoje, falamos ucraniana, mas, na realidade, a nacionalidade da Clarice é russa, porque, na época do seu nascimento, a região pertencia ao Império Russo", explica Montero.

Ao longo da carreira, Clarice publicou 18 livros, entre romances, contos e crônicas

A questão fica clara na carta que Clarice escreveu ao presidente Getúlio Vargas pedindo sua naturalização, em que afirma ser:

"Uma russa de 21 anos de idade e que está no Brasil há 21 anos menos alguns meses. Que não conhece uma só palavra de russo (...) Que não tem pai nem mãe — o primeiro, assim como as irmãs da signatária, brasileiro naturalizado — e que por isso não se sente de modo algum presa ao país de onde veio, nem sequer por ouvir relatos sobre ele. Que deseja casar-se com brasileiro e ter filhos brasileiros. Que, se fosse obrigada a voltar à Rússia, lá se sentiria irremediavelmente estrangeira, sem amigos, sem profissão, sem esperanças."

Apesar do tom dramático, Teresa lembra que a carta foi escrita às vésperas do Brasil entrar na Segunda Guerra Mundial — o documento é de 3 de junho de 1942, e o país declarou guerra à Alemanha em 22 de agosto do mesmo ano — e que Clarice estava noiva do diplomata Maury Gurgel Valente, mas não podia se casar por ser estrangeira.

"O Itamaraty não permitia que diplomatas se casassem com estrangeiros, e Clarice não era só estrangeira, era também russa", explica a biógrafa.

A naturalização foi concedida um ano após a carta endereçada a Vargas. Cerca de duas semanas depois, Clarice e Maury se casaram.

A escritora morreu em 1977, no Rio de Janeiro, tendo afirmado durante toda a vida adulta ser brasileira.

 

Fonte: Por Alejandro Millán Valencia, da BBC News em Santiago/BBC News Brasil

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário