domingo, 30 de julho de 2017

Aécio dá o que não é dele. Por João Paulo Cunha

Está na Constituição Federal: senadores e deputados não podem firmar e manter contatos diretos com a administração pública ou ser concessionários de serviços públicos. Emissoras de rádio e TV são concessões públicas, já que utilizam de uma base física limitada e, portanto, sujeita a normas que devem ser dirigidas pelo interesse público. Como não há possibilidade para que todos criem suas emissoras de rádio e TV, as concessões e outorgas são um princípio ordenador que deveria responder às demandas por qualidade, diversidade, pluralidade e democratização. Sem falar nas garantias de livre mercado, vedando a concentração da propriedade nas mãos de poucos.
Essa é a teoria. Na prática, as concessões no Brasil se tornaram moeda de troca política, instrumento de barganha econômica, base de sustentação de candidaturas e negócio preservado da competição. Para isso, a legislação acompanhou a mesma ordem de interesses. Colocou o poder de concessão nas mãos do governo e não da sociedade. Permitiu a propriedade cruzada de meios e o consequente monopólio do setor – algo que os próprios modelos capitalistas mais orgulhosamente selvagens preservam. Dirigiu as outorgas para as mãos de políticos, que, hoje, são a mais expressiva categoria de proprietários de emissoras em todo o país.
O modelo que foi sendo consagrado por essa história gerou o monstro que hoje rege o setor: concentração econômica, esvaziamento de controle social, nivelamento da qualidade, unicidade ideológica, instrumentalização eleitoral e privatização da propriedade pública. Recentemente, já sob o domínio do golpismo vigente, as normas de renovação, análise de cumprimento de exigências legais e acerto de dívidas foram ainda mais abrandadas e automatizadas, tornando eterno o que deveria ser precário e sujeito a constantes avaliações. Perder ou ter uma concessão revisada, mesmo em face dos maiores ilícitos, se tornou uma tarefa quase impossível.
Não é um acaso que o golpe ganhe sempre a qualificação de midiático, ao lado de outros patrocinadores-master, como o sistema político e o Judiciário. A usurpação do poder popular foi midiática na inspiração, no fomento e na consagração. Por sua parte, os meios familiares receberam sua paga em forma de incremento de propaganda oficial, do fortalecimento dos vínculos de manutenção ideológica do pensamento único e, agora, por meio de uma sobrecarga de garantias que praticamente extingue qualquer possibilidade de controle.
Onde era a lei, hoje há o direito inalienável, portanto, acima e independente de qualquer pressão, seja ética ou de conteúdo, chegando até mesmo aos princípios do livre mercado, tão defendidos pela própria imprensa. O paraíso no mercado: um capitalismo sem competição, sem riscos e com financiamento público. Não é um acaso que os irmãos Marinho, proprietários das Organizações Globo, sejam, tomadas suas fortunas somadas, os mais ricos do mundo em seu ramo de negócio. E é bom lembrar que, como os filhos de Roberto Marinho, os outros herdeiros ativos do segmento não ascenderam ao topo da influência política em razão de sua competência nos negócios. Nossa história é pródiga em demonstrar que o caminho foi o inverso: o apoio às ditaduras sempre foi esteio do poder de suas empresas.
Hipocrisia
Para escapar de inquéritos e ações movidos pelo Ministério Público Federal, alguns políticos estão partindo para o caminho hipócrita de transferir cotas de suas sociedades em rádios e TVs para filhos, irmãos e outros laranjas menos cotados. É o caso, por exemplo, de Jader Barbalho (PMDB-PA), de Agripino Maia (DEM-RN) e de Aécio Neves (PSBD-MG). Jader repassou a cotas para a filha; Agripino para a mãe e Aécio para a irmã, Andrea Neves.
É importante lembrar que a situação do senador mineiro nesse capítulo de sua biografia não é nova. Remonta aos tempos em que era governador do estado, quando a decisão sobre a aplicação de verbas publicitárias em rádios e TV estava nas mãos de… Andrea Neves. A rádio Arco Íris, dos irmãos Neves, sempre recebeu publicidade pública estadual sem paridade com outras emissoras da mesma localidade.
O caso não é indecente apenas pela chicana, que preserva a dieta da grana pública automática e o palanque eletrônico, mas pela convicção de que a outorga era um bem pessoal. Em casos de concessão, descumpridos os requisitos legais, o domínio deveria voltar para o Estado e não ser moeda negociável no mercado da comunicação. A venda de concessões é um crime muito maior que aparenta. Não se trata apenas de garantir benesses aos proprietários das licenças, mas de transformar um bem público em um ativo pessoal. O resultado é o comércio descontrolado de emissoras, sem qualquer acompanhamento ou controle da sociedade.
O balcão de negócios se amplia ainda com a fatia cada vez maior de subconcessões, que dominam as telas e ondas com programas que vendem produtos e indulgências, em troca de parcelas no carnê e dízimos. Sem falar na extinção dos nichos culturais locais, que foram dilapidados pela programação nacional, dirigida pela lógica da audiência sem crítica. Completada pelo império da violência espetacularizada, do estímulo à banalidade e da destruição da comunicação pública, tem-se o quadro que hoje ocupa o espectro eletromagnético. Não chegaremos à democracia sem uma nova comunicação.

Para começar, é preciso tomar de volta o bem público que foi entregue a maus concessionários ou em descumprimento da lei. Aécio, além de não poder receber concessões do Estado em razão de seu cargo e da proibição constitucional, conseguiu ir além e, depois de investigado, deu o que não era dele para se livrar da acusação. No primeiro movimento, poderia ser acusado de falsidade; no segundo, no entanto, não escapa de uma acusação mais severa. E de um juízo moral que pode começar como esperteza, mas que se completa como cinismo.

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