Conservadores
acham que “marxismo” é qualquer coisa que os assuste
No
início deste mês, o autor de best-sellers Jordan Peterson declarou que “justiça
climática” é “a nova roupagem do marxismo assassino”. No mesmo dia, o candidato
presidencial republicano Ron DeSantis compareceu a um evento público
patrocinado pela WMUR-TV em Manchester, New Hampshire. Um eleitor perguntou a
DeSantis, que frequentemente critica tudo o que é “woke”, qual era seu termo
favorito. DeSantis respondeu que “woke é uma forma de marxismo cultural”.
Falando de Manchester, alguns dias após o evento de DeSantis, um membro da
legislatura de New Hampshire acusou a prefeita da cidade, Joyce Craig, de
promover “doutrinação marxista” nas escolas públicas.
O
“marxismo” parece estar ocupando muito espaço na cabeça dos conservadores
contemporâneos. Mas, como eles usam o termo, o que ele significa?
Muitas
vezes, é um termo genérico para cada tendência codificada à esquerda que eles
acham assustadora.
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Hazony e o desafio do “marxismo”
Yoram
Hazony é um pensador conservador muito mais inteligente do que DeSantis,
Peterson ou Mike Belcher — o legislador de New Hampshire que acusou a prefeita
de Manchester de promover “doutrinação marxista”. Hazony é o intelectual líder
do movimento NatCon (conservador nacional), que se tornou cada vez mais
influente na direita contemporânea. Se você o vir em uma conferência da NatCon,
ele pode estar lado a lado com Marco Rubio, Ted Cruz ou o líder autoritário
húngaro Viktor Orbán. Sei por experiência própria, porém, que Hazony é
perfeitamente capaz de ter uma conversa bem fundamentada sobre a filosofia de
David Hume.
No ano
passado, ele lançou um livro importante expondo sua visão de mundo, intitulado
Conservatism: A Rediscovery [Conservadorismo: Uma Redescobrimento]. Quando leio
os textos de Hazony, não espero concordar com ele em quase nada. O que me
surpreendeu e me decepcionou, porém, foi que Hazony incluiu um capítulo inteiro
intitulado “The Challenge of Marxism” [O Desafio do Marxismo] — e que sua
compreensão do marxismo é tão superficial quanto a de seus colegas
conservadores.
Hazony
faz afirmações alucinantes como:
No
verão de 2020, mesmo com as cidades estadunidenses sucumbindo a tumultos,
incêndios criminosos e saques, os guardiões liberais de muitas das principais
instituições do país adotaram uma política de acomodação de seus funcionários
marxistas, cedendo a algumas de suas reivindicações: demitindo funcionários
liberais do New York Times, removendo o nome do presidente Woodrow Wilson dos
corredores da Universidade de Princeton e assim por diante. Mas o que
inicialmente parecia uma política temporária de apaziguamento tornou-se uma
derrota. O controle de muitos dos mais importantes meios de comunicação,
universidades e escolas, grandes corporações e organizações filantrópicas, e
até mesmo da burocracia governamental, das forças armadas e de algumas igrejas,
passou para as mãos de ativistas marxistas.
O que
significa marxismo aqui? Qual poderia ser o significado consistente com a ideia
de que “grandes corporações” estão nas mãos de marxistas? Seria de se esperar
que qualquer “ativista marxista” desejasse que essas corporações fossem
nacionalizadas ou transferidas para alguma forma de propriedade dos
trabalhadores. Por que os ativistas marxistas que as controlam não tomaram
medidas nessa direção desde o verão de 2020?
Se
ativistas marxistas tomaram conta dos “veículos de notícias mais importantes”,
esses veículos não deveriam estar atuando pela expropriação dos meios de
produção? Se tomaram conta das universidades, os departamentos de economia, há
muito tempo repletos de economistas tradicionais e pró-capitalistas, não
deveriam agora ser ocupados por economistas, digamos, marxistas? (Talvez Hazony
dê crédito aos ativistas marxistas por respeitarem a liberdade acadêmica dos
economistas burgueses.) Se tomaram conta das Forças Armadas, como é possível
que a postura de domínio militar imperial dos Estados Unidos não tenha sido
impactada pela mudança?
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O “quadro geral” de Marx
Uma
pista surge quando Hazony admite que os “novos marxistas” não usam “o jargão
técnico que foi criado pelo Partido Comunista do século XIX”. Isso faz parecer
que uma organização com esse nome existiu no século XIX, o que é incorreto —
embora Marx, como outros escritores de sua época, às vezes usasse a palavra
“partido” para se referir a correntes gerais de pensamento. Podemos, no
entanto, deixar de lado esse erro relativamente pequeno e analisar o jargão que
Hazony tem em mente.
Ele diz
que os “novos marxistas” não usam termos como “burguesia, proletariado, luta de
classes, alienação do trabalho, fetichismo da mercadoria e tudo mais”, mas, em
vez disso, “desenvolveram seu próprio jargão adaptado às circunstâncias atuais
nos EUA, Grã-Bretanha e em outros lugares”. Mas isso é uma digressão.
Uma
coisa é evitar jargões ultrapassados e outra bem diferente é
discordar das ideias substantivas que o jargão pretendia
expressar. Um marxista do século XXI pode
preferir falar sobre “a classe trabalhadora” em vez de “o
proletariado”, por exemplo, alegando que provavelmente será
mais familiar ao seu público, mas parte do que o torna marxista é
que ele acredita que todos aqueles que não têm
outra maneira de ganhar a vida a não ser vendendo suas
horas de trabalho para um empresário estão
unidos por interesses comuns.
Para
sustentar suas alegações sobre “ativistas marxistas” estarem no controle de
grandes corporações, das Forças Armadas dos EUA e assim por diante, Hazony
precisa usar a palavra com M de forma muito mais ampla. Ele afirma que vários
tipos de ativistas da justiça social são marxistas porque, por mais que
discordem de Marx em “detalhes”, aceitam os quatro elementos principais de uma
“estrutura marxista”, que ele classifica como:
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Opressor e Oprimido
Hazony
escreve que Marx argumentou “que, como uma questão empírica, as pessoas
invariavelmente se formam em grupos coesos (ele os chamou de classes), que
exploram uns aos outros na medida em que são capazes”. Muito claramente, nas
mãos de Hazony, não importa muito se os “grupos coesos” são classes reais ou se
são raças, gêneros ou praticamente qualquer outra coisa.
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Falsa Consciência
Hazony
é escrupuloso o suficiente para reconhecer que Marx nunca realmente usou essa
expressão. O colaborador de Marx, Friedrich Engels, a cunhou, não em um
trabalho teórico, mas em uma carta a um amigo, e alguns marxistas posteriores
adotaram o conceito. Assim, é mais do que um pouco estranho chamá-lo de
elemento definidor da estrutura do pensamento de Marx — tanto que mesmo aqueles
que discordam das afirmações centrais que Marx passou a vida defendendo são
marxistas se as adotarem. De qualquer forma, porém, Hazony define a crença na
“falsa consciência” simplesmente como a crença de que muitas pessoas dentro de
uma determinada sociedade entendem sinceramente como essa sociedade funciona de
maneiras que “obscurecem a opressão sistemática que ocorre”.
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Reconstituição Revolucionária da Sociedade
Isto é
simplesmente a ideia de que o “grupo coeso” oprimido assumirá o controle da
sociedade para acabar com sua opressão, e…
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Desaparecimento total dos antagonismos de classe
…a
previsão é que isso resultará em uma sociedade não mais dividida em tais
grupos.
Significativamente,
a palavra “produção” não aparece em nenhum lugar desta descrição da estrutura
de Marx, embora nenhum aspecto do pensamento marxista seja reconhecível sem
ela. Marx, é claro, queria dizer algo muito mais específico com “classes” do
que “grupos coesos”. Tampouco a noção de “exploração” de Marx é reconhecível na
fala de Hazony sobre “grupos coesos” tentando “explorar uns aos outros na
medida em que são capazes”.
Se o
marxismo não fosse nada mais do que a visão de que qualquer sociedade em que
qualquer “marxista” se encontrasse estaria dividida em grupos onde alguns deles
tratariam os outros de forma injusta, então o “marxismo” antecederia
dramaticamente o nascimento de Karl Marx.
Quando
Espártaco liderou uma revolta de escravos na Roma Antiga, ele e seus seguidores
eram marxistas? E os camponeses que periodicamente se revoltavam contra os
senhores feudais na Europa medieval? Talvez os camponeses não contassem porque
buscavam apenas melhorias imediatas e, em sua maioria, não tinham o conceito de
uma “reconstituição revolucionária da sociedade”, mas e os revolucionários
franceses que tomaram a Bastilha em 1789? Os abolicionistas que protestaram
contra os males da escravidão no Sul dos Estados Unidos muito antes de Marx
descobrir a política? Mary Wollstonecraft, cujo tratado feminista “Uma
Reivindicação dos Direitos da Mulher” foi publicado alguns anos após a tomada
da Bastilha, mas mais de um quarto de século antes do nascimento de Marx, era
marxista?
Mesmo
as queixas especificamente socialistas sobre as injustiças da sociedade
capitalista são anteriores a Marx. Houve um próspero movimento socialista
europeu antes que o marxismo se tornasse uma das facções em conflito dentro
dele. As contribuições de Marx foram muito mais específicas.
O que
hoje chamamos de marxismo é, antes de tudo, uma teoria da história — dos
diferentes estágios do desenvolvimento histórico, de como funciona o estágio
capitalista em que nos encontramos e de como podemos transcender o capitalismo
e alcançar o socialismo. Marx postulou que as instituições jurídicas e
políticas de toda sociedade estão a jusante de suas “relações de produção”.
Essas são as relações entre alguma classe de “produtores imediatos”, que de
fato fabricam os produtos e serviços que fazem a sociedade funcionar, e a
classe dominante de qualquer sociedade — por exemplo, a relação entre escravos
e senhores de escravos, entre camponeses e senhores medievais, ou entre
trabalhadores assalariados modernos e empresários.
Quando
Marx diz que as relações de trabalho capitalistas são marcadas pela
“exploração”, ele não se refere apenas à injustiça ou à vantagem comparativa de
um grupo. Ele quer dizer que algumas das horas trabalhadas pelos proletários
são aquelas em que eles criam o equivalente ao que recebem de volta em seus
salários, enquanto outras são horas em que trabalham em benefício de seus
empregadores — e que essa extração de “trabalho excedente” é essencialmente
involuntária, uma vez que a classe trabalhadora não tem outra maneira realista
de ganhar a vida a não ser vendendo suas horas de trabalho aos capitalistas.
Essas relações de produção, por sua vez, estão a jusante do nível de
desenvolvimento das forças produtivas — ou seja, da capacidade que uma
sociedade tem de produzir coisas para atender às necessidades das pessoas.
É muito
difícil imaginar uma sociedade humana que não fosse, em nenhum sentido,
dividida em grupos que poderiam, às vezes, experimentar conflitos. Quando Marx
usou o termo classe, ele se referia a classes definidas por sua relação com os
meios de produção — por exemplo, fábricas, fazendas ou mesmo restaurantes onde
as pessoas produzem alimentos para obter lucro. A crença de que podemos ter uma
sociedade sem classes nesse sentido não é a crença em alguma utopia impossível
e livre de conflitos, mas simplesmente a crença de que, agora que estamos em um
estágio da história em que as forças de produção se desenvolveram o suficiente
para permitir a abundância compartilhada de forma geral, podemos alcançar uma
sociedade melhor substituindo a propriedade individual pela propriedade
coletiva dos meios de produção.
Uma
fração dos ativistas da justiça social que tanto incomodam Hazony pode
realmente aceitar algumas dessas ideias marxistas. Essa fração, porém, controla
exatamente zero “grandes corporações”.
O fundo
de verdade na descrição exagerada de Hazony é que realmente existem pessoas em
posições de poder em instituições importantes que falam muito sobre diversas
questões de justiça social. Longe de serem marxistas, porém, a maioria deles
são, na pior das hipóteses, tecnocratas sem alma, dispostos a seguir qualquer
roteiro que considerem bom para as relações públicas de suas instituições e, na
melhor das hipóteses, liberais radicais cuja visão não é de uma sociedade sem
classes, mas de uma sociedade em que os cargos mais altos na hierarquia de
classes são distribuídos de forma demograficamente justa entre diferentes
raças, gêneros, orientações sexuais, identidades de gênero e assim por diante.
Eles não querem que essas “grandes corporações” sejam nacionalizadas e
colocadas sob o controle dos trabalhadores, por exemplo — eles querem mais CEOs
mulheres e negras.
Enquanto
a ênfase predominante de Marx era na mudança das condições materiais na
prática, com mudanças na consciência coletiva tendendo a ocorrer na esteira
dessas mudanças mais básicas, os ativistas que incomodam Hazony concentram-se
principalmente em mudar as ideias subjetivas na cabeça das pessoas, mantendo as
circunstâncias materiais praticamente inalteradas. Qualquer descrição da
estrutura do pensamento de Marx que misture essas ideologias rivais acabará
mais confundindo que esclarecendo.
Assim
como os proponentes de todas as outras filosofias, os marxistas podem aprender
e, em última análise, se beneficiar das críticas intelectualmente mais
rigorosas às nossas ideias. Devemos acolher esse processo. Por isso, gostaria
que um inimigo tão inteligente quanto Hazony não se contentasse em lutar contra
espantalhos.
Fonte: Por Ben
Burgis – Tradução Pedro Silva, em Jacobin Brasil
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