Presidencialismo em choque: Considerações
sobe o artigo 84 da Constituição Federal
Este ensaio é um
estudo provocativo, não traz uma resposta, apenas procura fundamentar uma
pergunta, preocupação: “A Constituição Federal de 1988 teria um vício de
origem, hoje insolúvel, que ameaça toda a estrutura de poder?”.
O vício residiria na
imensa amplitude das atribuições aferidas no artigo 84 da Constituição de 1988,
configurando as mais amplas atribuições de poder ao Presidente da República.
Vejamos o artigo constitucional, apesar de longo é uma oportunidade para se ler
a Constituição Federal de 1988 Constituição Federal de 1988:
Art. 84. Compete
privativamente ao Presidente da República:
I – nomear e exonerar
os Ministros de Estado;
II – exercer, com o
auxílio dos Ministros de Estado, a direção superior da administração federal;
III – iniciar o
processo legislativo, na forma e nos casos previstos nesta Constituição;
IV – sancionar,
promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos
para sua fiel execução;
V – vetar projetos de
lei, total ou parcialmente;
VI – dispor sobre a
organização e o funcionamento da administração federal, na forma da lei;
VI – dispor, mediante
decreto, sobre: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)
(a) organização e
funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa
nem criação ou extinção de órgãos públicos; (Incluída pela Emenda
Constitucional nº 32, de 2001)
(b) extinção de
funções ou cargos públicos, quando vagos; (Incluída pela Emenda Constitucional
nº 32, de 2001)
VII – manter relações
com Estados estrangeiros e acreditar seus representantes diplomáticos;
VIII – celebrar
tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso
Nacional;
IX – decretar o estado
de defesa e o estado de sítio;
X – decretar e
executar a intervenção federal;
XI – remeter mensagem
e plano de governo ao Congresso Nacional por ocasião da abertura da sessão
legislativa, expondo a situação do País e solicitando as providências que
julgar necessárias;
XII – conceder indulto
e comutar penas, com audiência, se necessário, dos órgãos instituídos em lei;
XIII – exercer o
comando supremo das Forças Armadas, promover seus oficiais-generais e nomeá-los
para os cargos que lhes são privativos;
XIII – exercer o
comando supremo das Forças Armadas, nomear os Comandantes da Marinha, do
Exército e da Aeronáutica, promover seus oficiais-generais e nomeá-los para os
cargos que lhes são privativos; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 23,
de 1999)
XIV – nomear, após
aprovação pelo Senado Federal, os Ministros do Supremo Tribunal Federal e dos
Tribunais Superiores, os Governadores de Territórios, o Procurador-Geral da
República, o presidente e os diretores do banco central e outros servidores,
quando determinado em lei;
XV – nomear, observado
o disposto no art. 73, os Ministros do Tribunal de Contas da União;
XVI – nomear os
magistrados, nos casos previstos nesta Constituição, e o Advogado-Geral da
União;
XVII – nomear membros
do Conselho da República, nos termos do art. 89, VII;
XVIII – convocar e
presidir o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional;
XIX – declarar guerra,
no caso de agressão estrangeira, autorizado pelo Congresso Nacional ou
referendado por ele, quando ocorrida no intervalo das sessões legislativas, e,
nas mesmas condições, decretar, total ou parcialmente, a mobilização nacional;
XX – celebrar a paz,
autorizado ou com o referendo do Congresso Nacional;
XXI – conferir
condecorações e distinções honoríficas;
XXII – permitir, nos
casos previstos em lei complementar, que forças estrangeiras transitem pelo
território nacional ou nele permaneçam temporariamente;
XXIII – enviar ao
Congresso Nacional o plano plurianual, o projeto de lei de diretrizes
orçamentárias e as propostas de orçamento previstos nesta Constituição;
XXIV – prestar,
anualmente, ao Congresso Nacional, dentro de sessenta dias após a abertura da
sessão legislativa, as contas referentes ao exercício anterior;
XXV – prover e
extinguir os cargos públicos federais, na forma da lei;
XXVI – editar medidas
provisórias com força de lei, nos termos do art. 62;
XXVII – exercer outras
atribuições previstas nesta Constituição.
XXVIII – propor ao
Congresso Nacional a decretação do estado de calamidade pública de âmbito
nacional previsto nos arts. 167-B, 167-C, 167-D, 167-E, 167-F e 167-G desta
Constituição. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 109, de 2021)
Parágrafo único. O
Presidente da República poderá delegar as atribuições mencionadas nos incisos
VI, XII e XXV, primeira parte, aos Ministros de Estado, ao Procurador-Geral da
República ou ao Advogado-Geral da União, que observarão os limites traçados nas
respectivas delegações.
No artigo 84 vemos as
funções típicas do Chefe de Estado (VII, VIII, XVIII, 2ª parte, XIV, XV, XVI,
1ª parte, XIX, XX, XXI e XXII), do Chefe de Governo (I, III, IV, V, IX, X, XI,
XII, XIII, XIV, XVII, XVIII, primeira parte, XXIII, XXIV e XXVII) e do Chefe da
Administração Pública: II, VI, XVI, 2ª parte e XXV (SILVA, 2003, p. 555-6).
Outra forma, ainda mais evidente, de visualizarmos as confusões reinantes entre
Estado e Governo está clarificada neste referido artigo 84 da Constituição
Federal de 1988.
Não será um problema
estrutural, institucional, normativo-constitucional, misturar no próprio Texto
Constitucional as designações de governo e de Estado, mormente, quando sabemos
que há diferenças inamovíveis entre os termos?
Estado (perenidade) e
governo (transitoriedade) são institutos distintos, com designações, funções,
atribuições completamente diferentes – e ainda que não possam díspares
constitucionais –, uma vez que têm natureza, grandeza diversa, contando-se
inclusive uma relação de subordinação, hierarquização constitucional do governo
ao Estado Democrático de Direito (arts 1º, 2º, 3º, 4º da CF88). Nesta leitura,
o artigo 84 da Constituição de 1988 não teria lógica constitucional e estaria
em conflito com o escopo da Constituição – o que suscita o debate acerca da
condição compromissória da Constituição Federal de 1988 (negociada pelas
elites, pelo alto).
Aliás, a leitura do
artigo 84 ainda ajuda a avançar na prova construída acerca da tese do
superpresidencialismo, além de indicar como ao longo do tempo o artigo 84 foi
sendo alimentado de outros poderes, com as PECs de 1999 e 2021: a PEC de 2001
foi a mais generosa.
Ou, em outro sentido,
esta aludida deturpação de superpoderes não seria o problema em si, datado da
origem. Mas, ao contrário, o artigo 84 teria sido assim descrito na
Constituição de 1988, inclusive, como tentativa de uma Via Prussiana? Pelo
alto, com crescimento da heteronomia compromissória da Constituição Federal de
1988, de deter os reflexos e os excessos provindos da cultura política (“toma
lá, dá cá). Ou seria apenas reflexo dessa assim chamada Via Prussiana da
política brasileira?
Como dado objetivo,
lembremos que o Legislativo central brasileiro, de Cunha a Lira, causou um
rombo de 213 bilhões aos cofres públicos[i], com emendas parlamentares que, em
sua imensa maioria, não têm rastro, lampejo algum, de legalidade.
E, sem legalidade, é
fácil verificar que as emendas tampouco têm legitimidade, afinal, não há
registro republicano de que tenham alcançado objetos lícitos no seu destino. É
como dizer que a corrupção do erário se tornou regra, destruindo-se toda e
qualquer institucionalidade que pudesse haver sido compromissada com a própria
Constituição Federal de 1988, ao menos desde 2016.
Arthur Lira, como se
sabe, é o atual presidente da Câmara Federal e Cunha foi o motor do Golpe de
Estado de 2016, quando instado igualmente na presidência da Câmara em 2016
(Martinez, 2019). Devemos relembrar também que o fenômeno do
superpresidencialismo está presente no escopo do Legislativo e, para ficarmos
apenas no exemplo do golpismo de 2016 e nas ameaças atuais, cabe destacar que
dar andamento ao pedido de impeachment é tarefa que cabe monocraticamente ao
presidente da Câmara – seja qual for a casa legislativa.
Desse modo, é oportuno
indagar: Já há alguma análise comparativa ao artigo 84 da Constituição Federal
de 1988 – “compete privativamente ao Presidente da República” – com esse
desdobramento do parlamentarismo fajuto?
O
superpresidencialismo (27 incisos de exercício explícito de poder) teria
auxiliado na criação do seu revés, que é esse parlamentarismo golpista, ou tudo
é unicamente fruto das condições objetivas da política brasileira (o velho
“toma lá, dá cá”)? Tudo seria reflexo do eterno e reinante patriarcalismo, e
seu desdobramento político fisiológico chamado de populismo (de direita e de
esquerda)?
Será que há uma
combinação das duas situações – a CF88 com vício redibitório e as ações
perniciosas do Legislativo central antirrepublicano?
Neste caso, teríamos
que agregar a informação de que o plebiscito de 1993 trouxe a opção pelo
presidencialismo (e pela República), em negação ao parlamentarismo (e à
monarquia constitucional). As votações foram separadas, porém, o fato de a
monarquia estar no roteiro (contra o republicanismo), por si, nos diz o que e
quem requeria mais poderes naquela época.
É bem fácil analisar o
poder diminuto que restou à monarquia derrotada no plebiscito de 1993, salvo
pela existência de um tipo de imposto que ainda cabe à família real (o Laudêmio
cobrado em Petrópolis/RJ), outrossim, o plebiscito histórico apenas reforça a
ilustração de que a política nacional tem bem poucos recursos iluministas.
Isto é, o atavismo, o
patriarcalismo, o ranço autoritário que flerta regularmente com o fascismo
(reacionarismo, fanatismo, sectarismo), estão a toda nos corredores do
Legislativo nacional, especialmente na Câmara dos Deputados. Esta Câmara que já
foi chamada de “A Casa do Povo”.
Então, se essa Casa
ainda expressa o povo brasileiro, esse butim contra o erário não estaria de
acordo com a forma presente/permanente de corrupção da cultura política
popular?
Não é descabido
pensarmos que isto parece ser um dilema insuperável, especialmente se
observarmos as atuais condições objetivas e imorais que compõem o Legislativo
central brasileiro – um modelo que se replica em Estados e municípios.
Fonte: Por Vinício
Carrilho Martinez, em A Terra é Redonda
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