Por que o Brasil não tem uma 'Embraer do
mar'?
A Embraer é vista em
todo o mundo como um caso de sucesso na criação de uma empresa nacional de alta
tecnologia. A companhia aeronáutica é destaque no segmento de jatos comerciais
e aeronaves de defesa. Por outro lado, até pouco tempo atrás o país possuía uma
pujante indústria naval. Por que o setor marítimo nunca criou uma gigante como
a Embraer?
Em diversos momentos
de sua história, o Brasil foi uma potência naval, tanto em termos de Marinha
quanto em relação à sua capacidade de produção.
Durante a época do
Império, por exemplo, a força naval brasileira era a segunda mais forte do
mundo, ficando atrás apenas da Inglaterra. No entanto, com a Revolução
Industrial e a modernização das frotas ao redor do mundo, logo o país ficou
para trás.
Depois, a partir da
Era Vargas, o Estado brasileiro voltou a investir no setor, dando origem a uma
nova indústria naval no Brasil. Esse momento durou até o final dos anos 1980 e
início dos 1990, quando o setor foi novamente abandonado dentro da lógica do
neoliberalismo.
"Foi varrida do
mapa", define Lucas Kerr, professor no Programa de Pós-Graduação em
Integração Contemporânea da América Latina (PPG-ICAL) na Universidade Federal
da Integração Latino-Americana (UNILA), sobre o período que ele considera como "o
auge da nossa indústria naval moderna".
"Tínhamos mais de
100 mil empregos na indústria naval até 1989 e chegamos em 2000 com 3 mil
empregos. Os anos 90 foram um período no qual passamos a comprar tudo do
exterior."
Ariovaldo Rocha,
presidente do Sindicato Nacional da Indústria da Construção e Reparação Naval e
Offshore (Sinaval), relembra que, nos anos 1970, os estaleiros brasileiros
detinham a segunda maior carteira de encomendas do mundo, ficando atrás apenas
do Japão.
Estimulada pela
descoberta do pré-sal, a construção naval brasileira viu uma ressurgência no
início dos anos 2000. Como fomento à indústria, o governo Luiz Inácio Lula da
Silva (PT, 2003–2011) estabeleceu uma política de nacionalização progressiva
dos componentes navais.
Com o passar do tempo,
mais e mais peças dos navios deveriam ter origem nacional, até que em algum
momento o navio fosse produzido inteiramente com tecnologia brasileira. O
grande destaque nacional foi a construção de navios de apoio marítimo às
plataformas de petróleo e gás, diz Rocha.
"Chegamos a
fabricar mais de 60% dos componentes por aqui", detalha Kerr, que também é
coordenador do Núcleo de Estudos Estratégicos, Geopolítica e Integração
Regional (NEEGI). O momento de bonança, contudo, foi breve.
"A [operação]
Lava Jato liquidou isso e contribuiu para paralisar as compras de navios no
Brasil por parte da Petrobras e da Marinha Mercante, eliminando novamente nossa
indústria naval."
<><> A
Embraer pode servir de exemplo?
As indústrias náutica
e aeronáutica têm pontos em comum que permitem que paralelos entre elas sejam
traçados.
Ambas, por exemplo,
demandam alta tecnologia e ajudam a desenvolver a indústria nacional. As duas
também apresentam produtos de duplo uso, tanto civis quanto militares, dando a
elas grande importância dentro de estratégias de defesa do país e do fortalecimento
da Base Industrial de Defesa (BID), um dos pilares da Política Nacional de
Defesa (PND) e da Estratégia Nacional de Defesa (END).
Sendo assim, por que o
Brasil, que contou tantas vezes com uma indústria naval de ponta, nunca
produziu uma "Embraer dos mares"?
<><>
Embraer: a joia da indústria nacional
Fundada em 1969 sob o
manto do Estado brasileiro, a Embraer foi privatizada em 1994 durante o governo
de Itamar Franco. Hoje, a União mantém uma golden share (ação dourada, em
tradução livre) na companhia, retendo o poder de veto em decisões estratégicas
como compartilhamento de tecnologias militares e mudanças no controle acionário
e na denominação social da empresa.
Durante sua história,
a Embraer protagonizou o desenvolvimento da indústria aeroespacial brasileira,
tanto no âmbito civil, com seus jatos de voos regionais, sendo líder no
segmento de jatos comerciais de até 150 assentos, quanto na área militar, sendo
responsável por aeronaves como o turboélice Super Tucano, o cargueiro KC-390 e,
em parceria com a sueca Saab, a construção do caça Gripen.
Desenvolvido
nacionalmente, o KC-390 é um sucesso de vendas ao redor do mundo, já sendo
encomendado pelas forças aéreas de Portugal, Hungria, Países Baixos, Áustria,
República Tcheca e Coreia do Sul. Índia e Cingapura também demonstraram
interesse no cargueiro brasileiro, visto como o substituto do americano C-130
Hércules da Lockheed Martin.
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Momento nacional é de recuperação
A escassez de
encomendas — que passaram a ser direcionadas quase em sua totalidade para o
exterior — e a falta de investimentos e políticas públicas paralisou as
constrições navais após 2014, aponta o Sinaval à Sputnik Brasil.
"Isso se refletiu
na perda das conquistas desse período até 2014 e resultou na redução drástica
do número de empregos em nosso segmento industrial e em sua cadeia de
fornecedores, além da perda dos investimentos realizados."
O momento de paralisia
durou ainda durante as presidências de Michel Temer (MDB, 2016–2018) e Jair
Bolsonaro (PL, 2019–2022), afirma Kerr.
Desde o retorno de
Lula à presidência, os investimentos à indústria naval retomaram. "A
indústria naval e offshore voltou a receber atenção e as licitações de novas
embarcações, e módulos para plataformas estão começando a ser lançadas",
detalha o Sinaval.
Além disso, o Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) lançou a iniciativa
BNDES Azul, com linhas de créditos especiais para o setor. Em discurso durante
o anúncio do programa, o presidente do banco, Aloizio Mercadante, ressaltou que
o Brasil, dependente dos mares para suas exportações, "não possui frota
própria".
"Como que o país,
um dos três do mundo que constrói e certifica avião, não vai fazer ou não pode
ou não deve fazer navios? Nós precisamos fazer navios."
<><> O que
falta para uma 'Embraer do mar'?
Hoje, o centro de
produção naval mundial se encontra na Ásia. China, Coreia do Sul e Cingapura
dominam o mercado de exportações. Só os estaleiros chineses foram responsáveis,
em 2021, por 47,2% dos navios construídos no planeta.
Isso não quer dizer,
no entanto, que para competir seja preciso bater de frente com esses gigantes.
Uma empresa como a Embraer, por exemplo, atua em um ramo específico e
estratégico na construção aeronáutica, dificilmente competindo com a Boeing e a
Airbus.
Dessa forma, nada
impede que sejam estudadas "medidas similares de incentivos e fomentos
regulatórios e tributários" semelhantes aos que existem para a joia da
indústria aeronáutica brasileira, diz Ariovaldo Rocha, presidente do Sinaval.
"No passado,
havia, em paralelo à construção para armadores nacionais, muitas construções
para exportação, chegando o Brasil a construir quase 100 navios de grande porte
para armadores internacionais."
A capacidade e a
expertise dos estaleiros brasileiros é evidente, aponta o sindicato, tanto pela
retomada da construção civil como pelos novos projetos da Marinha brasileira,
que em parceria com a França e a Alemanha está também desenvolvendo seus meios.
Com o francês Naval
Group, a Marinha desenvolve o Programa de Desenvolvimento de Submarinos
(Prosub). Ao todo, quatro submarinos de propulsão convencional e um de
propulsão nuclear serão construídos. Por enquanto, três dos quatro submarinos
convencionais previstos já foram lançados, enquanto o Álvaro Alberto, movido a
energia nuclear, tem previsão de lançamento apenas na próxima década.
Já com a alemã
Thyssenkrupp, a Marinha está construindo quatro fragatas classe Tamandaré, das
quais a primeira foi lançada este ano. O projeto é feito por meio do consórcio
Águas Azuis, do qual também participa a Embraer através das subsidiárias
Embraer Defesa e Atech.
Nesse sentido, a falta
de uma "Embraer naval" se deu até então pela ausência histórica de
prioridade na área, aponta Kerr. A indústria naval é uma que, segundo o
especialista, precisa de um mínimo de apoio estatal, através de medidas de
reservas de mercado. "Foram os momentos que a gente desenvolveu."
Sendo assim, o modelo
de criação da Embraer, estatal ligada à Aeronáutica que também contou com
planos de desenvolvimento de aeronaves civis, nunca foi reproduzido pela
Marinha que, de acordo com Kerr, sempre priorizou submarinos e fragatas
importadas.
"Na Força Aérea,
um pouco por causa da competição com a Argentina, que tinha uma indústria
aeronáutica mais desenvolvida, a fabricação de um avião próprio foi
priorizada."
Somado a isso,
despesas com pessoal e, no caso da Marinha, com a manutenção do porta-aviões
também impediram o desenvolvimento de novos projetos. "Tem anos que 95% do
orçamento foi gasto com salário e manutenções."
Hoje, a situação é
outra, e a Marinha do Brasil está desenvolvendo nacionalmente seus armamentos.
Ainda assim, a oportunidade não parece estar sendo aproveitada pela força
naval, que, diferentemente da Força Aérea Brasileira (FAB), não demonstra
pensar na exportação de seus armamentos.
O caso da Marinha
argentina, que olha para a Alemanha e França para comprar novos submarinos para
a sua força, é ilustrativo.
Ainda que o Brasil
estivesse na corrida para vender um submarino — antigo — para a Argentina, este
seria um modelo já adquirido da Alemanha, o classe Tupi, e não um nacional
representativo da tecnologia brasileira.
Fonte: Sputnik Brasil
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