Por que Brasil de Lula não rompe com
Venezuela de Maduro?
A relação entre Brasil
e Venezuela passa por um de seus momentos mais tensos até hoje após disputas em
relação ao resultado da eleição presidencial e o mais recente embate em torno
da custódia da embaixada da Argentina no país.
O Brasil estava
tomando conta das instalações argentinas em Caracas desde o início de agosto,
quando o governo de Nicolás Maduro decidiu expulsar as equipes diplomáticas de
pelo menos sete países — incluindo a Argentina — após acusações de fraude nas
eleições presidenciais.
Mas, no último final
de semana, Maduro anunciou a decisão de retirar a autorização para o Brasil
custodiar a embaixada da Argentina no país.
Em resposta, o
Ministério das Relações Exteriores brasileiro afirmou que informou à Venezuela
que seguirá representando os interesses argentinos em Caracas até que seja
designado um substituto.
O pedido pela Justiça
venezuelana de prisão de Edmundo González Urrutia, candidato que concorreu pela
oposição nas eleições, também agravou a crise entre as duas nações. González
deixou o país e recebeu asilo da Espanha.
O presidente Luiz
Inácio Lula da Silva (PT) tem feito críticas a Maduro e à recusa do venezuelano
em divulgar as atas das eleições para estabelecer a credibilidade do processo,
mas rejeita cobranças sobre romper as relações entre Brasil e Venezuela.
Na sexta-feira (6/9),
antes do anúncio da decisão venezuelana sobre a representação diplomática, Lula
reiterou que não pretendia romper as relações ou fazer bloqueio contra o
governo de Maduro.
"Estamos em uma
posição, Brasil e Colômbia, a gente não aceitou o resultado das eleições, mas
não vou romper relações e também não concordo com a punição unilateral, o
bloqueio. Porque o bloqueio não prejudica o Maduro, o bloqueio prejudica o povo
e eu acho que o povo não deve ser vítima disso", disse o presidente
brasileiro em entrevista à rádio Difusora Goiânia na sexta.
A posição de Lula vai
na contramão da adotada por outros líderes sul-americanos, como o presidente de
esquerda do Chile, Gabriel Boric, que declarou que os resultados que apontariam
vitória de Maduro "eram difíceis de acreditar".
O governo de Jair
Bolsonaro (PL) também rompeu com Maduro quando reconheceu o deputado da
oposição Juan Guaidó como presidente interino em 2019.
Mas por que o governo
Lula tem insistido em manter uma posição neutra?
• Administração da relação
Diplomatas ouvidos
pela BBC News Brasil em caráter reservado ao longo dos últimos dois meses e
especialistas explicam que uma das razões principais pelas quais o governo
brasileiro não pretende romper relações com a Venezuela a despeito dos últimos
acontecimentos é a necessidade de administrar o diálogo com um país com o qual
compartilha 2,2 mil quilômetros de fronteira.
Um diplomata da cúpula
do Itamaraty afirmou que a tentativa de isolar a Venezuela observada durante os
anos em que o Brasil foi governado por Bolsonaro não surtiu o resultado
esperado (uma mudança de regime) e trouxe problemas aos principais vizinhos do país
como o Brasil, que teve de lidar com um aumento massivo da imigração
venezuelana tendo pouca ou nenhuma interlocução com autoridades do país
vizinho.
Ainda segundo esta
fonte, a extensa fronteira entre os dois países e a existência de comunidades
brasileira e venezuelana nos dois países fazem com que seja importante manter
canais de diálogo com o país vizinho.
“A avaliação é que o
rompimento com um país vizinho, além de produzir poucos benefícios, gera uma
série de dificuldades no dia a dia da gestão da relação”, diz Oliver Stuenkel,
professor de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV).
Segundo o
especialista, as consequências de romper relações vão além da política e
poderiam refletir, por exemplo, na administração de questões consulares, tais
como o atendimento a brasileiros que vivem na Venezuela.
Além disso, a
manutenção da relação permite que o Brasil atue de forma mais próxima na gestão
do fluxo de imigrantes venezuelanos que chegam ao país e em outros temas
fronteiriços e alfandegários.
“A crise dos
refugiados é algo que, na minha avaliação, é muito mais significativo do que a
afinidade ideológica", afirma Carolina Silva Pedroso, professora de
Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
"O Brasil se
tornou nos últimos anos o quarto principal destino dos venezuelanos, há uma
pressão grande na fronteira e da própria opinião pública sobre essa questão.”
Para Laura Trajber
Waisbich, diretora do programa de Estudos Brasileiros da Universidade de
Oxford, no Reino Unido, a fragilidade política venezuelana também não interessa
ao Brasil.
A instabilidade
econômica da Venezuela afeta o Brasil de maneira muito direta, não só por conta
do aumento no fluxo de imigrantes, mas também por proporcionar um contexto
propício para o uso da fronteira na região amazônica por organizações
criminosas, diz a especialista.
“Essa fronteira está
cada vez mais porosa e ingovernada”, afirma, ressaltando a relevância da região
para o tráfico de cocaína e a atuação de organizações como o Primeiro Comando
da Capital (PCC).
• Tradição diplomática
Outro fator relevante
mencionado pelas fontes ouvidas pela BBC Brasil é a prática diplomática
conciliatória brasileira.
“A tradição
diplomática brasileira não dispõe do rompimento de relações diplomáticas com
tanta facilidade”, afirma Pedroso.
“Embora esse recurso
tenha sido utilizado com bastante frequência no mundo, em tese, deveria ser uma
das últimas ações a se tomar, quando todas as possibilidades de diálogo
estivessem esgotadas.”
Laura Waisbich explica
ainda que a tradição brasileira também passa pelo cumprimento do princípio de
não interferência em assuntos de política interna de outros países.
“A política externa
brasileira é uma prática mais reticente a esse tipo de gesto de rompimento,
sobretudo quando esse rompimento tem a ver com situações de caráter doméstico
do país”, diz.
“A Venezuela é um país
parceiro vizinho e o que acontece ali pode impactar no Brasil, mas no final das
contas tratam-se de acontecimentos da própria dinâmica do processo político
venezuelano.”
Para além da tradição
brasileira, há ainda uma prática diplomática comum na América Latina nos
últimos anos que se apoia na ideia de que os problemas da região devem ser
resolvidos internamente, dizem as especialistas.
“Há uma tradição na
América Latina, que começou na América Central na década de 80 e foi evoluindo
desde então, de construir uma cultura de mediação e negociação diplomática
interna” para evitar a influência de atores externos, explica Waisbich.
• Papel de mediação
O papel de destaque do
Brasil nas negociações políticas entre governo Maduro e oposição é também um
fator de peso na relação.
Desde que Maduro se
declarou vencedor das eleições presidenciais e a oposição questionou os
resultados, Brasil e Colômbia vem se empenhando em uma a tentativa de diálogo.
Além de fazer consultas com ambos os lados, os dois países também lançaram um
pacote de ideias para tentar resolver a crise política no país vizinho.
Os esforços não
parecem ter dado grande resultado na crise atual, mas diplomatas consultados
pela BBC Brasil afirmam que o governo brasileiro deseja manter sua posição como
mediador para um eventual aprofundamento da instabilidade.
O argumento é o de que
um eventual rompimento pioraria uma situação que já ruim e dificultaria ou
impossibilitaria ainda mais qualquer tentativa de influenciar o governo Maduro.
Em resumo, a tese é:
se mesmo próximo, o Brasil enfrenta dificuldades para influenciar o regime
venezuelano, ao ficar distante essa missão poderia se tornar impossível.
Os especialistas
consultados pela reportagem concordam com a abordagem.
“É importante manter
alguma interlocução básica para que se houver sinais de instabilidade do regime
no futuro, o Brasil esteja relativamente bem posicionado para ter algum
diálogo”, diz Oliver Stuenkel.
Para Carolina Pedroso,
existe uma crença entre muitos dos observadores internacionais de que não
haverá saída pacífica para a crise atual sem algum grau de auxílio externo - e
o Brasil se prepara para isso.
“Uma das confluências
do governo Lula e da tradição diplomática brasileira é a aposta em recursos de
mediação, conciliação e diálogo, por isso há uma resistência em ‘abandonar’ a
Venezuela à própria sorte”, diz.
• Influência externa
Outro diplomata
brasileiro com experiência na região sul-americana afirmou à BBC que o
Itamaraty também entende que isolar ainda mais a Venezuela, além de não
garantir uma melhora no ambiente democrático do país, poderia ter como efeito
colateral um aumento da dependência do governo de Maduro em relação a potências
extra-regionais como a China e a Rússia.
Não por acaso, os dois
países foram alguns dos poucos que reconheceram como legítimos os resultados
das eleições presidenciais de julho deste ano. Tanto o presidente russo,
Vladimir Putin, quando o líder chinês, Xi Jinping, enviaram mensagens
parabenizando Maduro pelo resultado.
Para Waisbich, o
Brasil deseja manter uma ponte de diálogo justamente para evitar que atores de
influência histórica na região, como os Estados Unidos, e outros mais recentes,
como a China, tomem sua posição de protagonismo.
“Se o Brasil sair de
cena por conta de um rompimento de relações, esses outros atores vão ocupar o
espaço político rapidamente”, diz.
Pedroso explica que o
conflito interno da Venezuela incorpora diversas outras disputas geopolíticas
globais.
“Além da proximidade
de Maduro com China, Rússia, Irã, Turquia, Cuba e outros atores que desafiam a
ordem internacional liberal, do outro lado a oposição não é só muito próxima de
Estados Unidos e União Europeia em termos ideológicos, mas também dos interesses
do capital privado de empresas que desejam explorar o petróleo venezuelano”,
diz.
O diplomata brasileiro
ouvido pela reportagem afirmou, no entanto, que a atual postura do Brasil pode
sofrer uma mudança a partir de 10 de janeiro de 2025. Esta é a data prevista
para o começo do novo mandato de Maduro.
À medida que o Brasil
ainda não reconheceu os resultados das eleições venezuelanas, a posse de Maduro
para mais um mandato deverá obrigar o governo Lula a se posicionar novamente
sobre o tema.
Até agora, disse esta
fonte, Maduro está no legítimo cumprimento de seu atual mandato.
Mas o que acontece
após ele assumir um novo mandato por meio de eleições cujo resultado o Brasil
não reconhece?
Segundo este
diplomata, a eventual posse de Maduro deverá criar novos impasses para o
governo brasileiro.
Entre eles está a
decisão sobre a permanência ou não da Venezuela em fóruns internacionais dos
quais o Brasil faz parte, como a Comunidade de Estados Latino-Americanos e
Caribenhos (Celac).
• Pressões internas e histórico da relação
Para Lula, há ainda o
desafio de se equilibrar entre a posição adotada pelo seu governo oficialmente,
por meio do Itamaraty, e a sua própria relação e do Partido dos Trabalhadores
com o chavismo.
A legenda reconheceu a
vitória de Maduro no dia seguinte à eleição, com uma nota que tratava o
venezuelano como "presidente agora reeleito", apesar da posição mais
cuidadosa do Ministério de Relações Exteriores.
"Importante que o
presidente Nicolás Maduro, agora reeleito, continue o diálogo com a oposição,
no sentido de superar os graves problemas da Venezuela, em grande medida
causados por sanções ilegais", disse em nota da Executiva Nacional do PT,
comandado pela deputada Gleisi Hoffmann (PR).
Lula foi questionado
sobre a nota, e buscou minimizar as críticas ao partido.
"Não tem nada de
grave, não tem nada de assustador. Eu vejo a imprensa brasileira tratando como
se fosse a Terceira Guerra Mundial. Não tem nada de anormal", disse o
presidente.
"Teve uma
eleição, teve uma pessoa que disse que teve 51%, teve uma pessoa que disse que
teve 40 e pouco por cento. Um concorda, o outro não. Entra na Justiça e Justiça
faz."
A oposição
venezuelana, porém, diz não ser possível confiar no Judiciário do país por ser
dominado por Maduro.
Também contesta a
noção de que haja uma normalidade no processo político do país, apontando que,
ao longo dos anos, o chavismo passou a controlar órgãos como a Suprema Corte e
o Conselho Eleitoral.
Além disso, órgãos de
direitos humanos, como o da Organização das Nações Unidas (ONU), apontam
violações em resposta a protestos no país e prisões arbitrárias de oponentes,
além da inabilitação política de muitos deles.
O PT é um aliado
histórico do chavismo na Venezuela. O presidente Lula também nutriu, durante
seu histórico na política, relações cordiais com Hugo Chávez e outros
representantes da esquerda latino-americana.
Esses antecedentes,
segundo analistas, também tornam um rompimento total de relações com a
Venezuela improvável.
Mas, para Pedroso, é
principalmente o posicionamento do PT que pesa para essa decisão.
“Há uma a aproximação
de alas do PT com o processo da Revolução Bolivariana e o entendimento de que
os problemas que ocorrem lá são fruto da ingerência do imperialismo
norte-americano e de uma oposição mancomunada com os Estados Unidos”, afirma.
“Ou seja, uma
interpretação da realidade que subestima ou até ignora os problemas endógenos
do chavismo.”
Segundo a
pesquisadora, diferente do que muitos acreditam, Lula e Chávez não eram tão
próximos no nível interpessoal como se supõe.
Pedroso cita relatos
de diplomatas que atuaram em negociações durante os primeiros mandatos do
petista e que afirmam terem presenciado momentos de irritação de Lula com
Chávez por conta de alguns arroubos do venezuelano, além da visão distinta que
eles tinham do papel da integração regional.
Com Maduro, a
proximidade é ainda menor, ressalta Pedroso.
Ainda assim, Lula
expressou apoio claro ao atual presidente venezuelano publicamente em diversas
ocasiões.
Após assumir seu
terceiro mandato, o petista mandou reabrir a embaixada brasileira em Caracas,
desativada por Bolsonaro, nomeou uma nova embaixadora e recebeu Maduro em
Brasília com honras de chefe de Estado durante uma cúpula de líderes da América
do Sul, em maio do ano passado.
Na ocasião, foi ainda
criticado por afirmar que as alegações de que o regime de Maduro é autoritário
eram, na verdade, parte de uma "narrativa" que deveria ser combatida
pelo líder venezuelano.
Mas o tom mudou
bastante com a aproximação das eleições presidenciais. Antes do pleito, Lula
disse ter ficado assustado com declarações de Maduro sobre um eventual banho de
sangue no país caso não vencesse a disputa.
O venezuelano
respondeu com um recado ríspido para Lula: "A quem se assustou, que tome
chá de camomila".
Pedroso afirma não
acreditar que a posição mais radical de algumas alas do PT em relação ao
chavismo seja compartilhada por Lula ou pelo seu assessor direto Celso Amorim,
que além de "guru" da política externa é filiado ao PT. “Mas há
cobranças internas”, afirma a pesquisadora.
“O Lula tem que lidar,
claro, com as realidades geopolíticas, mas também com um partido que tem uma
visão bastante radical nesse quesito”, resume Stuenkel
Fonte: BBC News Brasil
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