Emergency em Gaza: “Aqui na área
humanitária no meio de uma multidão acostumada à dor”
O acordo sobre a
trégua entre Israel e o Hamas foi alcançado em 90%. E os 10% ainda em discussão não
dizem respeito ao “corredor Filadélfia”, a faixa de 14 quilômetros
entre Gaza e o Egito sobre a qual Tel
Aviv gostaria de manter o controle militar. No dia seguinte ao aparente
fechamento do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, que descartou a
retirada da zona-tampão, como o grupo armado gostaria, o governo
dos EUA tentou corrigir o rumo.
O embaixador em Tel
Aviv, Jack Lew, reiterou que as negociações “continuam a progredir, mesmo
em questões fundamentais”. Ele acrescentou: as conversações “abordaram as
questões mais difíceis, algumas das quais não são objeto da maioria dos debates
públicos”. Um dos dossiês pendentes seria o dos presos palestinos a serem
libertados em troca dos reféns israelenses. Os milicianos gostariam que
fossem 800 em vez dos 150 iniciais, entre os quais alguns condenados à
prisão perpétua por matar civis. Suas exigências teriam se enrijecido nos
últimos dias, afirma Washington, sem esconder uma certa preocupação. No
entanto, o “nó relativo ao corredor Filadélfia” continua voltando ao
centro do debate. Ontem, o exército do Cairo realizou uma inspeção
surpresa, ao final da qual garantiu a eliminação dos túneis. Netanyahu, no
entanto, parece não estar convencido: ontem mesmo ele definiu a área de “porta
de entrada do Irã para a Faixa”.
A intransigência
do Netanyahu seria
devida, na verdade, a um fator muito distante do corredor em torno
de Rafah: a votação nos EUA. Essa é a tese defendida pelo New
York Times que, citando altos funcionários em Washington, acusa o
primeiro-ministro israelense de protelar na espera de conhecer o novo inquilino
da Casa Branca. Este último, por sua vez, coloca a responsabilidade
no Hamas. “É culpa dele que o acordo não esteja próximo”, reiterou em uma
entrevista à Fox News. Enquanto isso, o número de mortos continua a
aumentar. Atualmente, são quase 41.000 os mortos na Faixa, de acordo com
o Ministério da Saúde local, controlado pelo Hamas. E a esperança de
que os sequestrados voltem para casa – sobre os quais o grupo armado não se
cansa de divulgar vídeos para manter alta a pressão – diminui mais a cada dia.
A sede que
compartilham com outra ONG é um prédio de um andar com pátio. De um lado, o
portão de entrada. Nos três lados restantes, tendas. “Se eu olhar da varanda,
vejo deslocados. Aqui havia campos e terras não cultivadas, o solo é
semidesértico. Agora é uma extensão de tendas leves ou estruturas
improvisadas: duas tábuas de madeira e uma lona. Ainda faz mais de 30 graus e a
umidade está entre 60 e 70%. Imagino o que acontecerá quando as chuvas
chegarem”. Stefano Sozza, chefe de missão da Emergency na Faixa
de Gaza, fala de al-Zawayda, ao norte de Deir al-Balah, na “área
humanitária”. Ao chegar em 15 de agosto, ele e seu colega especialista em
logística identificaram o terreno onde construir a clínica de campo.
<><> Eis a
entrevista.
·
Essa é a primeira vez que a Emergency está
em Gaza. Você já havia trabalhado lá com outra ONG. O que encontrou?
Em 2017, tínhamos um
escritório na Cidade de Gaza. Para chegar a Rafah pela
estrada costeira, a Rashid Road, levava meia hora. Era tranquilo. Agora,
para chegar a Khan Yunis, pouco mais da metade do caminho pela mesma estrada, levamos no
mínimo duas horas. Uma infinidade de pessoas. Milhares de crianças. Não
adianta buzinar, as pessoas não se afastam. Tomadas por um cansaço latente.
·
Não vai dizer que há trânsito...
Há trânsito de
carroças puxadas por burro, bicicletas e pedestres. Nos 46 quilômetros
quadrados da área humanitária, quase 2 milhões de pessoas estão
amontoadas. Que perderam tudo. O barbeiro corta os cabelos sob duas tábuas e um
pedaço de lona. O padeiro faz o mesmo. Eles inventam pequenos negócios ao longo
do caminho. Até porque não há espaço em outro lugar. Há poucos carros, com o
diesel custando 15 euros por litro no mercado negro. Antes de 7 de
outubro, custava menos de um euro. É uma economia de guerra.
·
Como vocês se deslocam?
Na passagem
de Kerem Shalom, entramos com o comboio blindado da ONU. Aqui nos
deslocamos com SUVs alugados, sempre dois por prudência. Informamos o exército
sobre nossas coordenadas de partida e chegada e os tempos estimados. Ficamos
dentro da área humanitária. Fizemos várias inspeções para conhecer o
terreno.
·
E o que viram?
Indo para o sul, na
área costeira de al-Mawasi, há tendas até na praia. Mal se consegue ver o
mar. O mesmo acontece em direção ao interior. Com exceção das áreas urbanas, ou
o que restou delas, de Deir al-Balah até Khan Yunis é um
acampamento ininterrupto. Também é por isso que não foi fácil encontrar o
terreno.
·
Onde o encontraram?
Na província
de Khan Yunis, a um quilômetro do mar. Um terreno privado cercado.
Iniciaremos a construção nas próximas semanas. Será uma clínica de campo que
oferecerá serviços de saúde primária. Uma estrutura leve, fácil de evacuar.
Laminados corrugados e painéis isolantes. Três ou quatro ambulatórios, uma sala
para doenças infecciosas e uma sala de emergência.
·
Nada de cirurgia de guerra?
Os poucos hospitais em
funcionamento o fazem. O que os congestiona é a pressão do atendimento em saúde
primária: trauma civil, acidentes, atendimento pós-parto.
·
Não há feridos na área humanitária?
O risco é muito menor
do que em Gaza ou Rafah, mas houve bombardeios. Outra noite, por
volta das 3h30 da manhã, ouvimos duas fortes explosões. Pela manhã, soubemos
que houve um ataque perto do hospital al-Aqsa em Deir-al-Balah. Também costumamos ouvir tiros entre
as tendas. Brigas de família. Violência traz violência.
·
Circulam armas entre os deslocados?
Como em todos os
países em guerra. Quando eu estava no Afeganistão, muitas vezes me deparei
com acertos de contas por motivos triviais. O nível de estresse pós-traumático
daqueles que não estão mais no controle de suas vidas exacerba qualquer tensão.
E quando oito pessoas vivem em uma tenda, não faltam desentendimentos. Lembra
o lockdown da Covid. E lá tínhamos tudo.
·
Que tipo de contato vocês têm com a
população?
Durante as inspeções,
as pessoas se aproximavam. Primeiro por curiosidade. Depois, eu via um lampejo
de esperança em seus olhos. Começavam a pedir. Comida, sabão, Internet. Um
sabonete custa 10 euros. Os vendedores de sementes os ofereciam para nós. Não é
fácil fazer uma inspeção e entender que não se pode operar naquela área. Eles
nos diziam: obrigado por estarem aqui.
·
Quando vocês estarão operando?
O mais rápido
possível, estimamos que em meados de outubro. Recebemos a autorização para
construir e estamos no processo de seleção da equipe local: cerca de 20
pessoas, entre pessoal da saúde e não. No início de outubro, deveriam chegar
quatro ou cinco médicos e um obstetra do exterior. Cada especialidade
profissional terá duas pessoas, que serão revezadas a cada seis semanas.
·
Quanto tempo você ficará?
Mais três meses. Até a
primeira semana de dezembro.
¨ A agonia da Cisjordânia. Por Francesca Mannocchi
Dos campos de
refugiados à Jihad: a infância dos milicianos marcada pelos ataques das
forças de defesa israelenses. Como Abu Shujaa, 26 anos, celebrado como um
herói, que Israel eliminou. Mas entre eles há aqueles que perderam a
esperança: “A luta armada está destinada ao fracasso”.
Em abril passado, um
jovem com o rosto encovado foi imortalizado andando pelas ruas
de Tulkarem. Ele segura um rifle durante um cortejo fúnebre. Nada de novo
para uma cidade acostumada com as procissões rituais que seguem a morte de
combatentes após os ataques israelenses. Porém, aquele não era um jovem comum,
era Abu Shujaa (“o pai da coragem”), líder das Brigadas de
Tulkarem desde 2022, grupo afiliado às Brigadas Al-Quds, a ala
militar do movimento palestino da Jihad Islâmica.
Abu Shujaa havia
sido declarado morto dois dias antes. O exército israelense havia anunciado sua
morte no final de uma operação no campo de Nur Sham: morto em uma casa
onde estava escondido com seus homens. Uma operação, a israelense, que envolveu
o serviço de segurança interna, Shabak, e a guarda de fronteira. Um
ataque que durou dias e causou morte e destruição no campo de Nur Sham.
Mas Abu
Shujaa não apenas sobreviveu, mas se mostrava nas ruas, entre as pessoas,
que já o consideravam um herói, porque não era a primeira vez que as forças
armadas israelenses tentavam eliminá-lo. Somente nos últimos meses, houve pelo
menos três ataques contra ele. Além de um da Autoridade Palestina, que
também o tinha em sua lista de procurados.
No final de julho, ele
se feriu em uma explosão enquanto fabricava uma bomba, sua família o levou para
o Hospital Governamental Thabet Thabet, em Tulkarem,
a Autoridade Nacional Palestina ficou sabendo e tentou invadir o
hospital, mas quando a notícia se espalhou pelo campo, os grupos armados
palestinos declararam nafir, uma palavra que indica a mobilização
popular. Enquanto as pessoas gritavam “traidores imundos”, os combatentes
das Brigadas Tulkarem bloquearam o acesso ao prédio e obrigaram os
homens da Autoridade Palestina a retirar-se, e depois dispararam
contra as forças de segurança na sede local da AP.
Há uma semana, a
maciça operação militar israelense que atingiu Jenin e
os dois campos de Tulkarem realmente o matou. Abu Shujaa, líder
das Brigadas Tulkarem, realmente morreu. Ele tinha 26 anos.
Mohammed Jaber, esse
era seu nome, nasceu em 1998 em Nur Sham, um dos dois campos de refugiados
de Tulkarem. Sua família, como quase todos os que vivem no campo, chegou
lá vinda de Haifa após a nakba, o deslocamento forçado que, em 1948, obrigou 700.000
palestinos a deixar suas terras para nunca mais voltar. Ele nasceu no campo,
cresceu no campo, estudou no campo antes de abandonar a escola porque as
condições econômicas de sua família eram insustentáveis e os cinco filhos
tinham que trabalhar. Aos 17 anos, ele já fazia parte dos grupos armados e,
alguns meses depois, já estava na prisão. No total, ele passou cinco de seus 26
anos nas prisões israelenses e alguns meses em prisões da Autoridade Nacional
Palestina.
Em 2022, foi
cofundador do Batalhão de Tulkarem com seu primeiro
comandante, Saif Abu Labdeh, que mais tarde foi morto. Pessoalmente
alinhado à Fatah,
deixou o partido após o início da ofensiva em Gaza em outubro de 2023 e se
juntou à Jihad Islâmica Palestina. Em sua última aparição, uma entrevista em
meados de agosto ao canal libanês Al Mayadeen, disse: 'Se o inimigo me
assassinar, continuaremos. A luta não termina com uma pessoa, haverá gerações
que se levantarão para defender os nossos direitos”. Ele sabia que seus dias
estavam contados, procurado há anos porque havia planejado ataques em toda
a Cisjordânia, contra soldados israelenses, postos de controle, e até um
tiroteio que matou um soldado israelense em Qalqilya em junho. Nos
últimos meses, o batalhão que ele comandava havia desenvolvido novas técnicas
de fabricação de explosivos e de criação de unidades no território de apoio
logístico. Ele era o primeiro na lista de procurados de Tulkarem pelos
israelenses e um herói para a maioria das pessoas no campo de Nur Sham.
Os campos após 7 de
outubro
Desde o início
da guerra em Gaza, Israel realizou 46 operações militares na área
de Nur Sham e Tulkarem. A primeira em 19 de outubro e a última -
a mais violenta - terminou há menos de uma semana. No total, 90 palestinos
foram mortos e 130 casas foram demolidas. Para o exército israelense, as
incursões em Tulkarem, assim como em Jenin, são necessárias para erradicar
os grupos armados. Para os grupos armados, a violência é a única forma de
resistência possível a uma ocupação que vem ocorrendo há décadas. Para os
civis, os 12.000 palestinos que vivem nos dois campos de Tulkarem, cada ataque
é uma punição coletiva. Foram destruídas as principais estradas, lojas, uma
creche, um centro de juventude, escolas, sedes oficiais de organizações locais
e três mesquitas foram parcialmente danificadas. As estradas de acesso e saída
estão fechadas e são intransitáveis.
Nas ruas, após cada
ataque, os moradores dos campos alternam raiva e desconforto. Alguns gritam
contra os veículos israelenses, as crianças mostram os novos pôsteres que
apareceram nos muros: há o rosto de Yahya Sinwar, o líder político do Hamas, e embaixo uma inscrição que
diz: “você é nosso líder e honrará a memória do mártir”. O mártir é Ismail Haniyeh, morto em Teerã, supostamente por uma bomba israelense. Os
rostos dos outros combatentes estão desenhados nos muros de todas as casas.
Alguns, mais
afastados, falam de uma desolação diferente. Como Abu Omar, que mora no
topo da colina em frente ao campo de Nur Sham, de onde vê tudo o que
acontece durante os ataques. Ele foi um combatente na época da segunda
intifada e passou quatro anos na prisão. Hoje ele diz: “Perdemos. A luta
armada está fadada ao fracasso”. Ele diz isso para si mesmo e para os jovens de
hoje.
Como era Abu
Shujaa. Ele costumava lhe dizer que plantar artefatos explosivos no meio da
estrada talvez explodisse um carro blindado israelense, mas, a longo prazo,
faria com que as pessoas se voltassem contra ele, porque não importa o quanto
os mártires sejam celebrados nos cortejos fúnebres, todos preferem um filho
vivo a um morto.
“E, eu lhe dizia, um
dos objetivos de Israel é nos dividir internamente. Fazer com que os
primeiros a se rebelarem contra os grupos armados sejam os habitantes do
campo”.
Em uma coisa, porém,
todos no campo concordam: os grupos armados crescem quando todas as outras
soluções fracassam. “A Autoridade Palestina fracassou há muito
tempo”, diz Abu Omar, ”e é também por isso que os garotos sempre escolhem
as armas primeiro. Aqueles que lutam hoje cresceram nos últimos 15, 16, 17
anos. Vejo esses garotos pegando fuzis, movendo dispositivos explosivos, e isso
me deixa desesperado”. Suas palavras refletem um sentimento comum, não apenas
nos campos, mas em toda a Cisjordânia. Ninguém mais confia nas soluções
políticas, ninguém mais confia na Autoridade Palestina, que é vista por todos
como uma entidade de colaboracionistas.
“O nível de apoio à
luta armada na Cisjordânia antes de 7 de outubro era de cerca de 54%.
Hoje, ele é de quase 70%. Portanto, vimos um aumento de cerca de 14 a 15 pontos
percentuais, enquanto 62% apoiam a dissolução da Autoridade Palestina”,
escreve Khalil Shikaki, cientista político do Palestinian Center
for Policy & Survey Research. ”A percepção é de que hoje não existe
opção política ou diplomática disponível para os palestinos. Se os palestinos
estão insatisfeitos com o status quo, a única maneira de mudá-lo é a violência,
a luta armada, a formação de grupos armados.
Esse é um raciocínio
fundamental que a grande maioria dos palestinos de hoje apoia plenamente”. A
cada incursão do exército, cresce o ressentimento entre a população local,
especialmente entre os jovens. E os grupos armados, em vez de se enfraquecerem,
se fortalecem em número e raiva.
O Armed
Conflict Location and Event Data Project, um projeto de coleta, análise e
mapeamento de dados desagregados sobre conflitos, também estuda os grupos
armados e os batalhões que surgiram ou se reuniram nos últimos anos. A
organização mapeou os grupos armados ativos na Cisjordânia ocupada,
verificando que o número dessas brigadas aumentou exponencialmente entre
outubro de 2022 e setembro de 2023, e muito mais depois de outubro de 2023,
período que corresponde à intensificação da presença das tropas israelenses na
região e aos ataques quase diários posteriores. Em seu estudo,
o Acled observou que “muitos membros desses grupos locais são jovens,
muitas vezes sem qualquer treinamento prévio no uso de armas, nem com um background político
ou uma estratégia além da resistência armada, operando por iniciativa própria
sem uma hierarquia de comando”.
Uma forma articulada
de dizer o que Abu Omar, de sua colina em frente a Nur Sham, diz de
forma mais simples: “Tento dizer aos mais jovens que acreditem que podem ser
úteis à causa palestina e que não pensar em quem os substituirá quando morrerem.
Mas muitos deles já perderam a esperança. Eles só pegam em armas para dizer
'estamos vivos, nós também temos o direito de existir'”.
Fonte: Entrevista com
Stefano Sozza, para Anna Maria Brogi, no Avvenire - tradução de Luisa Rabolini,
em IHU
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