Como uma cadeirada definiu o primeiro turno
em SP
Para quem chega sem
aviso às eleições municipais de 2024 da combalida política brasileira, é
possível se assustar com o paradoxo da cadeira: um dos momentos mais
consequentes para a política da maior cidade do sul no mapa global é, também,
um dos momentos mais inconsequentes na política brasileira – pelo menos neste
estranho ano.
Para quem esteve em
coma pelos últimos meses e acordou apenas agora, uma resumo rápido da situação:
Pablo Marçal, candidato mambembe pelo partido mambembe PRTB provocou da maneira
mais baixa possível José Luís Datena (PSDB), um dos nomes mais vis do jornalismo
nacional, talvez o maior responsável individual pela existência da Bancada da
Bala no Congresso Nacional, entre outras bizarrices que a turma da
(in)segurança pública teima em nos empurrar goela a baixo a título de
“política”. Mas bem, tergiverso.
Há uma semana, na
noite de 15 de setembro de 2024, acontecia um dos 11 debates do primeiro turno
das eleições para a prefeitura paulistana. Pelas regras, Pablo Marçal nem
precisaria ser chamado: apesar de um desempenho pífio nas pesquisas, seu
partido é menor ainda, sem nenhum representante na Câmara dos Deputados. Mas
alguém, vai saber quem, achou que seria “relevante” chamá-lo para o primeiro
confronto, no já longínquo 8 de agosto, logo no início formal da campanha. Se
aproveitando da falta de preparo dos jornalistas e também dos outros
concorrentes, Marçal engoliu os outros candidatos com farinha, se utilizando de
todos os truques de vendedor da Herbalife possível, para conquistar o eleitor
incauto, que parecia ver a oportunidade única de comprar um bilhete premiado do
coach.
O desempenho de Marçal
acendeu um alerta em todas as outras campanhas: o que fazer para combater a
postura mais lisa que bagre ensaboado do ex-futuro prefeito da metrópole? Como
tirar o eleitor do confortável torpor que parecia estar se entregando aos poucos,
com a euforia da tia que começa a ganhar centenas de reais na roleta virtual do
tigrinho da vez?
“Se valendo de uma
estratégia de distribuição de ‘cortes’ impulsionados no Instagram, onde cada
mensagem parecia buscar diretamente seu interlocutor ideal, Marçal parecia que
estava destinado a ganhar.”
À esquerda, não
faltavam críticas à postura paz-e-amor de Guilherme Boulos (PSOL), que cuidava
muito para não ser tachado como o “bandido invasor” que a direita tenta
pintá-lo. Ricardo Nunes (MDB), o cada vez mais reconhecido prefeito, outrora
invisível, tentou meter uma dobradinha com Datena (e todos os outros) para
levantar a longa capivara que Marçal ostenta. Tábata Amaral (PSB) foi longe,
meteu um jaco de couro e saiu de cosplay de Jessica Jones em um par de
propagandas questionando as relações escusas (mas que soam bem bravateiras, ao
fim) entre Marçal e o onipresente Primeiro Comando da Capital (PCC).
Apesar disso, ou
talvez exatamente por isso, a subida de Marçal nas pesquisas não parecia
arrefecer. Se valendo de uma estratégia de distribuição de “cortes” (trechos de
falas) impulsionados no Instagram, onde cada mensagem parecia buscar
diretamente seu interlocutor ideal, Marçal parecia que estava destinado a
ganhar, como dizia sobre si mesmo, contra Bolsonaro, contra Lula e contra todo
o “Consórcio Comunista do Brasil”. Como tem sido praxe no estágio superior do
neoliberalismo brasileiro, o estágio de pirâmide, mesmo quem enxergava a
“verdade por trás” da fábrica de vento do coach parecia paralisado: para uma
parte relevante do público, ele estava “falando a verdade” e “mostrando como o
sistema funciona por dentro”.
O problema é que ele
pisou em muitos calos e fez muitos inimigos muito rapidamente. Pilantras de
última hora, gente da estirpe de um semi-imputável como o neofascista de
plantão da Câmara dos Vereadores Rubinho Nunes (União Brasil), correu para
abraçar o coach, mas o resto da sociedade, da esquerda à extrema-direita
(Carluxo que o diga) estavam esperando o momento certo para pular em cima do
crápula da vez.
E Marçal deu a todos
os seus inimigos a chance.
Ao ignorar o velho
adágio de Abraham Lincoln de que se pode enganar todos por algum tempo, ou
algumas pessoas o tempo todo, mas que não se pode enganar todos o tempo todo,
Marçal quis levar seu jogo às últimas consequências, e pagou caro por isso.
Sua estratégia de se
colocar como o candidato “anti-sistema” incluía a já manjada tática de tentar
destruir reputações, bem conhecida desde que, no século passado, Fernando
Collor (do então PRN) foi atrás de uma filha do adversário Lula (PT) fora do
casamento. Mas, diferente dos usos mais especializados desse tipo de truque,
atacava em todas as frentes: começou tentando culpar Tábata Amaral pelo suicido
do próprio pai, quis meter uma fake news de que Guilherme Boulos teria nariz de
aspirador, falava que ia “prender” Ricardo Nunes devido aos seus desmandos na
prefeitura e fazia de gato e sapato à moderação de qualquer debate do qual
participasse.
“Lógico que o povo
quer circo, mas às vezes é preciso entender quem vai ser o palhaço da vez.
Datena só fez o devido ponto de mostrar de quem deveríamos rir.”
Quando Datena chegou
perto de lhe agredir no meio do debate da Gazeta, em 1º de setembro, achou que
tinha um trunfo nas mãos. No fatídico “debate da cadeirada” no dia 15 do mesmo
mês, chegou pronto para causar mais: ressuscitando um processo já arquivado
onde Datena havia sido acusado de assédio sexual de uma ex-funcionária – e não
hesitou em voltar a citar a única música que conhece dos Racionais MCs (“Diário
de um Detento”) e usou a gíria “jack” (estuprador, no vernáculo de rua
paulistano) para se referir ao apresentador.
A provocação se
encerrava com um “você não é homem para me bater” direcionado a Datena. Sem
cerimônia, mas com convicção, Datena resolveu a fita com as próprias mãos:
aproximou-se rapidamente, pegou a banqueta no qual a candidata do Partido Novo,
Marina Helena, usava para descansar e deu-lhe uma cadeirada (e depois jogou o
objeto contra o coach e até tentou pegar uma nova cadeira para atingi-lo, mas
foi impedido por Nunes).
A reação, pelo menos
para nós do podcast Crise Crise Crise, que estávamos cobrindo o debate ao vivo
na Twitch, foi entre o assombro e a galhofa. Afinal, o que parecia ali (e
depois foi sendo cristalizado nas pesquisas de opinião e qualitativas) é que o
turrão apresentador lavava a alma do paulistano (e também do brasileiro), que
não aguentava mais a figura do Marçal no debate político. Lógico que o povo
quer circo, mas às vezes é preciso entender quem vai ser o palhaço da vez.
Datena só fez o devido ponto de mostrar de quem deveríamos rir.
“A fórmula da parecer
um candidato ‘perigoso’ e que temia pela própria vida é algo bastante difundido
na extrema direita.”
• Velho truque da extrema direita saiu
pela culatra
Para realmente mostrar
que estava equivocado e que, quando a vida lhe desse um limão, Marçal faria a
questão de espirrar seu sumo nos olhos, o coach tentou criar uma narrativa mais
falsa que nota de 3 reais ao se filmar dentro de uma ambulância, usando uma
pseudo-máscara de oxigênio, sendo carregado para o Hospital Sírio-Libanês
(consideravelmente mais longe que outros hospitais de ponta na região) e se
retirando do debate. Expulso, Datena saiu pela porta da frente do teatro onde o
evento acontecia e vaticinou: não se arrependia da cadeirada. Estava certo,
quem deveria se arrepender era Marçal.
A fórmula da parecer
um candidato “perigoso” e que temia pela própria vida é algo bastante difundido
na extrema direita. Trump havia tentado recentemente usar a seu favor um
atentado contra a própria vida que lhe teria tirado a ponta de uma orelha
(evento eclipsado pela saída de Biden da corrida eleitoral), o governador de
São Paulo Tarcísio de Freitas (Republicanos) havia sido “vítima” de um
“atentado a tiros” em Paraisópolis em 2022, e, bem, nada garantiu mais a
vitória de Bolsonaro em 2018 do que a tal “facada”.
Mas tudo tem sua
maneira de ser usado. A facada é o melhor exemplo: Bolsonaro utilizou com
maestria o atentado. Fugiu de todos os debates (ele já havia sido humilhado por
Marina e por este que vos fala no debate que havia participado, na Rede TV, uma
semana antes da tal “facada”), soltava boletins médicos às vésperas do começo
de pesquisas, teve orações anotadas por todas as igrejas evangélicas durante o
período – assim, sua sobrevivência, assim como a sua eleição, foram operadas
como um “milagre”, enquanto se escondia completamente de qualquer escrutínio e
figurava como uma tela em branco onde qualquer eleitor em busca de “mudança”
poderia projetar os seus anseios.
“A cadeirada acabou
virando o fator política mais relevante nessa corrida (até agora), ressuscitou
as ganas de uma certa violência simbólica na esquerda e cravou antecipadamente
como o segundo turno será disputado.”
Marçal nunca entendeu,
parece, direito a força e os processos por trás desse tipo de violência
política. Bolsonaro foi “esfaqueado” em silêncio. Não olhou para Adélio e
disse, “venha, você não é homem de me esfaquear”. Em tese a lâmina entrou fundo
e ele ficou dias de UTI e etc. A cadeirada se deu ao vivo, Marçal ficou em pé,
depois descobriu-se que cogitou ir de carro para o hospital. Perdeu ali a sua
melhor chance: se tivesse ficado no palco, fodido que fosse, reforçaria a
imagem do coach poderoso que sabe bater em tubarão e amansar um tigre se
quiser. Ao escolher correr para ao hospital, produzindo loucamente conteúdo
para suas redes como se fosse uma novelinha de TikTok, perdeu a mística e
entregou a paçoca: sim, é tudo mentira do jogo político – e você é o mais
mentiroso de todos, Marçal.
Por um mês e meio, o
coach paralisou as eleições na cidade de São Paulo, rasgou as teorias de
cientista político, acabou com amizades na esquerda que a todo momento saíam
com fórmulas “infalíveis” para frear o crescimento do pilantra.
No fim, a cadeirada
acabou virando o fator política mais relevante nessa corrida (até agora),
ressuscitou as ganas de tomar nas mãos da esquerda uma certa violência
simbólica e definitivamente cravou antecipadamente que o segundo turno será
disputado (pelo menos por enquanto, mas a chance de mudar parece completamente
mínima) por Guilherme Boulos e Ricardo Nunes. Datena, que agora já parece ter
ligado o foda-se de vez para participar dos debates vestindo conjuntinhos que
parecem vindos diretamente do The Sopranos, parece feliz ao andar nas ruas,
enquanto Marçal soa cada dia mais acuado, perseguido (especialmente pela
polícia) e figurando como o exemplo mais bem acabado de que não existe tática
infalível para pilantras na política.
Fonte: Por Amauri
Gonzo, para Jacobin Brasil
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