quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Como uma cadeirada definiu o primeiro turno em SP

Para quem chega sem aviso às eleições municipais de 2024 da combalida política brasileira, é possível se assustar com o paradoxo da cadeira: um dos momentos mais consequentes para a política da maior cidade do sul no mapa global é, também, um dos momentos mais inconsequentes na política brasileira – pelo menos neste estranho ano.

Para quem esteve em coma pelos últimos meses e acordou apenas agora, uma resumo rápido da situação: Pablo Marçal, candidato mambembe pelo partido mambembe PRTB provocou da maneira mais baixa possível José Luís Datena (PSDB), um dos nomes mais vis do jornalismo nacional, talvez o maior responsável individual pela existência da Bancada da Bala no Congresso Nacional, entre outras bizarrices que a turma da (in)segurança pública teima em nos empurrar goela a baixo a título de “política”. Mas bem, tergiverso.

Há uma semana, na noite de 15 de setembro de 2024, acontecia um dos 11 debates do primeiro turno das eleições para a prefeitura paulistana. Pelas regras, Pablo Marçal nem precisaria ser chamado: apesar de um desempenho pífio nas pesquisas, seu partido é menor ainda, sem nenhum representante na Câmara dos Deputados. Mas alguém, vai saber quem, achou que seria “relevante” chamá-lo para o primeiro confronto, no já longínquo 8 de agosto, logo no início formal da campanha. Se aproveitando da falta de preparo dos jornalistas e também dos outros concorrentes, Marçal engoliu os outros candidatos com farinha, se utilizando de todos os truques de vendedor da Herbalife possível, para conquistar o eleitor incauto, que parecia ver a oportunidade única de comprar um bilhete premiado do coach.

O desempenho de Marçal acendeu um alerta em todas as outras campanhas: o que fazer para combater a postura mais lisa que bagre ensaboado do ex-futuro prefeito da metrópole? Como tirar o eleitor do confortável torpor que parecia estar se entregando aos poucos, com a euforia da tia que começa a ganhar centenas de reais na roleta virtual do tigrinho da vez?

“Se valendo de uma estratégia de distribuição de ‘cortes’ impulsionados no Instagram, onde cada mensagem parecia buscar diretamente seu interlocutor ideal, Marçal parecia que estava destinado a ganhar.”

À esquerda, não faltavam críticas à postura paz-e-amor de Guilherme Boulos (PSOL), que cuidava muito para não ser tachado como o “bandido invasor” que a direita tenta pintá-lo. Ricardo Nunes (MDB), o cada vez mais reconhecido prefeito, outrora invisível, tentou meter uma dobradinha com Datena (e todos os outros) para levantar a longa capivara que Marçal ostenta. Tábata Amaral (PSB) foi longe, meteu um jaco de couro e saiu de cosplay de Jessica Jones em um par de propagandas questionando as relações escusas (mas que soam bem bravateiras, ao fim) entre Marçal e o onipresente Primeiro Comando da Capital (PCC).

Apesar disso, ou talvez exatamente por isso, a subida de Marçal nas pesquisas não parecia arrefecer. Se valendo de uma estratégia de distribuição de “cortes” (trechos de falas) impulsionados no Instagram, onde cada mensagem parecia buscar diretamente seu interlocutor ideal, Marçal parecia que estava destinado a ganhar, como dizia sobre si mesmo, contra Bolsonaro, contra Lula e contra todo o “Consórcio Comunista do Brasil”. Como tem sido praxe no estágio superior do neoliberalismo brasileiro, o estágio de pirâmide, mesmo quem enxergava a “verdade por trás” da fábrica de vento do coach parecia paralisado: para uma parte relevante do público, ele estava “falando a verdade” e “mostrando como o sistema funciona por dentro”.

O problema é que ele pisou em muitos calos e fez muitos inimigos muito rapidamente. Pilantras de última hora, gente da estirpe de um semi-imputável como o neofascista de plantão da Câmara dos Vereadores Rubinho Nunes (União Brasil), correu para abraçar o coach, mas o resto da sociedade, da esquerda à extrema-direita (Carluxo que o diga) estavam esperando o momento certo para pular em cima do crápula da vez.

E Marçal deu a todos os seus inimigos a chance.

Ao ignorar o velho adágio de Abraham Lincoln de que se pode enganar todos por algum tempo, ou algumas pessoas o tempo todo, mas que não se pode enganar todos o tempo todo, Marçal quis levar seu jogo às últimas consequências, e pagou caro por isso.

Sua estratégia de se colocar como o candidato “anti-sistema” incluía a já manjada tática de tentar destruir reputações, bem conhecida desde que, no século passado, Fernando Collor (do então PRN) foi atrás de uma filha do adversário Lula (PT) fora do casamento. Mas, diferente dos usos mais especializados desse tipo de truque, atacava em todas as frentes: começou tentando culpar Tábata Amaral pelo suicido do próprio pai, quis meter uma fake news de que Guilherme Boulos teria nariz de aspirador, falava que ia “prender” Ricardo Nunes devido aos seus desmandos na prefeitura e fazia de gato e sapato à moderação de qualquer debate do qual participasse.

“Lógico que o povo quer circo, mas às vezes é preciso entender quem vai ser o palhaço da vez. Datena só fez o devido ponto de mostrar de quem deveríamos rir.”

Quando Datena chegou perto de lhe agredir no meio do debate da Gazeta, em 1º de setembro, achou que tinha um trunfo nas mãos. No fatídico “debate da cadeirada” no dia 15 do mesmo mês, chegou pronto para causar mais: ressuscitando um processo já arquivado onde Datena havia sido acusado de assédio sexual de uma ex-funcionária – e não hesitou em voltar a citar a única música que conhece dos Racionais MCs (“Diário de um Detento”) e usou a gíria “jack” (estuprador, no vernáculo de rua paulistano) para se referir ao apresentador.

A provocação se encerrava com um “você não é homem para me bater” direcionado a Datena. Sem cerimônia, mas com convicção, Datena resolveu a fita com as próprias mãos: aproximou-se rapidamente, pegou a banqueta no qual a candidata do Partido Novo, Marina Helena, usava para descansar e deu-lhe uma cadeirada (e depois jogou o objeto contra o coach e até tentou pegar uma nova cadeira para atingi-lo, mas foi impedido por Nunes).

A reação, pelo menos para nós do podcast Crise Crise Crise, que estávamos cobrindo o debate ao vivo na Twitch, foi entre o assombro e a galhofa. Afinal, o que parecia ali (e depois foi sendo cristalizado nas pesquisas de opinião e qualitativas) é que o turrão apresentador lavava a alma do paulistano (e também do brasileiro), que não aguentava mais a figura do Marçal no debate político. Lógico que o povo quer circo, mas às vezes é preciso entender quem vai ser o palhaço da vez. Datena só fez o devido ponto de mostrar de quem deveríamos rir.

“A fórmula da parecer um candidato ‘perigoso’ e que temia pela própria vida é algo bastante difundido na extrema direita.”

•        Velho truque da extrema direita saiu pela culatra

Para realmente mostrar que estava equivocado e que, quando a vida lhe desse um limão, Marçal faria a questão de espirrar seu sumo nos olhos, o coach tentou criar uma narrativa mais falsa que nota de 3 reais ao se filmar dentro de uma ambulância, usando uma pseudo-máscara de oxigênio, sendo carregado para o Hospital Sírio-Libanês (consideravelmente mais longe que outros hospitais de ponta na região) e se retirando do debate. Expulso, Datena saiu pela porta da frente do teatro onde o evento acontecia e vaticinou: não se arrependia da cadeirada. Estava certo, quem deveria se arrepender era Marçal.

A fórmula da parecer um candidato “perigoso” e que temia pela própria vida é algo bastante difundido na extrema direita. Trump havia tentado recentemente usar a seu favor um atentado contra a própria vida que lhe teria tirado a ponta de uma orelha (evento eclipsado pela saída de Biden da corrida eleitoral), o governador de São Paulo Tarcísio de Freitas (Republicanos) havia sido “vítima” de um “atentado a tiros” em Paraisópolis em 2022, e, bem, nada garantiu mais a vitória de Bolsonaro em 2018 do que a tal “facada”.

Mas tudo tem sua maneira de ser usado. A facada é o melhor exemplo: Bolsonaro utilizou com maestria o atentado. Fugiu de todos os debates (ele já havia sido humilhado por Marina e por este que vos fala no debate que havia participado, na Rede TV, uma semana antes da tal “facada”), soltava boletins médicos às vésperas do começo de pesquisas, teve orações anotadas por todas as igrejas evangélicas durante o período – assim, sua sobrevivência, assim como a sua eleição, foram operadas como um “milagre”, enquanto se escondia completamente de qualquer escrutínio e figurava como uma tela em branco onde qualquer eleitor em busca de “mudança” poderia projetar os seus anseios.

“A cadeirada acabou virando o fator política mais relevante nessa corrida (até agora), ressuscitou as ganas de uma certa violência simbólica na esquerda e cravou antecipadamente como o segundo turno será disputado.”

Marçal nunca entendeu, parece, direito a força e os processos por trás desse tipo de violência política. Bolsonaro foi “esfaqueado” em silêncio. Não olhou para Adélio e disse, “venha, você não é homem de me esfaquear”. Em tese a lâmina entrou fundo e ele ficou dias de UTI e etc. A cadeirada se deu ao vivo, Marçal ficou em pé, depois descobriu-se que cogitou ir de carro para o hospital. Perdeu ali a sua melhor chance: se tivesse ficado no palco, fodido que fosse, reforçaria a imagem do coach poderoso que sabe bater em tubarão e amansar um tigre se quiser. Ao escolher correr para ao hospital, produzindo loucamente conteúdo para suas redes como se fosse uma novelinha de TikTok, perdeu a mística e entregou a paçoca: sim, é tudo mentira do jogo político – e você é o mais mentiroso de todos, Marçal.

Por um mês e meio, o coach paralisou as eleições na cidade de São Paulo, rasgou as teorias de cientista político, acabou com amizades na esquerda que a todo momento saíam com fórmulas “infalíveis” para frear o crescimento do pilantra.

No fim, a cadeirada acabou virando o fator política mais relevante nessa corrida (até agora), ressuscitou as ganas de tomar nas mãos da esquerda uma certa violência simbólica e definitivamente cravou antecipadamente que o segundo turno será disputado (pelo menos por enquanto, mas a chance de mudar parece completamente mínima) por Guilherme Boulos e Ricardo Nunes. Datena, que agora já parece ter ligado o foda-se de vez para participar dos debates vestindo conjuntinhos que parecem vindos diretamente do The Sopranos, parece feliz ao andar nas ruas, enquanto Marçal soa cada dia mais acuado, perseguido (especialmente pela polícia) e figurando como o exemplo mais bem acabado de que não existe tática infalível para pilantras na política.

 

Fonte: Por Amauri Gonzo, para Jacobin Brasil

 

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