Sobre a “economia de dados”
O objetivo deste
artigo é apresentar alguns elementos-chave para a crítica à ideia de uma nova
“economia de dados”, que supostamente se diferenciaria do modo de regulação
dominado pela finança (Chesnais, 1996). No contexto atual, consequência das
políticas de enfrentamento da crise estrutural dos anos 1970, dois aspectos
gerais devem ser considerados.
Do ponto de vista da
economia real, a reestruturação capitalista, fundamentada no desenvolvimento de
forças produtivas cuja gênese remonta ao período da Segunda Guerra Mundial e do
pós-guerra (Noble, 1977), em particular com a chamada revolução microeletrônica,
resultou na constituição do paradigma digital e em uma extensa transformação
dos processos produtivos. Esse fenômeno ocorre sob o influxo de um amplo
movimento de subsunção do trabalho intelectual e de intelectualização geral de
todos os processos de trabalho, gerando impactos cruciais sobre o consumo e a
sociabilidade.
Em termos marxistas,
esse processo pode ser definido como Terceira Revolução Industrial (Bolaño,
2002). A convergência telemática, a internet, as plataformas digitais, a
chamada inteligência artificial, entre outras inúmeras inovações sociotécnicas
surgidas nas últimas cinco décadas, são desdobramentos desse mesmo processo
revolucionário.
O segundo aspecto a
ser considerado é o conhecido descolamento entre as órbitas real e financeira
do capital, resultando em uma massa de “capital ocioso” (Marx, 2017), que se
desloca livremente pelo mundo, promovendo uma maior centralização do capital e gerando
crises recorrentes (Belluzzo, 2009; Guillén, 2015; Sá Barreto, 2019). O avanço
do neoliberalismo está intimamente ligado ao desenvolvimento das tecnologias
informacionais, visto que “as plataformas não somente acompanham o processo
neoliberal de desregulamentação das normas institucionais de trabalho e
emprego, como também o aprofundam e lhe dão novas ferramentas” (Cingolani,
2022, p. 3).
Com base nessa
perspectiva teórico-histórica, duas questões devem ser consideradas na
discussão sobre a chamada economia de dados. Por um lado, trata-se de um
desenvolvimento ligado à Terceira Revolução Industrial, que amplia as
capacidades de coleta, estocagem e manipulação de enormes volumes de dados
pelos sistemas técnicos digitais. Neste ponto, por motivos de ordem
metodológica, interessa refletir apenas sobre os aspectos estritamente
econômicos do problema, mas não se pode esquecer o fato de que entre as
destinações dos dados extraídos das populações encontram-se em destaque os
sistemas de vigilância e de controle social por parte de agentes dotados de
poder econômico (Furtado, 1978). Na verdade, esse é o sentido último de todo o
processo de constituição da chamada Big Data: controle.
Por outro lado, a
construção de bancos de dados de grandes dimensões, onde se armazena a
matéria-bruta que poderá ser utilizada em diversos processos de trabalho, dá
origem a um mercado onde pacotes de dados são comprados e vendidos. À medida
que o interesse por dados estatísticos, demográficos e comportamentais aumenta
– com vistas a estratégias publicitárias, propaganda política e muito mais,
incluindo o famoso treinamento de inteligências artificiais –, a ideia de uma
economia de dados pode parecer cada vez mais adequada na perspectiva da
economia ortodoxa. No entanto, essa visão não se refere a uma economia baseada
na produção de uma mercadoria específica, mas no intercâmbio de meras
abstrações.
Agora, é claro que a
coleta e o uso de dados, facilitados pelas tecnologias da informação e
comunicação, podem servir a propósitos específicos e estar ligados a processos
produtivos concretos. Para citar um único exemplo, em uma planta industrial de
última geração, como uma montadora de automóveis, os trabalhadores,
utilizando laptops e dispositivos vestíveis como óculos de
visão ampliada e exoesqueletos, fornecem dados que auxiliam na coordenação do
trabalho e na vigilância, impactando significativamente a produtividade. No
entanto, isso não é o que a suposta economia dos dados leva em consideração.
Na verdade, os dados
não podem ser definidos como uma mercadoria – nem mesmo como matéria-prima, ao
contrário do que se naturalizou afirmar na literatura (Srnicek, 2018) –, mas
sim como matéria-bruta. A coleta de dados está se tornando cada vez mais viável
devido à “expansão de infraestruturas das plataformas na forma de
aplicativos, plugins, rastreadores e sensores ativos e passivos”
(Poell, Nieborg e van Dijck, 2020, p. 4). No entanto, o trabalho objetificado
nessas infraestruturas digitais tem como único propósito capturar os dados,
pode-se dizer, separá-los da sua conexão imediata com os indivíduos.
Segundo Karl Marx
(1968, p. 203), “todas as coisas que o trabalho apenas separa de sua conexão
imediata com seu meio natural constituem objetos de trabalho, fornecidos pela
natureza”. O mesmo pode ser dito dos dados que, assim, só serão considerados
matéria-prima depois de terem “sofrido uma modificação realizada pelo trabalho”
(ibidem) ou, dito de outro modo, depois de terem sido filtrados, organizados e
estruturados pelo trabalho vivo objetificado em infraestruturas diferentes
daquelas que realizam a simples captura (Zanghelini, 2024).
César Bolaño (2003)
enfatiza essa ideia em estudo sobre o projeto genoma, mencionando tanto os
bancos de dados quanto as bibliotecas de clones preservados para experimentos
futuros. Em ambos os casos, a transformação em matéria-prima, ou seja, a
valorização inicial, depende da recuperação dos dados nos bancos por meio da
ação teleológica que caracteriza o trabalho humano (Lukács, 2013). No caso do
trabalhador informacional, ainda que valendo-se de máquinas inteligentes, a
ação é orientada por um projeto em que eventualmente se articulam o ciclo
industrial e o ciclo da produção acadêmica certificada (Bolaño. 2003). Mas
neste caso é fundamental destacar que já não estamos lidando com dados simplesmente,
mas com informações que circulam dentro de processos coletivos
de trabalho físico e intelectual (Bolaño, 2000).
Não obstante, os
dados, na medida em que são extraídos e armazenados em grande escala por
empresas que controlam os repositórios, podem ser e são empacotados para servir
à valorização fictícia do capital, com a justificativa de sua utilidade
posterior em processos concretos, como aqueles vinculados ao setor
publicitário, principal fonte de financiamento das empresas proprietárias das
maiores e mais evidentes plataformas digitais. Esse comércio de dados
constitui, em essência, uma forma de capital fictício, cuja mobilização segue a
mesma lógica das inovações financeiras que têm marcado o desenvolvimento do
capitalismo no período neoliberal, intensificando as crises cíclicas do
capital, como a das subprime durante a crise de 2008
(Carcanholo e Medeiros, 2014).
Num plano mais geral,
levantamos a hipótese de que esse tipo de configuração da chamada economia de
dados – excluindo os casos que envolvem processos de trabalho produtivo, como o
referido acima no exemplo da montadora de automóveis, os quais requerem um
estudo mais detalhado e individualizado – não atua no sentido de
contra-arrestar a queda tendencial da taxa média de lucro. Isto ocorre porque,
sob a ótica da totalidade, essa configuração se restringe apenas à distribuição
do mais-valor produzido socialmente. Esse fenômeno é semelhante, do ponto de
vista predatório do capital, ao que ocorre com plataformas como a Uber (Bolaño
e Zanghelini, 2024), que, ao construir um banco de dados próprio e, por
conseguinte, uma arquitetura algorítmica, conseguem se apossar e controlar
externamente o processo de trabalho, realizando uma medição de caráter
parasitário entre os motoristas e os passageiros (Zanghelini, 2024).
Certamente, a
propriedade do banco de dados pode também servir a propósitos mais diretamente
mercantis. Dados os limites deste texto, vale mencionar brevemente apenas a
forma de espoliação que se refere à ruptura do monopólio do Estado nacional
sobre a produção, guarda e organização da informação oficial, em favor de
agentes externos, o que põe em risco a soberania nacional (d’Alva e Paraná,
2024).
Mas o caso das
estatísticas oficiais, embora emblemático e crucial, é apenas parte do problema
geral que estamos enfrentando neste momento, quando as redes e plataformas
digitais assumiram um papel central no modo de regulação do capitalismo,
aprofundando as tendências instaladas desde os inícios do período neoliberal,
na esteira da extensão da forma mercadoria em direção às áreas mais recônditas
das relações humanas.
Um bom exemplo é dado
por Sergio Amadeu da Silveira (2024), referindo-se à chamada computação em
nuvem, ao mostrar como o recente “apagão” do sistema operacional da Microsoft é
uma clara evidência do poder (e dos potenciais danos) exercido por essas companhias:
“A Amazon Web Server e a Microsoft Azure, em 2021, detinham 60% do mercado
mundial de nuvem que ofereciam a infraestrutura como serviço. O que isso quer
dizer? Que diversas empresas, instituições, governos substituíram suas próprias
infraestruturas de processamento e armazenamento de dados locais por contratos
para que a Amazon e a Microsoft “cuidassem” e “alugassem” espaço de
armazenamento de dados e serviços computacionais […] O apagão demonstrou o
poder gigantesco que possui um mediador das relações digitais e um operador de
tratamento de dados como a Microsoft. Sem dúvida, a falha não intencional gerou
o apagão. Mas, fica evidente que a Microsoft tem o poder de bloquear o acesso
de empresas e instituições a seus próprios dados localizados nos seus data
centers, bem distante da nossa jurisdição e de nossa capacidade de acesso
físico”.
Dessa forma,
deslocamo-nos para outro plano de análise, em que não se trata mais de saber se
a suposta economia de dados envolve a produção ou mera distribuição de valor e
riqueza socialmente produzidos, questão já mencionada acima, nem de apontar,
como também já fizemos, o seu caráter de valorização fictícia do capital. A
questão, agora, é a das políticas de desenvolvimento e de planejamento
econômico. O projeto de reindustrialização do Brasil apresentado pelo Governo
Federal (2024), por exemplo, traça um roteiro nesse sentido, adotando e
expandindo a lógica do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS).
Esse modelo é
entendido como uma estratégia de desenvolvimento voltada para o atendimento das
necessidades urgentes da população nacional (Gadelha, 2021, 2022), na linha da
perspectiva de Furtado de inversão da lógica da transmutação de meios em fins,
característica do capitalismo.
Já tivemos a
oportunidade de estender a perspectiva do projeto do CEIS (Bolaño e Zanghelini,
2022) – destacando a importância dos elementos relacionados às tecnologias da
informação e comunicação – para a regulação das plataformas digitais. Mas não
se trata apenas, em Furtado, de atender às necessidades imediatas, mas de
“ampliar o horizonte de possibilidades” (Furtado, 1978) ou, em outro registro,
de ultrapassar o “[…] plano da prática e [d]as medidas de administração dos
problemas da reprodução capitalista” (Medeiros e Bonente, 2021, p. 110).
Numa entrevista
recente, Morozov (2023) destaca que a estratégia das empresas sediadas no Vale
do Silício consiste em iniciar operações numa única área, mas logo se
diversificar para muitas outras. Como constata o autor, “temos visto esforços
das grandes empresas de tecnologia nos EUA para entrar na área da saúde,
educação e segurança nacional. Elas começaram como mecanismos de distribuição
de conteúdo, apenas organizando informações e vendendo publicidade. Agora,
tornaram-se uma porta de entrada para quase tudo” (ibidem).
Para utilizar a
metáfora da árvore de van Djick (2022), numa perspectiva de ecossistema
digital, isso significa que as chamadas Big Techs, que formam o
“tronco”, estão se espalhando pelos mais diversos “galhos”, ou seja, pelos mais
diferentes setores econômicos, sejam públicos ou privados. Para contrariar essa
estratégia, Morozov (2023) sugere que existem duas vias de ação. A primeira, menos
eficaz, passa pelo Estado “impor restrições aos dados que podem ser usados
para, por exemplo, inteligência artificial generativa”. A segunda envolve o
Estado “criar infraestrutura pública robusta que possa abarcar o maior número
possível de camadas desses sistemas digitais” (ibidem).
No exemplo do CEIS,
cujo objetivo é garantir a sustentabilidade do Sistema Único de Saúde, o
domínio dos dados se apresenta como um elemento central para a referida
estratégia de desenvolvimento nacional. Isso contrasta fortemente com o projeto
neoliberal de mercantilização da saúde, que, entre outras coisas, procura obter
informações públicas por meio da implementação de um sistema aberto
chamado Open Health, que serviria como um “repositório de dados
assistenciais e de saúde de todos os brasileiros, coletados a partir de um
prontuário eletrônico; e um ‘cadastro positivo da saúde’, com dados financeiros
sobre os beneficiários de planos” (Fraga e Rocha, 2022).
Assim como se lutou,
na virada do século, contra o patenteamento dos genes, hoje é preciso lutar
contra a exploração privada dos nossos dados. A própria gestão deles por parte
do Estado só é aceitável na medida em que os cidadãos confiem nos órgãos técnicos
oficiais responsáveis, que garantam o sigilo estatístico e o acesso
“desnomeado” aos dados – uma “regra básica para poder trabalhar as informações
do ponto de vista estatístico” (Pochman, 2024), visando a melhoria da gestão
pública, a serviço da cidadania e do bem viver.
Fonte: Por César Bolaño e Fabrício
Zanghelini, em Outras Palavras
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