sexta-feira, 2 de agosto de 2024

Os limites para tornar a educação pública brasileira "poliglota"

O debate sobre a permanência da obrigatoriedade do espanhol no currículo do Novo Ensino Médio, que mobilizou embaixadas estrangeiras no país e fomentou uma disputa de narrativas no Congresso Nacional, levanta também uma discussão sobre a capacidade do Brasil em diversificar a oferta de línguas estrangeiras na educação básica.

Especialistas entrevistados pela DW afirmam que o debate precisa caminhar em paralelo à oferta de cursos de graduação para formação de professores de língua estrangeira, à qualidade do ensino e também à demanda de carga horária dos alunos.

Um levantamento realizado pela DW, a partir da base de dados do Ministério da Educação (MEC) sobre cursos de graduação existentes no Brasil, mostra que o país tem 2,2 mil cursos de Letras, dos quais 126 são ofertados por instituições públicas de âmbito federal, estadual ou municipal. A maioria deles é dedicada ao ensino de português, inglês e espanhol.

Juntos, os cursos de Letras somam 23 mil vagas públicas, a maioria delas no sudeste, também a região mais populosa.

São sete cursos no Centro-Oeste, sendo quatro de inglês e um em espanhol – os demais são português. No nordeste são 42 cursos, sendo que entre os de língua estrangeira são dois em francês, oito em espanhol e 10 em inglês. No Norte, são 11 cursos de Letras, sendo dois contemplando a língua inglesa, um o espanhol e um a Língua Brasileira de Sinais (Libras) – o restante oferta português.

No Sudeste, são 32 cursos e a maior diversidade em termos de línguas estrangeiras. Cinco graduações ofertam a língua inglesa, duas oferecem formação em espanhol, duas em italiano e duas em francês. Há, ainda, um curso que oferta hebraico e outro, japonês. No Sul, são 34 formações, 12 dedicadas ao inglês, sete em língua espanhola, uma em Libras e uma em francês.

•        Projeto de país

Tradicionalmente, o Brasil não é um país que incentiva o ensino de línguas em seus currículos de educação pública. Hoje em dia, a média de aulas é de apenas uma hora por semana. A grande maioria das pessoas que dominam um segundo idioma buscam esse aprendizado em cursos privados, que costumam ser bastante caros para a população em geral.

Para o professor do programa de pós-graduação em Letras da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) Rafael Vetromille-Castro, a escolha da obrigatoriedade de uma língua deve considerar o projeto do país.

"As pessoas que saem do ensino médio, indo ou não para a universidade, dominando uma língua estrangeira em nível intermediário estarão em outro ponto de interação comercial e econômica com outros países. A discussão da obrigatoriedade deveria considerar isso", afirma.

Segundo a senadora Dorinha Seabra (União-TO), relatora do projeto do Novo Ensino Médio no Senado, que mantinha a obrigatoriedade do espanhol no currículo, a alegação do relator do projeto na Câmara, deputado Mendonça Filho (União-PE), de que não há professores suficientes de espanhol no Brasil não faz sentido.

"Não vai ter nunca se não tiver uma política direcionada à qualificação, formação e necessidade. É uma relação de mercado", afirma.

De acordo com dados levantados pelas associações de professores de espanhol de 21 estados, divulgados em nota pública, entre 2005 e 2017 o Brasil abriu cerca de 88 cursos de graduação em letras que contemplavam a formação português-espanhol.

Grande parte deles foi aberta tendo em vista que o espanhol tornou-se obrigatório no ensino médio brasileiro em 2005, por meio da Lei 11.161. No entanto, a legislação foi revogada com a reforma do ensino médio de 2017, no governo do ex-presidente Michel Temer.  Atualmente, no Brasil, como língua estrangeira, apenas o inglês é obrigatório a partir do sexto ano do ensino fundamental. 

•        Os desafios para expandir a formação de professores em língua estrangeira

Muitas aulas de língua estrangeira ainda são dadas por professores sem formação na área, pontua Rafael Vetromille-Castro, da UFPel. De acordo com o Censo Escolar 2023, 13,4% dos professores que ensinam língua estrangeira nos anos iniciais da educação básica no Brasil não têm formação superior, enquanto 47,6% têm uma licenciatura em uma área diferente da que atua.

Nos anos finais do ensino fundamental, 43% dos professores de língua estrangeira têm uma licenciatura numa área diferente da que leciona. Já no ensino médio, o percentual é de 44,7%. Por outro lado, é nessa etapa da educação que há o menor percentual de professores sem ensino superior ensinando outros idiomas, quando comparadas todas as etapas da educação básica. "Isso vem diminuindo, mas ainda é uma realidade", diz Vetromille-Castro.

Questões de políticas públicas, desvalorização da docência, falta de infraestrutura nas escolas e nas universidades são elencadas como fatores que tornam a formação de novos professores em línguas estrangeiras e a expansão desse ensino complexa no país.

"Tornar a docência mais atrativa é um dos aspectos mais urgentes, pois isso implica potencializar tanto as práticas de ensino quanto as instituições educacionais", afirma o professor do Centro de Comunicação, Letras e Artes (CCLA) da Universidade Federal de Roraima (UFRR) Alan Ricardo Costa.

"Cada vez temos menos pessoas interessadas em entrar numa licenciatura em língua estrangeira e, em consequência, menos mão de obra especializada", complementa Vetromille-Castro.

Ele destaca que não há falta de professores, pelo menos para espanhol e inglês, mas que os egressos dos cursos de licenciatura em Letras acabam indo para escolas de idiomas, pois encontram nesses espaços uma remuneração maior do que a das escolas públicas e particulares.

"Isso evidencia que a formação é de qualidade, mas que esses egressos estão indo para onde a população como um todo não tem acesso".

Para Costa, o Brasil não é um país monolíngue e isso deve ser considerado na oferta dos cursos de formação dos professores e de aulas ao aluno.

"Precisamos reconhecer que muitas línguas 'são daqui'. Temos variados contextos, de migração, de fronteira, de povos originários, de comunidades quilombolas, de surdos…", elenca.

Vetromille-Castro explica que, se o Brasil quiser que os alunos acabem a educação básica com as quatro competências de uma língua – falar, ouvir, ler e escrever – precisa rever a quantidade de horas aula nos currículos.

"A gente faz uma comparação com cursos livres, que são pagos de modo particular, e o que se tem de padrão são duas aulas por semana de uma hora e 15 minutos", lembra Vetromille-Castro.

Nos cursos privados, a média de tempo para tornar-se intermediário a avançado numa língua é de três a quatro anos.

•        Embaixadas têm projetos de estímulo de idiomas

Várias embaixadas no Brasil fomentam a língua estrangeira na educação pública. No ano passado, por exemplo, a adida de cooperação educativa da embaixada da França no Brasil, Hélène Ducret, visitou o Amapá para entregar um prêmio a uma escola que oferece ensino bilíngue francês-português e "alinhar tratativas pedagógicas para ampliar projetos educacionais que intensifiquem o estudo bilíngue no estado".

Também houve uma visita à Secretaria de Educação de Cuiabá, no Mato Grosso, para a discussão de parcerias. Em 2023, a embaixada da França também discutiu parcerias na educação com o governo do Paraná e estabeleceu acordo de cooperação técnica com o governo do Ceará.

Esse movimento é comum a outras representações diplomáticas no Brasil. No Rio de Janeiro, a Secretaria Estadual de Educação afirmou que mantém em 27 escolas de tempo integral o ensino do idioma de pelo menos 16 países, em parceria com embaixadas, consulados ou instituições vinculadas a diferentes territórios. Existem, por exemplo, duas escolas onde há o ensino de alemão, em parceria com o Goethe-Institut.

Em São Paulo, o Goethe-Institut também tem projetos com as secretarias estadual e municipal. Além disso, o Estado de São Paulo tem parcerias com a Fundação Japão, o consulado da França e o consulado da Itália.

"A qualidade do ensino nem sempre está atrelada ao conhecimento do docente, mas como você trata o aluno, estabelece uma relação com o idioma e, consequentemente, com a cultura", afirma Renato Ferreira da Silva, gerente da Cooperação Pedagógica do Goethe-Institut São Paulo.

Segundo ele, para que essas parcerias se efetivem, é preciso ter professores motivados. "O fato de ter turmas com pessoas que optaram pela matéria, estão ali porque têm interesse em aprender, isso também motiva o professor", defende.

Ele ressalta, porém, que essa parcerias não darão frutos se não houver formação local dos professores. "Há uma procura tanto de instituições públicas quanto de privadas para oferecer alemão, mesmo em cidades menores. Mas não há professores suficientes no mercado", afirma.

Em Roraima, por exemplo, o governo mantém, desde 2019, um acordo de cooperação com a embaixada da Espanha para o fomento da língua espanhola, por meio do qual são realizados cursos de atualização de professores e o ensino do idioma para os alunos. Já em Sergipe, a secretaria estadual tem acordo de formação de professores em língua inglesa com a Embaixada e os Consulados dos Estados Unidos.

Goiás, por sua vez, tem parcerias com as embaixadas dos Estados Unidos e da França, que, a partir de 2026, ofertará formação especializada em metodologia e coordenação de escola bilíngue francesa para os professores.

 

•        Não é bonito alguém na universidade ter medo de ler. Por Vinícius De Andrade

"Transforma em um tuite ou não irei responder”

Foi isso que ouvi do presidente de uma organização da qual participei enquanto embaixador há alguns anos. Na época, precisei falar com ele sobre uma demanda séria e que simplesmente não poderia ser transformada em um texto com até 280 caracteres. Esta coluna mesmo, neste trecho, já possui mais caracteres.

Atualmente lidero o maior programa social de educação do Brasil. Tenho contato direto com milhares de jovens da rede pública de mais de 1.557 cidades do país e com estudantes e graduados de todas as universidades públicas do país.

Minha maior dor no trabalho hoje em dia é o fato de que, salvo exceções, as pessoas não estão lendo mais. Não me refiro a ler Machado de Assis ou obras literárias, mas sim a recados e instruções simples e diretas.

Anos atrás, isso era muito comum entre os jovens secundaristas com quem tenho contato. Eu entendia todo o contexto e a questão da idade, mas no pós-pandemia, houve um crescimento assustadoramente notável. E isso se tornou comum também entre nosso time voluntário e com membros das melhores instituições de ensino superior do país.

Já havia escrito uma coluna sobre este tema, já citei a problemática em outras oportunidades e agora estou aqui novamente, pois nada muda minha ideia de que o problema é grave.

<><> Estamos banalizando e romantizando a problemática

Sei que hoje em dia as pessoas precisam lidar com inúmeras demandas diárias. Sei que muitas pessoas não têm quase nenhum tempo livre, para além do dedicado às obrigações básicas. Sei que o mundo é muito mais dinâmico e rápido. Sei que estamos nos acostumando com outros formatos de comunicação, com a predominância de vídeos curtos.

Sei de tudo isso, mas sejamos honestos: não é bonito alguém que está na universidade ou que se graduou em uma ter medo ou preguiça de ler instruções ou comunicados básicos.

Recortei o público entre os estudantes universitários e graduados por uma razão. Sou natural de um bairro da periferia e o primeiro da família que entrou na universidade. Minhas irmãs não tiveram o mesmo privilégio e nem meus pais. Minha mãe, vira e mexe, compartilha uma fake news acerca da morte de algum famoso nas redes sociais e há alguns dias atrás caiu em um golpe. Tudo isso por pura falta de atenção.

O ponto é que entendo que ela é de outra época e que não teve os mesmos privilégios que eu. Não só ela, mas milhões de outros brasileiros. Alguns textos e linguagens, sobretudo as mais formais, são de fato muito difíceis para que eles interpretem.

Agora, para uma pessoa privilegiada o bastante para estar no ensino superior ou ter concluído a graduação, sobretudo em universidade pública, é um grande problema ter medo de ler, ter preguiça e não dispor da atenção necessária para interpretar um comunicado.

Precisamos parar de romantizar, de banalizar ou de maquiar a problemática com argumentos pautados na correria dos dias de hoje.

<><> As consequências não serão triviais

Há alguns dias um amigo me contou uma história. Ele tem uma amiga médica que admitiu não saber fazer regra de três. Antes que alguém questione a relevância dessa informação, eu digo: ela é pediatra. É extremamente relevante que ela domine essa técnica para conseguir calcular as dosagens dos remédios. Segundo meu amigo, a médica se confortava com o fato de que havia uma tabela e que isso, inclusive, a desestimulou a tentar aprender. E, se um dia a tabela não estiver à mão, como ela vai se virar? Preocupante.

Há alguns dias, assisti a uma palestra online de 2018 do professor Miguel Nicolelis. um médico e cientista brasileiro de reconhecimento internacional e que atualmente integra o time de docentes da universidade de Duke, em Durham, nos EUA.

"Porque o cérebro é o camaleão que ele é, a nossa imersão no mundo digital, e a recompensa que isso traz, porque o cérebro está sempre calculando uma relação de custo benefício. Na verdade, estamos moldando nosso cérebro e muito provavelmente aparando os processos analógicos dele, para que ele se aproxime de uma máquina biológica digital, ou seja, a nossa imersão contínua em lógica digital está induzindo o cérebro a achar que esse é o caminho que deve ser seguido para receber as recompensas da vida cotidiana de todos nós”

Ele continua: "O efeito da hiperconectividade digital foi produzir milhões de tribos, ou seja: nós regredimos para os comportamentos sociais da origem da nossa espécie, mas todos os comportamentos sociais como empatia, interatividade, vocabulário parecem estar sendo contraídos. A dicotomia é muito interessante e o que vemos hoje em dia é que porque o cérebro é tão plástico e porque a função de recompensa mudou drasticamente. A sua transformação em um zumbi digital biológico é quase que uma necessidade de sobrevivência, mas estamos esquecendo que isso está afetando o cérebro e pode estar afetando de uma forma que não queremos”

Quando ingressamos em uma nova instituição, é comum nos sentirmos perdidos e nos depararmos com um cenário repleto de informações que demandam leitura. Isso é natural e faz parte da vida real e adulta. O que fazer nesses casos? Não ler? Desistir? Fazer um monte de perguntas aleatórias? Não é muito mais maduro e eficiente ler as informações com calma, quantas vezes for necessário, e depois tirar as dúvidas?

Sinto que estamos diante de um grande problema, mas a sociedade não apenas não está dando a devida importância, como também está banalizando e romantizando o tamanho do problema. Espero não ser tarde demais para que algo seja feito.

 

Fonte: Deutsche Welle

 

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