Os limites para tornar a educação pública
brasileira "poliglota"
O debate sobre a
permanência da obrigatoriedade do espanhol no currículo do Novo Ensino Médio,
que mobilizou embaixadas estrangeiras no país e fomentou uma disputa de
narrativas no Congresso Nacional, levanta também uma discussão sobre a
capacidade do Brasil em diversificar a oferta de línguas estrangeiras na
educação básica.
Especialistas
entrevistados pela DW afirmam que o debate precisa caminhar em paralelo à
oferta de cursos de graduação para formação de professores de língua
estrangeira, à qualidade do ensino e também à demanda de carga horária dos
alunos.
Um levantamento
realizado pela DW, a partir da base de dados do Ministério da Educação (MEC)
sobre cursos de graduação existentes no Brasil, mostra que o país tem 2,2 mil
cursos de Letras, dos quais 126 são ofertados por instituições públicas de
âmbito federal, estadual ou municipal. A maioria deles é dedicada ao ensino de
português, inglês e espanhol.
Juntos, os cursos de
Letras somam 23 mil vagas públicas, a maioria delas no sudeste, também a região
mais populosa.
São sete cursos no
Centro-Oeste, sendo quatro de inglês e um em espanhol – os demais são
português. No nordeste são 42 cursos, sendo que entre os de língua estrangeira
são dois em francês, oito em espanhol e 10 em inglês. No Norte, são 11 cursos
de Letras, sendo dois contemplando a língua inglesa, um o espanhol e um a
Língua Brasileira de Sinais (Libras) – o restante oferta português.
No Sudeste, são 32
cursos e a maior diversidade em termos de línguas estrangeiras. Cinco
graduações ofertam a língua inglesa, duas oferecem formação em espanhol, duas
em italiano e duas em francês. Há, ainda, um curso que oferta hebraico e outro,
japonês. No Sul, são 34 formações, 12 dedicadas ao inglês, sete em língua
espanhola, uma em Libras e uma em francês.
• Projeto de país
Tradicionalmente, o
Brasil não é um país que incentiva o ensino de línguas em seus currículos de
educação pública. Hoje em dia, a média de aulas é de apenas uma hora por
semana. A grande maioria das pessoas que dominam um segundo idioma buscam esse
aprendizado em cursos privados, que costumam ser bastante caros para a
população em geral.
Para o professor do
programa de pós-graduação em Letras da Universidade Federal de Pelotas (UFPel)
Rafael Vetromille-Castro, a escolha da obrigatoriedade de uma língua deve
considerar o projeto do país.
"As pessoas que
saem do ensino médio, indo ou não para a universidade, dominando uma língua
estrangeira em nível intermediário estarão em outro ponto de interação
comercial e econômica com outros países. A discussão da obrigatoriedade deveria
considerar isso", afirma.
Segundo a senadora
Dorinha Seabra (União-TO), relatora do projeto do Novo Ensino Médio no Senado,
que mantinha a obrigatoriedade do espanhol no currículo, a alegação do relator
do projeto na Câmara, deputado Mendonça Filho (União-PE), de que não há professores
suficientes de espanhol no Brasil não faz sentido.
"Não vai ter
nunca se não tiver uma política direcionada à qualificação, formação e
necessidade. É uma relação de mercado", afirma.
De acordo com dados
levantados pelas associações de professores de espanhol de 21 estados,
divulgados em nota pública, entre 2005 e 2017 o Brasil abriu cerca de 88 cursos
de graduação em letras que contemplavam a formação português-espanhol.
Grande parte deles foi
aberta tendo em vista que o espanhol tornou-se obrigatório no ensino médio
brasileiro em 2005, por meio da Lei 11.161. No entanto, a legislação foi
revogada com a reforma do ensino médio de 2017, no governo do ex-presidente
Michel Temer. Atualmente, no Brasil,
como língua estrangeira, apenas o inglês é obrigatório a partir do sexto ano do
ensino fundamental.
• Os desafios para expandir a formação de
professores em língua estrangeira
Muitas aulas de língua
estrangeira ainda são dadas por professores sem formação na área, pontua Rafael
Vetromille-Castro, da UFPel. De acordo com o Censo Escolar 2023, 13,4% dos
professores que ensinam língua estrangeira nos anos iniciais da educação básica
no Brasil não têm formação superior, enquanto 47,6% têm uma licenciatura em uma
área diferente da que atua.
Nos anos finais do
ensino fundamental, 43% dos professores de língua estrangeira têm uma
licenciatura numa área diferente da que leciona. Já no ensino médio, o
percentual é de 44,7%. Por outro lado, é nessa etapa da educação que há o menor
percentual de professores sem ensino superior ensinando outros idiomas, quando
comparadas todas as etapas da educação básica. "Isso vem diminuindo, mas
ainda é uma realidade", diz Vetromille-Castro.
Questões de políticas
públicas, desvalorização da docência, falta de infraestrutura nas escolas e nas
universidades são elencadas como fatores que tornam a formação de novos
professores em línguas estrangeiras e a expansão desse ensino complexa no país.
"Tornar a
docência mais atrativa é um dos aspectos mais urgentes, pois isso implica
potencializar tanto as práticas de ensino quanto as instituições
educacionais", afirma o professor do Centro de Comunicação, Letras e Artes
(CCLA) da Universidade Federal de Roraima (UFRR) Alan Ricardo Costa.
"Cada vez temos
menos pessoas interessadas em entrar numa licenciatura em língua estrangeira e,
em consequência, menos mão de obra especializada", complementa
Vetromille-Castro.
Ele destaca que não há
falta de professores, pelo menos para espanhol e inglês, mas que os egressos
dos cursos de licenciatura em Letras acabam indo para escolas de idiomas, pois
encontram nesses espaços uma remuneração maior do que a das escolas públicas e
particulares.
"Isso evidencia
que a formação é de qualidade, mas que esses egressos estão indo para onde a
população como um todo não tem acesso".
Para Costa, o Brasil
não é um país monolíngue e isso deve ser considerado na oferta dos cursos de
formação dos professores e de aulas ao aluno.
"Precisamos
reconhecer que muitas línguas 'são daqui'. Temos variados contextos, de
migração, de fronteira, de povos originários, de comunidades quilombolas, de
surdos…", elenca.
Vetromille-Castro
explica que, se o Brasil quiser que os alunos acabem a educação básica com as
quatro competências de uma língua – falar, ouvir, ler e escrever – precisa
rever a quantidade de horas aula nos currículos.
"A gente faz uma
comparação com cursos livres, que são pagos de modo particular, e o que se tem
de padrão são duas aulas por semana de uma hora e 15 minutos", lembra
Vetromille-Castro.
Nos cursos privados, a
média de tempo para tornar-se intermediário a avançado numa língua é de três a
quatro anos.
• Embaixadas têm projetos de estímulo de
idiomas
Várias embaixadas no
Brasil fomentam a língua estrangeira na educação pública. No ano passado, por
exemplo, a adida de cooperação educativa da embaixada da França no Brasil,
Hélène Ducret, visitou o Amapá para entregar um prêmio a uma escola que oferece
ensino bilíngue francês-português e "alinhar tratativas pedagógicas para
ampliar projetos educacionais que intensifiquem o estudo bilíngue no
estado".
Também houve uma
visita à Secretaria de Educação de Cuiabá, no Mato Grosso, para a discussão de
parcerias. Em 2023, a embaixada da França também discutiu parcerias na educação
com o governo do Paraná e estabeleceu acordo de cooperação técnica com o governo
do Ceará.
Esse movimento é comum
a outras representações diplomáticas no Brasil. No Rio de Janeiro, a Secretaria
Estadual de Educação afirmou que mantém em 27 escolas de tempo integral o
ensino do idioma de pelo menos 16 países, em parceria com embaixadas, consulados
ou instituições vinculadas a diferentes territórios. Existem, por exemplo, duas
escolas onde há o ensino de alemão, em parceria com o Goethe-Institut.
Em São Paulo, o
Goethe-Institut também tem projetos com as secretarias estadual e municipal.
Além disso, o Estado de São Paulo tem parcerias com a Fundação Japão, o
consulado da França e o consulado da Itália.
"A qualidade do
ensino nem sempre está atrelada ao conhecimento do docente, mas como você trata
o aluno, estabelece uma relação com o idioma e, consequentemente, com a
cultura", afirma Renato Ferreira da Silva, gerente da Cooperação
Pedagógica do Goethe-Institut São Paulo.
Segundo ele, para que
essas parcerias se efetivem, é preciso ter professores motivados. "O fato
de ter turmas com pessoas que optaram pela matéria, estão ali porque têm
interesse em aprender, isso também motiva o professor", defende.
Ele ressalta, porém,
que essa parcerias não darão frutos se não houver formação local dos
professores. "Há uma procura tanto de instituições públicas quanto de
privadas para oferecer alemão, mesmo em cidades menores. Mas não há professores
suficientes no mercado", afirma.
Em Roraima, por
exemplo, o governo mantém, desde 2019, um acordo de cooperação com a embaixada
da Espanha para o fomento da língua espanhola, por meio do qual são realizados
cursos de atualização de professores e o ensino do idioma para os alunos. Já em
Sergipe, a secretaria estadual tem acordo de formação de professores em língua
inglesa com a Embaixada e os Consulados dos Estados Unidos.
Goiás, por sua vez,
tem parcerias com as embaixadas dos Estados Unidos e da França, que, a partir
de 2026, ofertará formação especializada em metodologia e coordenação de escola
bilíngue francesa para os professores.
• Não é bonito alguém na universidade ter
medo de ler. Por Vinícius De Andrade
"Transforma em um
tuite ou não irei responder”
Foi isso que ouvi do
presidente de uma organização da qual participei enquanto embaixador há alguns
anos. Na época, precisei falar com ele sobre uma demanda séria e que
simplesmente não poderia ser transformada em um texto com até 280 caracteres.
Esta coluna mesmo, neste trecho, já possui mais caracteres.
Atualmente lidero o
maior programa social de educação do Brasil. Tenho contato direto com milhares
de jovens da rede pública de mais de 1.557 cidades do país e com estudantes e
graduados de todas as universidades públicas do país.
Minha maior dor no
trabalho hoje em dia é o fato de que, salvo exceções, as pessoas não estão
lendo mais. Não me refiro a ler Machado de Assis ou obras literárias, mas sim a
recados e instruções simples e diretas.
Anos atrás, isso era
muito comum entre os jovens secundaristas com quem tenho contato. Eu entendia
todo o contexto e a questão da idade, mas no pós-pandemia, houve um crescimento
assustadoramente notável. E isso se tornou comum também entre nosso time voluntário
e com membros das melhores instituições de ensino superior do país.
Já havia escrito uma
coluna sobre este tema, já citei a problemática em outras oportunidades e agora
estou aqui novamente, pois nada muda minha ideia de que o problema é grave.
<><>
Estamos banalizando e romantizando a problemática
Sei que hoje em dia as
pessoas precisam lidar com inúmeras demandas diárias. Sei que muitas pessoas
não têm quase nenhum tempo livre, para além do dedicado às obrigações básicas.
Sei que o mundo é muito mais dinâmico e rápido. Sei que estamos nos acostumando
com outros formatos de comunicação, com a predominância de vídeos curtos.
Sei de tudo isso, mas
sejamos honestos: não é bonito alguém que está na universidade ou que se
graduou em uma ter medo ou preguiça de ler instruções ou comunicados básicos.
Recortei o público
entre os estudantes universitários e graduados por uma razão. Sou natural de um
bairro da periferia e o primeiro da família que entrou na universidade. Minhas
irmãs não tiveram o mesmo privilégio e nem meus pais. Minha mãe, vira e mexe,
compartilha uma fake news acerca da morte de algum famoso nas redes sociais e
há alguns dias atrás caiu em um golpe. Tudo isso por pura falta de atenção.
O ponto é que entendo
que ela é de outra época e que não teve os mesmos privilégios que eu. Não só
ela, mas milhões de outros brasileiros. Alguns textos e linguagens, sobretudo
as mais formais, são de fato muito difíceis para que eles interpretem.
Agora, para uma pessoa
privilegiada o bastante para estar no ensino superior ou ter concluído a
graduação, sobretudo em universidade pública, é um grande problema ter medo de
ler, ter preguiça e não dispor da atenção necessária para interpretar um comunicado.
Precisamos parar de
romantizar, de banalizar ou de maquiar a problemática com argumentos pautados
na correria dos dias de hoje.
<><> As
consequências não serão triviais
Há alguns dias um
amigo me contou uma história. Ele tem uma amiga médica que admitiu não saber
fazer regra de três. Antes que alguém questione a relevância dessa informação,
eu digo: ela é pediatra. É extremamente relevante que ela domine essa técnica
para conseguir calcular as dosagens dos remédios. Segundo meu amigo, a médica
se confortava com o fato de que havia uma tabela e que isso, inclusive, a
desestimulou a tentar aprender. E, se um dia a tabela não estiver à mão, como
ela vai se virar? Preocupante.
Há alguns dias,
assisti a uma palestra online de 2018 do professor Miguel Nicolelis. um médico
e cientista brasileiro de reconhecimento internacional e que atualmente integra
o time de docentes da universidade de Duke, em Durham, nos EUA.
"Porque o cérebro
é o camaleão que ele é, a nossa imersão no mundo digital, e a recompensa que
isso traz, porque o cérebro está sempre calculando uma relação de custo
benefício. Na verdade, estamos moldando nosso cérebro e muito provavelmente
aparando os processos analógicos dele, para que ele se aproxime de uma máquina
biológica digital, ou seja, a nossa imersão contínua em lógica digital está
induzindo o cérebro a achar que esse é o caminho que deve ser seguido para
receber as recompensas da vida cotidiana de todos nós”
Ele continua: "O
efeito da hiperconectividade digital foi produzir milhões de tribos, ou seja:
nós regredimos para os comportamentos sociais da origem da nossa espécie, mas
todos os comportamentos sociais como empatia, interatividade, vocabulário parecem
estar sendo contraídos. A dicotomia é muito interessante e o que vemos hoje em
dia é que porque o cérebro é tão plástico e porque a função de recompensa mudou
drasticamente. A sua transformação em um zumbi digital biológico é quase que
uma necessidade de sobrevivência, mas estamos esquecendo que isso está afetando
o cérebro e pode estar afetando de uma forma que não queremos”
Quando ingressamos em
uma nova instituição, é comum nos sentirmos perdidos e nos depararmos com um
cenário repleto de informações que demandam leitura. Isso é natural e faz parte
da vida real e adulta. O que fazer nesses casos? Não ler? Desistir? Fazer um
monte de perguntas aleatórias? Não é muito mais maduro e eficiente ler as
informações com calma, quantas vezes for necessário, e depois tirar as dúvidas?
Sinto que estamos
diante de um grande problema, mas a sociedade não apenas não está dando a
devida importância, como também está banalizando e romantizando o tamanho do
problema. Espero não ser tarde demais para que algo seja feito.
Fonte: Deutsche Welle
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