O que torna Rebeca Andrade uma atleta fora
da curva, segundo treinadora que a descobriu
Uma série de
"acasos" marcou a iniciação de Rebeca Andrade na ginástica artística,
ainda aos 6 anos de idade, em Guarulhos (SP).
Era início dos anos
2000, e a nova turma de crianças do projeto social da Prefeitura da cidade na
Grande São Paulo já estava praticamente selecionada ― sem o nome de Rebeca,
filha de uma mãe solo, empregada doméstica, que pouco tempo tinha para pensar
em carreira esportiva dentro da família.
Mas uma tia de Rebeca,
Cida, havia acabado de começar a trabalhar como cozinheira no ginásio de
esportes. E pediu para a professora e técnica Monica dos Anjos dar uma
"olhadinha" naquela sobrinha espevitada que já gostava de pular os
móveis em casa.
"Quando vi aquele
corpinho forte, torneado, cheio de musculatura que a gente busca em crianças da
ginástica, eu já sabia que tinha algo especial", lembra Monica sobre a
decisão de abrir espaço para mais uma aluna nas classes.
O resto é história.
Rebeca Andrade se
tornou nesta quinta-feira (1/8) a maior medalhista mulher da história olímpica
brasileira, ao ganhar sua quarta medalha, a de prata, no individual geral.
Na terça-feira (30/7),
ela já havia ganhado o bronze por equipes. E, nos Jogos de Tóquio, em 2021,
conquistou a prata no individual geral e o ouro no salto.
Rebeca ainda tem a
chance de ganhar mais três medalhas, já que disputa as finais do salto, solo e
trave em Paris na segunda-feira (5/8).
Se ganhar ao menos
mais duas medalhas, ela se tornará a atleta brasileira, entre homens e
mulheres, com mais conquistas olímpicas, superando Robert Scheidt e Torben
Grael, da vela.
Para a professora que
acompanhou os primeiros saltos de Rebeca, as subidas cada vez mais frequentes
ao pódio rebobinam um filme.
"Vem na memória
quando ela veio pequenininha com tia. Eu segurei a mão dela e pedi para ela
pular no tablado. Pensei: temos aqui uma nova Daiane dos Santos", diz
Monica dos Anjos, lembrando outra ginástica vitoriosa brasileira, também negra
e da periferia, que vivia seu auge na época.
Tanto o sucesso de
Daiane quanto o de Rebeca, duas mulheres "carismáticas e que carregam a
alegria do esporte", vêm consolidando cada vez mais o Brasil na ginástica
mundial, avalia Luisa Parente, a primeira ginasta do país a participar de duas olimpíadas:
Seul 1988 e Barcelona 1992.
No projeto social de
Guarulhos, para onde ia andando com o irmão mais velho, um dos oito filhos de
dona Rosa, o talento de Rebeca se sobressaiu e ela passou a ser acompanhada
pelo treinador Chico Porath, com ela até hoje.
"Era difícil
manter ela focada, porque ela achava tudo fácil. Eu botava as meninas em fila e
‘cadê a Rebeca?’ Ela estava vendo as mais velhas, imitando os passos de dança,
os movimentos", lembra Monica dos Anjos
A ginasta se mudou
então para Curitiba aos dez anos e, depois, ao Rio de Janeiro, onde entrou para
Clube de Regatas do Flamengo, do qual é atleta até hoje.
Mas ― além da
coincidência de morar numa cidade com um projeto social relevante na ginástica,
contar com o "empurrão" do sucesso de Daiane e ter uma tia que
cozinhava para os atletas mirins ― o que faz de Rebeca uma atleta tão
"genial", a ponto de ser a única atualmente a bater de frente com
Simone Biles, a superginasta americana?
• 1 - Um corpo potente
Aquelas
características físicas que a professora Monica dos Anjos percebeu na primeira
olhada em Rebeca de fato se mostraram uma arma da brasileira.
"A força muscular
que ela tem a faz subir muito alto nos saltos e realizar os elementos de uma
forma mais limpa", avalia Monica.
A ex-ginasta e
pioneira Luisa Parente, que trabalhou com Rebeca no Flamengo, dá um exemplo de
uma bailarina para explicar Rebeca, que "parece uma pluma, mesmo tendo que
usar muita força".
"Você pode notar
que há ginastas que a gente percebe que estão fazendo muito esforço para
realizar os movimentos. Mas a Rebeca, assim como Simone Biles, não. É uma
conjunção dos fatores das habilidades naturais, com a constituição física e
potência muscular, e da habilidade técnica que ela adquiriu", diz.
"O voo de Rebeca
atinge aquilo que toda ginasta almeja, que é o que chamamos de amplitude do
movimento, que é a altura mais a distância."
A força da brasileira
faz com que ela seja "explosiva" na saída para correr, explica Monica
dos Anjos — é como um carro potente, que consegue ir de 0 a 100 km/h em pouco
tempo.
"No caso da
salto, ela vem muito rápido e, quando bate na mesa, consegue subir alto. Isso
faz com que ela aterrisse com mais tranquilidade."
Apesar de forte, o
corpo de Rebeca também sofre em meio aos esforços constantes do esporte. Ela já
passou por três cirurgias no joelho direito, em 2015, 2017 e 2019.
Durante esses
períodos, pensou em abandonar a carreira algumas vezes, segundo já relatou em
entrevistas. Mas Rebeca contou com o apoio de sua mãe, treinadores e até de
Simone Biles, que a aconselhou a "não desistir", segundo a ginasta
brasileira.
"Na última lesão,
lembro que ela quase jogou a toalha. Lembro de conversar com ela no terraço do
clube e eu disse: 'vai falar com sua mãe, depois volte porque seu lugar é em
cima do pódio'", lembra Luisa Parente.
• 2 - Concentração e cabeça no lugar
A ginástica não é um
esporte fácil. Os treinos são pesados, repetitivos, com horas e mais horas
repetindo o mesmo movimento.
"Quando chegam lá
na hora da competição, a cobrança delas com elas mesmas é muito grande, não
querem errar de jeito nenhum", explica Monica dos Anjos.
Mas o erro
inevitavelmente vem, independentemente das horas dedicadas em treino. E é aí
que vem o trabalho de concentração e com psicólogos.
"Se errar, tem
que se levantar. Eu vejo como as meninas estão centradas, focadas. Sei que
estão tendo acompanhamento psicológico, o que faz toda a diferença", diz
Monica.
Além de conseguir
lidar com as falhas, Rebeca também consegue se colocar numa "bolha"
na hora das provas, segundo sua primeira treinadora.
"Eu observo que
ela faz de conta que não tem nada ao redor. Não fica olhando o placar ou se as
outras erraram ou acertaram os movimentos. Ela só quer executar o dela",
diz.
Para Luísa Parente,
atletas muito experientes como Rebeca – que, apesar de ter 25 anos, está na
ginástica há 20 – têm a vantagem de conhecer melhor o corpo.
"Você consegue
desfrutar mais o momento, não ficar tão tensa com a perfeição", avalia.
"E ainda tem o
entrosamento com o treinador (Rebeca e Chico Porath trabalham juntos desde que
ela era criança) que também ajuda, porque ele é a pessoa que passa mais tempo
com ela, tem intimidade, e sabe como apoiá-la."
• 3 - O carisma que levanta a torcida
No solo da ginástica,
em que as atletas mulheres se apresentam com música, a energia da ginasta
conta, segundo as treinadoras. E isso Rebeca tem de sobra.
"Se for comparar,
as americanas fazem muito bem as acrobacias. Mas as nossas brasileiras, não só
a Rebeca, elas levantam o público, fazem um espetáculo", opina Monica dos
Anjos.
Para a treinadora, que
também atua como árbitra em competições internacionais, quando a atleta vê a
torcida celebrando junto, isso "arrepia, ajuda a impulsionar o salto, é
como se fosse um a mais no tablado".
Ao ver Rebeca dar as
entrevistas hoje, com a voz fina e sempre sorrindo, a primeira treinadora diz
que se lembra da criança que ainda vive na mulher campeã olímpica. "O
jeitinho que conquistou a gente segue lá."
A escolha da música
para o solo, feita em conjunto entre atleta e treinador, também ajuda na
interação com a plateia. No caso de Rebeca, o ritmo que empurra ela para o alto
conta um pouco de sua história.
A brasileira se
apresenta em Paris ao som de um remix das músicas End of Time, de Beyoncé, e
Movimento da Sanfoninha, de Anitta. Em Tóquio, ela já tinha conquistado o
público com o seu Baile de Favela, de MC João.
"O atleta tem que
estar curtindo o que está apresentando. E a gente vê que ela está", diz
Mônica.
"Ela traduz em
alegria, é um divertimento na competição", completa Luisa Parente.
Fonte: BBC News Brasil
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