Guru de Haddad diz que tragédia climática
no RS reforça necessidade de taxar super-ricos
Para o economista
francês Gabriel Zucman, 37, que elabora a pedido do governo do Brasil um
relatório para o G20 sobre a taxação global de super-ricos, tragédias
climáticas como as enchentes no Rio Grande do Sul reforçam a necessidade de um
imposto mínimo para bilionários.
"Precisamos
começar por obter esses recursos dos atores econômicos que, hoje, têm o maior
déficit de taxação. Ou seja, os que pagam menos do que outros grupos sociais,
mas que têm a capacidade de pagar mais. Precisamente os super-ricos",
afirmou Zucman à Folha durante entrevista em Brasília, onde esteve para um
simpósio sobre tributação, também no âmbito do G20.
Fundador do
Observatório Fiscal da União Europeia, ele também minimizou a oposição dos
Estados Unidos à proposta encampada pelo Brasil de uma espécie de imposto
internacional mínimo sobre bilionários. Para ele, a proposta pode avançar mesmo
sem o endosso americano.
A ideia base do
economista prevê um imposto de 2% sobre o patrimônio dos cerca de 3.000 pessoas
que detêm mais de US$ 1 bilhão ou R$ 5,15 bilhões (mais de cem deles na América
Latina) o que nas suas contas
geraria uma receita de US$ 250 bilhões. Ele afirma que vai propor cenários alternativos que mirem na criação de sistemas tributários mais progressivos.
Zucman entregará um
relatório no final de junho detalhando a proposta. O Brasil espera que ela seja
endossada na cúpula dos ministros das Finanças do G20 no Rio de Janeiro, em 28
e 29 de julho.
LEIA A ENTREVISTA:
- Que avanços foram realizados desde a reunião do G20 em São
Paulo, em fevereiro?
Gabriel Zucman - Ao
olhar para os dois últimos meses e meio, acho que é incrível o que aconteceu.
Muitos países apoiaram o Brasil por ter colocado esse tema [taxação dos
super-ricos], como a França, África do Sul, Espanha, Bélgica, Colômbia. Há
ainda países que estão se engajando de forma construtiva, inclusive a Índia,
que estão esperando para ver o relatório antes de adotar uma posição oficial. O
que é incrível é essa coalizão de países do Sul Global, da Europa, do G7, do
G20 que estão manifestando apoio a alguma forma de coordenação internacional
nesse tema.
Esse progresso reflete
a grande demanda que existe ao redor do mundo por um sistema fiscal mais justo.
E também o descontentamento generalizado com a situação de não taxação, de
taxação muito fraca, dos super-ricos.
<<<< Como
vê a posição dos EUA nesse debate?
G. Z. - O Orçamento do
presidente [Joe] Biden prevê um imposto de renda para os bilionários que, no
seu espírito, é muito próximo à proposta que está sendo discutida no G20. Tem o
mesmo objetivo: a ideia de que cada ano os bilionários deveriam pagar uma quantidade
mínima em imposto. Alguns deles pagam zero, literalmente. O imposto de renda
para bilionários do Biden, no seu espírito, afirma que isso não é aceitável.
Assim como bombeiros e professores, bilionários deveriam pagar impostos todos
os anos.
<<< Mas por
que os EUA resistem à ideia do G20?
G. Z. - Ontem
[segunda, 20], um artigo no The Wall Street Journal sobre Janet Yellen
[secretária do Tesouro dos EUA], tinha basicamente dois temas distintos. A
primeira: é importante ter um imposto mínimo para os super-ricos? Acho que
claramente os EUA responderam a essa questão. É um sim, eles colocaram isso no
Orçamento. A segunda questão é: caso haja um padrão mínimo e coordenado dessa
natureza, para onde as receitas dos impostos deveriam ir? Para países de baixa
renda? É o tema da redistribuição internacional. E aqui, sim, ela disso muito
claramente ser contra a redistribuição internacional das receitas do imposto.
O ideal seria termos
todos os países do mundo assinando um acordo como esse, mas não é necessário. É
totalmente possível ter um imposto mínimo que seja implementado por um número
de países, mesmo que outros, ao menos inicialmente, não participem. É exatamente
como o imposto mínimo para as empresas multinacionais funciona.
Os EUA não ratificaram
o imposto mínimo de 15% sobre as multinacionais, mas ainda assim é uma
realidade, 35 países estão em processo de implementação desde o início deste
ano. Se os EUA vão se juntar ou não seria melhor que eles participassem é irrelevante. Porque o acordo tem medidas que permitem a um país participante sobretaxar empresas de países não participantes, para garantir que essas multinacionais pagarão no mínimo 15%. Então seria possível ter, em algum nível, mecanismos como esse na hora de taxar os super-ricos.
<<< Que tipo
de declaração será possível realizar sobre o tema num documento do G20?
G. Z. - É preciso
reconhecer que o G20, até três meses atrás, nunca tinha discutido temas de
progressividade de impostos, desigualdade, taxação dos super-ricos. Isso mudou
no final de fevereiro. Então estamos muito no começo de um processo que vai
durar vários anos. O que podemos esperar? Acho que seria muito importante uma
declaração, por parte de alguns países, que enfatizasse a importância de se
trabalhar conjuntamente na área de cooperação internacional para a
progressividade de impostos. Seria uma grande mudança em relação a declarações
passadas. Ninguém espera um acordo concreto em apenas alguns meses.
<<< Por que
tratar desse tema no âmbito internacional e não no nacional?
G. Z. - Se não há
cooperação internacional, o risco é que alguns países vão se transformar em
paraísos fiscais para empresas e para os super-ricos. E os super-ricos vão se
mudar para esses países, minando os esforços domésticos por mais
progressividade fiscal.
<<< Uma das
críticas ao Brasil assumir essa agenda é justamente a regressividade fiscal do
país que tributa pouco os
seus ricos. O Brasil tem legitimidade de propor esse tema no G20 ou deveria
antes fazer sua lição de casa
internamente?
G. Z. - Sim, porque
esse esforço internacional justamente apoia a agenda doméstica. De novo, a
questão é: se você é o único tentando taxar os super-ricos, então fica muito
mais difícil do que se fizer isso coletivamente. O Brasil não é o único país
que tem níveis muito baixos de taxação dos super-ricos. A nossa pesquisa mostra
que esse é, na verdade, um fenômeno generalizado. Temos estudos muito bons para
a França, Holanda, Itália e Estados Unidos.
Em todos os casos,
vemos que bilionários essencialmente pagam muito pouco imposto de renda. Porque
quando se é muito rico, fica muito fácil estruturar sua riqueza para que ela
gere pouca ou nenhuma renda tributável. A não taxação dos super-ricos é um problema
global. A maioria dos países não se sai melhor do que o Brasil. Acho que o
Brasil precisa ser celebrado por fazer algo concreto para mudar isso. Não vejo
contradição. Acredito que se houvesse um padrão internacional, e o ministro
[Fernando] Haddad está fazendo um grande esforço nesse sentido, uma reforma a
nível doméstico seria facilitada.
<<< Quais as
conclusões preliminares do seu relatório?
G. Z. - O relatório
trata de duas coisas. Primeiro, aborda os diferentes tipos de desafios para
implementação de um imposto mínimo [para os super-ricos]. Por exemplo, como
medir a riqueza se o imposto mínimo é expressado como uma fração da riqueza?
Como reduzir a evasão fiscal? Quais são as melhorias necessárias na troca
internacional de informações para fazer com que um imposto desse tipo funcione?
Como lidar com uma coordenação imperfeita, [já que] alguns países não serão
parte do acordo? Como criar incentivos para que os países participem?
A outra parte é que o
relatório traz diferentes cenários com reformas para melhorar a progressividade
do nosso sistema fiscal. Muito concretamente: o que aconteceria se os países
aumentassem seus impostos sobre a herança? O que aconteceria se os países aumentassem
a progressividade dos seus sistemas de imposto de renda? O que ocorreria se
houvesse um imposto mínimo expressado como a fração da riqueza? Em cada um
desses casos, o relatório analisa como eles afetariam a justiça do sistema
tributário.
A conclusão é a
seguinte: se você realmente quer fazer a diferença para enfrentar o maior
problema que os nossos sistemas de imposto têm, que é a quase ausência de
taxação dos super-ricos, a opção que se sobressai é um imposto mínimo
expressada sobre uma fração da riqueza.
O imposto sobre
heranças é importante, por razões meritocráticas, mas ela chega tarde demais. É
um imposto que se cobra só uma vez. Mesmo que você o aumente de forma
significativa, faria uma diferença pequena para a quantidade de impostos que os
super-ricos pagam. Aumentar as faixas superiores do impostos de renda faria uma
diferença mínima para os super-ricos, porque o problema fundamental é que eles
têm pouca renda tributável.
<<< Pretende
manter sua ideia base de um imposto de 2% sobre a riqueza de bilionários?
G. Z. - A base da
proposta é um imposto mínimo sobre os bilionários globais, cerca de 3.000
pessoas, igual a 2% sobre a riqueza deles. Isso significa que se você já pagou
mais do que isso em imposto de renda, não tem mais nada a pagar. Se você pagou
menos, precisaria pagar a diferença para chegar nesse patamar.
O relatório também
considera variações. Por exemplo: não há motivo para taxar apenas bilionários,
é um número arbitrário. E se taxarmos pessoas com mais de US$ 100 milhões em
patrimônio, qual seria a diferença? O que é preciso para mudar a regressividade
que temos hoje? E o resultado são esses 2% então é um número que não foi escolhido ao
acaso.
<<< Considera
que a taxação dos super-ricos pode ser usada no combate às mudanças climáticas?
G. Z. - Olhe para a
tragédia terrível no Rio Grande do Sul, a maior tragédia relacionada ao clima
na América Latina. Eu acho que ela coloca ênfase sobre as necessidades enormes
que temos coletivamente, em termos dos recursos necessários para lutar contra
as mudanças do clima. Está ainda mais claro que não conseguiremos obter esses
recursos se não o fizermos de forma justa.
Precisamos começar por
obter esses recursos dos atores econômicos que, hoje, têm o maior déficit de
taxação: ou seja, os que pagam menos do que outros grupos sociais, mas que têm
a capacidade de pagar mais. Precisamente os super-ricos.
RAIO-X
Gabriel Zucman, 37
Economista francês,
diretor do Observatório Fiscal da UE e professor associado na Universidade da
Califórnia (Berkeley). Recebeu a medalha John-Bates Clarke em 2023 por seu
trabalho sobre evasão fiscal e desigualdade de riqueza. Em trabalho recente,
descreve a regressividade acentuada dos sistemas tributários. Proposta a ser
apresentada no G20 tem ambição de servir como roteiro para um imposto mínimo
global sobre os super-ricos
Fonte: FolhaPress
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