Uso de imóveis privados para tortura uniu
civis e militares na ditadura
Comissão
Nacional da Verdade mapeou esses espaços em vários estados Uma casa discreta em
um bairro residencial, um sítio usado para churrascos em fim de semana e até
uma sala do complexo industrial de uma multinacional, lugares com pouco em
comum, além de terem sido usados para tortura e execuções. Ao longo dos anos,
pesquisadores […]
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Uma casa discreta em
um bairro residencial, um sítio usado para churrascos em fim de semana e até
uma sala do complexo industrial de uma multinacional, lugares com pouco em
comum, além de terem sido usados para tortura e execuções. Ao longo dos anos,
pesquisadores e ativistas têm lembrado em diversos momentos que a ditadura que
comandou o Brasil entre 1964 e 1985 não era apenas militar, mas foi conduzida
também por tentáculos civis. Inclusive a violenta repressão contra os
opositores teve participação de agentes sem vínculo direto com os quartéis.
Essas conexões ficam
claras na existência de diversos pontos onde eram conduzidos interrogatórios e
desaparecimentos forçados fora de qualquer estrutura militar ou governamental.
Apesar de conhecidos, o caráter completamente não oficial desses imóveis em
relação a estruturas públicas deixou poucas evidências para que seja possível
saber exatamente quantos eram e o que se passou nesses locais.
“Esses espaços
clandestinos possibilitaram uma articulação exatamente para fora das
institucionalidades. E isso acho que dava mais margem para organizações
paralelas atuarem nesses espaços. Ao mesmo tempo em que também criava laços de
participação da sociedade civil nesses processos”, diz a historiadora e
pesquisadora do Memorial da Resistência Julia Gumieri.
A existência desses
locais surge em diversas investigações feitas sobre os crimes cometidos pela
ditadura ao longo dos anos. A Comissão Nacional da Verdade mapeou a existência
de centros de tortura em vários estados, como Rio de Janeiro, Pará e Minas Gerais.
Na comissão
parlamentar de inquérito (CPI) aberta pela Câmara Municipal de São Paulo em
1990, as investigações passaram por um sítio apontado como local de tortura e
execuções em Parelheiros, extremo sul paulistano.
O alvo inicial dos
trabalhos da CPI era a vala clandestina no Cemitério Dom Bosco, em Perus, zona
norte paulistana, onde foram ocultados os restos mortais de opositores
assassinados pela repressão. Porém, os trabalhos também investigaram a
existência da Fazenda 31 de Março, na região de Marsilac, no extremo sul da
capital paulista, próximo à divisa com Itanhaém e Embu-Guaçu.
·
Difícil identificação
Havia a suspeita de
que esse teria sido o lugar para onde o dramaturgo e militante Maurício Segall,
filho do pintor Lasar Segall, foi levado ao ser sequestrado pelo regime. Ao
depor na Câmara Municipal, Segall não reconheceu o local pelas fotos apresentadas
pelos vereadores.
“Estou olhando isto
aqui e diria que não é a casa onde estive. Por duas razões: a primeira é que,
mesmo vendado – isso me lembro perfeitamente – eu desci uma escadinha de onde o
carro estava parado para chegar à entrada da casa. Isso me lembro na ida e na
volta. Eu ia meio amparado, porque estava vendado. E aqui, me parece pelo
menos, não há possibilidade de ter escada, não tem nada”, respondeu ao ver as
fotos do local na investigação feita pelos vereadores em 1990, puxando da
memória o que havia passado em 1970.
A fazenda era de
propriedade do empresário Joaquim Rodrigues Fagundes, que morreu antes de ser
ouvido pela CPI. O escritor e ex-preso político Ivan Seixas disse que o filho
de um dos militares que frequentavam o sítio contou que o local também servia
de ponto de confraternização para os agentes da repressão. “Tinha o filho de um
milico, do capitão Enio Pimentel Silveira, que era funcionário da prefeitura. A
gente pediu e ele concordou em ir [até a Fazenda 31 de Março], porque ele ia lá
para churrascos. O pai dele e o [delegado Sérgio] Fleury faziam churrascos e
levavam os filhos”, disse em entrevista à Agência Brasil. Seixas foi
coordenador da Comissão Estadual da Verdade de São Paulo e assessor especial da
Comissão Nacional da Verdade.
É provável que Segall
não tenha reconhecido o local porque a equipe do delegado Sérgio Fleury o levou
para outro sítio, em Arujá, na Grande São Paulo, a norte da capital. Diversos
depoimentos relatam que o delegado, um dos mais conhecidos torturadores da
ditadura, tinha a sua disposição uma chácara, que nunca teve localização exata
identificada.
Durante o tempo que
esteve preso nesse sítio, Segall presenciou a morte de Joaquim Ferreira Câmara,
conhecido pelo codinome de Toledo, um dos líderes da Ação Libertadora Nacional
(ALN). Segundo relato de outro conhecido agente da repressão, Carlos Alberto
Augusto, chamado de Carlinhos Metralha, após ser capturado no Rio de Janeiro e
ficar em cativeiro em diversos locais, Eduardo Collen Leite, o Bacuri, também
teria passado pelo sítio usado por Fleury em Arujá.
“O sítio aparentemente
tinha dois quartos, uma sala/cozinha e um banheiro. Os choques elétricos
aplicados no pau-de-arara eram gerados num aparelho, acionado por manivela
manual”, contou Segall em depoimento à Comissão Especial sobre Mortos e
Desaparecidos Políticos. Também estavam presos no local Viriato Xavier de Mello
Filho e Maria de Lourdes Rego Melo.
Durante a tortura, o
artista viu um homem, que depois identificou como sendo Joaquim Câmara, com
sintomas de um ataque cardíaco. Apesar de ter recebido atendimento médico, o
líder da ALN morreu no local, o que fez com que os demais presos fossem levados
de volta para o Departamento de Ordem Política e Social (Dops), no centro da
capital paulista.
Também pertencente ao
empresário Joaquim Rodrigues Fagundes, dono da transportadora Rimet e da
Fazenda 31 de Março, a chamada Casa da Mooca era utilizada para manter presos
durante dias opositores da ditadura. O relatório final da Comissão da Verdade
da Assembleia Legislativa de São Paulo denuncia que o imóvel localizado na Rua
Fernando Falcão, no bairro da Mooca, zona leste paulistana, foi colocado a
serviço da repressão na década de 1970. Segundo o documento, o local também
pode ter sido usado como cativeiro para Bacuri.
·
Lugares ainda não
revelados
Sair vivo de um lugar
como esse não era a regra. “Foram poucos sobreviventes desses espaços de modo
geral, exatamente porque, como eles não eram parte das estruturas oficiais, o
objetivo não era prender. O objetivo era recolher informações, torturar e executar,
porque você não pode ter sobreviventes, testemunhas desses espaços não
oficiais”, explica Julia Gumieri.
Sem registros e sem
testemunhas, é possível, segundo a pesquisadora, que alguns desses locais não tenham
sequer sido mencionados nas investigações feitas até agora. “Imaginando o que
se perdeu de documentação não localizada e mesmo de falta de sobrevivente que
os próprios colegas de militância não souberam, é muito provável que tenha
existido muito mais, que seja uma camada ainda pequena que a gente sabe sobre”,
acrescenta a historiadora.
Na Fazenda 31 de
Março, teriam sido mortos em 1973 os militantes da ALN Sônia Angel Jones e
Antônio Carlos Bicalho Lana. Na CPI de 1990, o ex-deputado Afonso Celso, único
sobrevivente conhecido do sítio, contou sobre o que passou lá. Apesar de
vendado, ele se lembrava que atravessou uma linha férrea para chegar ao local.
“Fui conduzido para um subterrâneo, ou uma sala subterrânea ou coisa assim,
porque existiam quatro degraus. Quatro degraus, não, quatro lances de escada, e
lá imediatamente me despiram e passaram a me torturar”, relatou aos vereadores.
“Eu provavelmente
desmaiei ou qualquer coisa assim, das sevícias de que fui vítima. Depois
acordei e vejo que me botaram já num outro tipo de tortura, que não era mais
pau-de-arara”, segue a história contada por Celso. “Me puseram no que eles
chamavam ‘piscina’, que era uma espécie de poço, de fundo cimentado, mas cheio
de lodo. Eu pisava no lodo, e ali eles brincavam de afogamento. Me sufocavam,
me afogavam”, disse na ocasião.
Outros lugares só
foram conhecidos por revelações dos próprios agentes da repressão, como Marival
Chaves Dias do Canto, ex-sargento que atuou no Centro de Operações de Defesa
Interna (DOI-Codi). Mesmo estando dentro de um dos maiores centros de tortura da
ditadura, Chaves negou ter participado desse tipo de violência ou operações de
repressão na rua. Fez revelações em diversos depoimentos, tanto a CPI da Vala
de Perus, como também a Comissão Nacional da Verdade. Foi o ex-agente da
repressão que identificou a Boate Querosene, em Itapevi, e o Sítio em
Araçariguama como locais usados para tortura e execução de opositores ao
regime.
Em outros casos ainda
existem dúvidas e lacunas. Até hoje não se sabe o local onde, em 1978, Robson
Luz foi torturado e morto após ser preso acusado de roubar uma caixa de frutas.
O processo relativo ao caso, que à época causou indignação e levou à formação
do Movimento Negro Unificado, só foi desarquivado em 2022.
Ao analisar a
documentação, a pesquisadora Renata Eleutério, do Centro de Pesquisa e
Documentação Histórica Guaianás, diz que as informações são de que ele foi
preso no 44º Distrito Policial, de Guaianases, zona leste paulistana. Porém, há
indícios de que ele foi levado para outro local no período em que esteve sob
poder dos policiais. “No processo, em um dos depoimentos, o rapaz indica que
ele foi retirado daquela delegacia e levado para outro lugar. E aí depois foi
jogado na delegacia, retirado de lá e jogado em qualquer outro canto”, revela a
pesquisadora.
Não há clareza, no
entanto, do local onde Luz teria recebido pancadas e choques elétricos. Mas
existem diversos indícios de que alguns agentes da repressão à oposição
política também atuavam na execução de presos por crimes comuns, como no caso
da acusação feita contra Luz. “As estruturas e os executores estavam muito em
diálogo, eventualmente eram até os mesmos, como o Esquadrão da Morte [grupo de
extermínio], que era um grupo de policiais da Polícia Civil vinculados ao Dops
[Departamento de Ordem Política e Social]”, exemplifica Julia Gumieri.
Não foi identificado,
porém, até o momento que as casas e sítios usados pela repressão tenham
abrigado outras atividades. “Eu não posso afirmar que o Esquadrão da Morte se
utilizou de um desses espaços. Mas, se o Fleury é um delegado da polícia que é
ativo nos processos de extermínio, tortura, e compõe o Esquadrão da Morte,
assim, eventualmente, ele pode usar o mesmo espaço”, pondera a pesquisadora.
Essa rede de imóveis
sem nenhuma ligação formal com o Estado é um aprofundamento dos procedimentos
ilegais e clandestinos que já aconteciam no DOI-Codi e outras instalações
militares. O que só era possível devido às diversas formas de apoio de
empresários ao regime, com cessão de espaços, veículos, financiamento direto e
até vigilância sobre os próprios empregados. A montadora Volkswagen reconheceu
que ajudou a repressão a perseguir os próprios funcionários. O ferramenteiro
Lúcio Bellentani contou que foi torturado dentro do complexo industrial em São
Bernardo do Campo. A empresa fez um acordo de reparação com o Ministério
Público Federal.
·
Doutrina de guerra
A tortura não era uma
novidade para as instituições brasileiras. Na ditadura de Getúlio Vargas, os
opositores também eram perseguidos e presos. “Durante os outros períodos, a
repressão política era uma repressão feita por órgãos oficiais. Prendia, torturava
e soltava”, diz Ivan Seixas. A ditadura instaurada a partir do golpe de 1964,
no entanto, incorporou uma visão de guerra contra a própria população, baseada,
em grande parte, nas guerras coloniais da França na Indochina (Vietnã) e na
Argélia.
“A doutrina da guerra
revolucionária, como os franceses chamavam, foi um elemento-chave para preparar
a organização e a estruturação dos serviços de informação brasileiros, que
foram calcados nos serviços de informações franceses durante a Guerra da Argélia
[1954 a 1962]”, diz o pesquisador Rodrigo Nabuco de Araújo, autor do livro
Diplomates en Uniforme [Diplomatas de Farda], que trata da atuação dos
militares franceses a partir dos serviços de diplomacia no Brasil entre 1956 e
1974.
O nome mais conhecido
por trazer as expertises francesas para o Brasil é o general Paul Aussaresses.
Antes de morrer, em 2013, o oficial reconheceu ter utilizado a tortura para
combater a insurgência argelina. “Ele disse que torturou, que matou, que formou
torturadores, e por isso ele acabou perdendo tudo. Ele perdeu a patente de
general, perdeu o salário de aposentadoria de general. Foi um golpe muito
grande que ele levou depois de ter dito tudo o que disse”, contextualiza Araújo
antes de afirmar que Aussaresses não foi o principal responsável por trazer as
estratégias francesas para o Brasil.
“Tem um outro que é
muito mais insidioso do que o que o Aussaresses que é o Yves Boulnois”, destaca
o pesquisador. Chegando ao Brasil em 1969, o coronel francês ajudou, segundo
Araújo, na estruturação do DOI-Codi e esteve presente nas operações contra a guerrilha
comandada por Carlos Lamarca no Vale do Ribeira. “Ele participou da organização
da operação e depois da supervisão, da análise dos dados que foram colhidos
durante os interrogatórios, durante as torturas”, detalha Araújo a respeito do
papel estratégico de Boulnois.
O coronel chegou ao
Brasil em 1969 como adido militar. Em correspondência enviada ao então ministro
dos Exércitos da França, Pierre Messmer, Boulnois informava sobre os avanços na
estruturação das forças da repressão brasileiras. “Com vários meses de treinamento
adequado, cada unidade é, agora, capaz, independente de qual seja a missão
específica, de participar de uma operação de guerrilha”, escreveu ao superior
em correspondência acessada por Araújo e disponibilizada em seu livro.
·
Hierarquias paralelas
A experiência francesa
de enfrentar guerrilhas em um ambiente urbano, como aconteceu na Argélia,
influenciou, segundo o pesquisador, na criação da Operação Bandeirante, que
reprimiu os grupos armados que lutavam contra a ditadura em São Paulo. “Os
militares do 2º Exército em São Paulo se inspiraram amplamente das sessões
administrativas especiais, que eram organizações civis e militares na Guerra da
Argélia, para estruturar a Operação Bandeirantes e transformar essa experiência
da guerra colonial francesa, na Guerra da Argélia, em algo possivelmente
utilizável no Brasil”, explica Araújo.
“Se inspirou nessa
centralização da informação, que é o caso francês, dessa reunião de civis e
militares em um só comando, e da organização das operações, o que eles chamavam
de hierarquias paralelas. Quer dizer, que você tinha uma rede de comando, uma hierarquia
de comando que vem de cima para baixo, mas você tinha uma hierarquia paralela,
uma organização e uma estrutura clandestina”, detalha o pesquisador.
As teorias dos
militares franceses surgem também da tentativa de entender a derrota para as
forças de libertação das antigas colônias. “Tinha a ver com uma negligência dos
militares da dimensão política e psicológica do conflito”, diz a respeito das
conclusões dos oficiais o coordenador do Laboratório de Análise em Segurança
Internacional e Tecnologias de Monitoramento da Universidade Federal de São
Paulo (Unifesp), Acácio Augusto.
·
O papel da tortura
“Para essa teoria, a
sociedade está dividida em três grupos”, explica o professor. Esse pensamento
estratégico parte, segundo ele, do princípio de que há uma minoria ativa, que
luta contra a dominação colonial, no caso das ex-colônias francesas, ou contra
a ditadura, no caso do Brasil. Há os apoiadores dos processos de dominação e há
“uma grande maioria, que eles chamam de neutra e pacífica, e que está à mercê
de ser conquistada pela causa revolucionária, que deve ser disputada pelas
forças da ordem”.
Por isso, para além do
enfrentamento militar, foi feito, de acordo com Augusto, um esforço para evitar
que o conjunto da população simpatizasse ou apoiasse os grupos de resistência.
Ao mesmo tempo, os grupos de oposição são tratados como inimigos e desumanizados.
“A tortura não era um ato de barbárie, não era um excesso do regime, era a
própria forma de atuação do regime, inclusive gerida cientificamente. A ideia
da tortura era produzir informação”, enfatiza.
O desaparecimento dos
torturados, principalmente os que nunca foram registrados em estruturas
oficiais do Estado, serve, segundo Araújo, a alguns propósitos. Por um lado,
evita a responsabilização e repercussão pública das mortes, enquanto, por outro
desestabiliza os opositores do regime.
“É uma forma de você
criar uma incerteza muito grande em torno do que aconteceu com essa pessoa e
dessa forma de criar uma impunidade em torno das pessoas que cometeram esses
crimes”, diz o pesquisador.
O general francês
Aussaresses, que ficou conhecido pelos cursos relacionados a tortura que
promovia em Manaus, é também, segundo Araújo, protagonista de um evento que
ilustra como a violência era instrumentalizada pelos colonialistas. “Ele
solicitou o estádio de futebol da cidade. Ele torturou os presos em frente uns
dos outros, depois matou todo mundo. Abriu uma vala comum, jogou todos os
corpos ali, jogou cal quente em cima, e em cima disso ele jogou concreto
armado. Quer dizer que não tem como saber quem está enterrado ali. Todos
desapareceram”, conta o historiador sobre os fatos ocorridos na antiga cidade
de Philippeville, atual Skikda, na Argélia.
Fonte: Agência Brasil/O
Cafezinho
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