terça-feira, 2 de abril de 2024

60 anos do golpe: ao não enfrentar a memória, Brasil abre espaço para apropriação da direita, diz ativista

Os 60 anos do golpe empresarial-militar no Brasil, completos neste 1º de abril, chegam em um “momento histórico muito delicado” na avaliação da historiadora Carla Teixeira. Enquanto Lula dá entrevistas dizendo que não vai “remoer o passado” e mantém na gaveta a recriação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos (desfeita na gestão de Bolsonaro), generais quatro estrelas são chamados a depor à Polícia Federal (PF) sobre os atos golpistas de 8 de janeiro

Paralelamente, o Ministério dos Direitos Humanos planejava fazer um evento com o nome “sem memória não há futuro”. Com ar ironicamente premonitório, o título parecia alertar sobre consequências daquilo que a sua proibição, justamente, pode significar. O evento institucional foi vetado pelo presidente Lula (PT). Assim como qualquer outro que faça alusão à ditadura.  

No Senado, parlamentares têm recebido visitas do ministro da Defesa, José Múcio, que tenta costurar acordos para fazer avançar a chamada “PEC dos Militares”. A Proposta de Emenda Constitucional do governo federal, que precisa de três quintos dos votos para ser aprovada, estabelece regras para a entrada de militares na política institucional.  

Ainda em negociação, o texto deve impedir que integrantes das Forças Armadas voltem à carreira militar depois de se tornarem candidatos. No entanto, poderiam seguir sendo remunerados pela instituição.  

“Essa PEC não necessariamente vai garantir a diminuição da participação dos militares na política, porque isso pode se dar de maneira mais sutil”, avalia Teixeira, doutoranda em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Eles têm armas. O que os coloca numa posição de muita superioridade em relação às lideranças políticas da classe civil”, salienta. 

“Por isso eles [os militares] deram um golpe, por isso se mantiveram no poder por 21 anos, por isso tutelaram a transição democrática e garantiram seus privilégios na Nova República. Por isso que, em 2014, quando a Comissão Nacional da Verdade revelou uma parte dos crimes cometidos pela ditadura militar houve tanta grita. Por isso os militares apoiaram o golpe contra a presidenta Dilma, apoiaram a prisão de Lula e não hesitaram em embarcar no governo Bolsonaro (PL)”, elenca Teixeira.  

“O que precisamos é do aprofundamento dos valores democráticos para que a corporação militar esteja subordinada aos interesses da sociedade civil”, opina Teixeira, coautora do livro Ilegais e Imorais: autoritarismo, interferência política e corrupção dos militares na história do Brasil.  

·        Governo Lula e os militares

A resistência da classe militar ao governo Lula 3, logo no seu início, teve como episódio sintomático a recusa do ex-comandante da Marinha, Almir Garnier Santos, a comparecer na posse de seu sucessor para não bater continência ao novo presidente. Santos, depois, seria alvo de busca pela PF por suposto envolvimento no 8 de janeiro.  

“A gente vê, portanto, uma situação em que o governo Lula já começa tendo de conciliar com as Forças Armadas”, descreve Teixeira, para quem atualmente os militares “retomaram um protagonismo que haviam perdido na década de 1980, quando deixaram o poder”.  

Assim, delineia a historiadora, “enquanto o governo Lula concilia, é o judiciário que assume a postura de responsabilização”. O governo, na visão da historiadora, “erra e se acovarda”. Os atos de 8 de janeiro de 2023 são, justamente, “a volta dos que não foram”, caracteriza. “Por não terem sido responsabilizados pelos crimes cometidos durante a ditadura é que há a desenvoltura para que ações como essa aconteçam”, opina.  

Para Teixeira, a posição de Lula “do ponto de vista político é ruim, do ponto de vista histórico é péssima e da construção de uma memória que procure firmar a democracia é absolutamente contraproducente. Reafirma a nossa tradição de uma cultura política de conciliação, acomodação, que visa escamotear os conflitos a fim de estabelecer uma organização social profundamente desigual”.  

Débora Silva é fundadora do Movimento Independente Mães de Maio, nascido em reação aos chamados crimes de maio, quando em 2006 a polícia matou ao menos 429 pessoas em apenas 11 dias. Para ela, que luta contra a violência de Estado dos tempos democráticos, “não se trata de remoer o passado”: “Precisamos ver que o passado está sendo presente. Essa é a diferença. Um país que não tem memória caminha, a passos lentos, dando marcha ré”.   

Citando a letalidade da Operação Escudo e Verão, implementada pela gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) na Baixada Santista desde julho de 2023 e sem data para terminar, Silva salienta que “a polícia de São Paulo aplica, cotidianamente, o AI-5 nas periferias”.  

Desde o seu surgimento, a função das Forças Armadas e dos agentes de segurança do Estado, aponta Teixeira, que é também docente substituta de História do Brasil Republicano na Universidade Federal de Uberlândia (UFU), “foi garantir a ordem e a manutenção da propriedade privada”.  

“E segue sendo. Se engana quem acha que ela serve para proteger os interesses da população brasileira. Infelizmente, as Forças Armadas brasileiras servem para atender aos interesses do grande capital, da grande propriedade e da própria corporação”, resume.  

·        A pouca importância dada ao tema no Brasil

Em setembro de 2023 Flávio Dino, então ministro da Justiça, declarou que o governo criaria um Museu da Memória e dos Direitos Humanos. O anúncio aconteceu no Chile, quando eventos e manifestações marcavam os 50 anos do golpe militar encabeçado por Pinochet contra o governo de Allende.  

Meses depois, na efeméride de 60 anos do caso brasileiro, com um debate público morno a respeito do tema e eventos institucionais vetados, o projeto do tal museu foi abortado. 

Thiago Mendonça, um dos organizadores do Cordão da Mentira — bloco que sai às ruas de São Paulo todo 1º de abril em denúncia à violência estatal dos tempos ditatoriais e democráticos — elenca fatores que explicam a pouca importância dada ao debate da ditadura no Brasil, em comparação a países como Chile e Argentina

“Por um lado, acho que a gente perdeu simbolicamente essa luta ao não conseguir explicitar para sociedade o quão nefasta foi a ditadura. Em grande parte, isso se dá porque a gente não colocou na pauta os crimes contra a população civil que não era privilegiada. Como a população periférica morria a rodo nas mãos dos esquadrões da morte, que eram os mesmos agentes em São Paulo que torturavam como ‘polícia política’, a gente não conseguiu mostrar essa relação”, reflete Mendonça.  

“Em paralelo, enquanto a gente não enfrenta essa memória — e somos aconselhados, inclusive, pela esquerda hegemônica hoje no governo a deixar isso de lado —, a direita se apropria dessa memória como algo positivo”, descreve Thiago Mendonça.   

Em sua visão, trata-se de uma disputa simbólica da qual o Brasil se retirou desde os anos 1980. “Isso vale para as artes, para a discussão acadêmica, mas vale principalmente para a luta dentro dos movimentos sociais, os movimentos de base”, diz o militante.  

“A gente não colocou isso como um foco central. E o preço que a gente paga é que essa memória é apagada e reapropriada pela extrema direita. E aí o buraco em que a gente está se enfiando”, diz Mendonça, ao defender a urgência de “recuperar essa memória como um processo de entendimento coletivo do país e uma prioridade para os movimentos sociais”. 

 

Ø  MPF afirma que 'esquecimento deliberado' dos 60 anos do golpe pode trazer atos como 8 de janeiro

 

Em nota divulgada neste domingo, (31), a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, braço do Ministério Público Federal focado na garantia dos Direitos Humanos, afirmou ser “dever jurídico e moral do Estado” preservar a memória dos 60 anos do golpe empresarial-militar no Brasil e conclama a todos que "regime democrático seja permanentemente valorizado, fortalecido e aprofundado, para que, diante de quaisquer intentos de aventuras autoritárias, possamos sempre repetir: nunca mais".

O órgão também afirma que é “indispensável” a apuração e responsabilização dos crimes contra a humanidade praticados no período ditatorial do Brasil, sob o risco de se repetir iniciativas golpistas como os ataques de 8 de janeiro de 2023. 

“É indispensável a apuração de responsabilidades pelos crimes de lesa-humanidade cometidos entre 1964 e 1985. Sem responsabilização, perde-se o inestimável efeito didático sobre as gerações futuras. A impunidade é estímulo para o arbítrio; a responsabilização, seu freio”, diz o texto, que vincula ainda a falta de punição e apuração dos crimes cometidos no regime ditatorial aos ataques golpistas de 8 de janeiro  

“As tentativas, após as eleições gerais, de ações antidemocráticas em Brasília, em dezembro de 2022, seguidas da invasão das sedes dos Poderes da República, em 8 de janeiro de 2023, comprovam que o esquecimento deliberado, os segredos e a ocultação da história se mostram incompatíveis com a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, o pluralismo político, o acesso à justiça e o direito à informação, incentivando a impunidade”, segue o texto. 

Provas de crimes e ‘real conciliação’ 

Assinado pelo procurador-federal dos Direitos do Cidadão, Carlos Alberto Vilhena e por outros oito integrantes do MPF que participam do Grupo de Trabalho da instituição “Memória e Verdade”, o texto foi divulgado neste domingo em meio à determinação do presidente Lula de não se promover atos oficiais do governo para rememorar os 60 anos do golpe. A medida conciliatória foi determinada pelo presidente em meio ao avanço das investigações da Polícia Federal sobre o envolvimento de militares na tentativa de golpe para manter Jair Bolsonaro no poder em 2022. 

“É dever jurídico e moral do Estado preservar o registro do que houve naquele tempo. Verdade e memória integrais representam elementos imprescindíveis na construção de uma sociedade plural”, diz a nota que aponta ainda que a verdadeira conciliação demanda “memória”. 

“Nossa democracia não será plenamente estável sem o conhecimento, a análise e a discussão acerca das ações e omissões dos envolvidos no regime de exceção, bem como das consequências delas decorrentes. A real conciliação demanda, no lugar do esquecimento, a memória”. 

No documento, os procuradores ainda afirmam que estão amplamente documentados a perseguição e os crimes cometidos pelas autoridades da ditadura contra estudantes, professores, trabalhadores, empresários, políticos, membros de comunidades tradicionais e das Forças Armadas, servidores públicos, membros do clero, homens, mulheres e crianças de todas as regiões do país.  

Chamados de crime de lesa-humanidade por sua natureza atroz, alguns crimes como a tortura e o desaparecimento de presos políticos provocado por autoridades não prescrevem e, por isso, o Ministério Público Federal, vem apresentando denúncias e ações de reparação contra militares envolvidos nestes episódios. Dentre os crimes, os procuradores listam "homicídios, torturas, estupros, sequestros, ocultações de cadáver e abusos de autoridade". A nota, porém, não menciona especificamente o nome de nenhuma autoridade que foi acusada de participar destes crimes. 

“Nossa democracia não será plenamente estável sem o conhecimento, a análise e a discussão acerca das ações e omissões dos envolvidos no regime de exceção, bem como das consequências delas decorrentes. A real conciliação demanda, no lugar do esquecimento, a memória”, diz o texto. 

Por fim, o texto ainda lembra que a falta de respostas efetivas do Estado brasileiro aos crimes cometidos no período militar prejudicam a imagem do país internacionalmente e que a Corte Interamericana de Direitos Humanos já reconheceu a omissão do Brasil sobre o período ditatorial em duas sentenças, e deve julgar em breve um terceiro caso. 

“Uma postura amnésica e inerte do Estado, que não tenha um olhar firme sobre o passado, prejudica a imagem do Brasil perante a comunidade internacional, contraria a tradição nacional de respeito aos direitos humanos nas relações internacionais e sujeita o país a sanções perante Cortes Internacionais”, segue o texto. 

 

Ø  Cordão da Mentira saiu às ruas em rechaço à ditadura, à tentativa de golpe de 2023 e à brutalidade policial

 

Nesta segunda-feira (01/04)), quando o golpe empresarial-militar no Brasil completou seis décadas, o Cordão da Mentira — bloco que denuncia a violência estatal dos tempos ditatoriais e democráticos — saiu às ruas de São Paulo. O ato, organizado por grupos de teatro, musicistas, ativistas e familiares de vítimas de agentes do Estado, saiu às 17h em frente ao Centro Universitário Maria Antônia.

Com o mote “De golpe em golpe: tá lá um corpo estendido no chão”, o cordão busca conectar a memória e a crítica dos anos de chumbo, da tentativa bolsonarista de golpe em 2023 e do constante genocídio praticado pela polícia nas periferias. 

“Todos os golpes que a gente viveu ao longo da história do Brasil são contra a classe trabalhadora e aquelas e aqueles que se insurgem contra esse nefasto projeto de nação”, caracteriza o ator e diretor teatral Osvaldo Pinheiro, um dos organizadores do Cordão da Mentira desde a sua criação em 2012. 

·        "Ditadura continuada" 

Tendo também integrado o bloco em todas as edições, Thiago Mendonça afirma que a pauta principal de 2024 é “como os 60 anos do golpe refletem no cotidiano brasileiro”.   

A data chega, justamente, enquanto o governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) implementa na Baixada Santista a mais letal operação institucional da Polícia Militar paulista desde o massacre do Carandiru, em 1992. Apenas na fase mais recente da Operação Verão, intensificada em 7 de fevereiro após a morte do sargento da Rota Samuel Wesley Cosmo, a polícia matou 53 pessoas. Somada com a Operação Escudo, do ano passado, a letalidade chega a 81.  

“A lógica dos esquadrões da morte se tornou uma forma cotidiana do Estado agir sobre as periferias, como contenção de qualquer possibilidade de revolta em relação à extrema desigualdade social que a gente vive no país. Esse é o centro da discussão, colocando em destaque o massacre que a gente está vivendo agora no litoral paulista”, destaca Mendonça. 

Débora Silva fundou o Movimento Independente Mães de Maio como reação a outro dos tantos massacres cometidos desde a redemocratização. Os chamados Crimes de Maio, ocorridos em 2006, não foram uma operação institucional como essa de agora, mas igualmente cometidos por agentes do Estado. Entre 12 e 19 de maio daquele ano, ao menos 429 foram mortas. Entre elas, o filho de Débora Silva. Nos dias que se seguiram, a cifra aumentou.  

“Não se trata de ‘remoer o passado’”, diz Silva, se referindo a uma fala recente do presidente Lula (PT) sobre os 60 anos do golpe, em que diz que a ditadura “já é passado” e que “é preciso tocar o país para frente”. Trata-se, ressalta ela, “de dizer que o presente não vai aceitar essa ditadura continuada”.  

Dezoito anos depois, os Crimes de Maio ainda não foram solucionados. Também por isso, serão pauta do Cordão da Mentira. “São anos permeados por um passado sombrio. Vários inquéritos foram arquivados, não teve responsabilização. E o judiciário vergonhosamente usa sua caneta para pedir o arquivamento de crimes não investigados. E assim eles nos matam de novo, quantas vezes for possível”, denuncia Débora Silva.  

·        "Escovar a história à contrapelo"  

“Nós nunca saímos da rua. E estaremos na rua de novo, para dizer basta”, garante militante. Para ela, “a memória é o carro chefe para nos conduzir ao pertencimento. E um país sem memória é um país que cai ladeira abaixo”.

Na visão de Pinheiro, mais conhecido como Osvaldinho, o Brasil vive um projeto de apagamento de histórias e memórias “muito bem feito, a ponto de a grande maioria da população não estar muito ciente da gravidade dos fatos. Por mais que a coisa aconteça muito perto, é como se aquilo não fizesse parte, não lhe dissesse respeito”.

Citando uma frase do filósofo Walter Benjamin, Osvaldinho diz que “é preciso escovar a história à contrapelo. No Cordão essa é a nossa tentativa. De não naturalizar que essas vidas tenham tombado por causa de um projeto excludente”.

“E fazemos isso de muitas formas. Às vezes através de uma canção, uma cena, uma performance. E não se utiliza só do drama, mas tem momentos cômicos, com uma pitada de sátira e por aí vai”, explica.

Participaram da ala musical do Cordão os músicos Douglas Germano, Roberta Oliveira, Bel Borges, Renato Martins e Selito SD, entre outros. O samba enredo do Cordão da Mentira neste ano cita o genocídio palestino cometido por Israel na Faixa de Gaza, a seletividade racista do encarceramento em massa e homenageia militantes das lutas sociais brasileiras.

 

Fonte: Brasil de Fato

 

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