O que
significa o Movimento Sem Anistia
A Operação
Tempus Veritatis, deflagrada na quinta-feira (8) pela Polícia Federal tem
significado prático importante. Ele desvela que a cúpula bolsonarista e sua
extensa rede não só planejava como efetivamente dava andamento a um plano
golpista para sabotar a democracia e permanecer no poder. Contudo, questões
relacionadas aos mandados cumpridos e àquilo que os cerca dialogam com a
história recente e não tão recente do país.
Ver
oficiais militares presos e generais serem alvo de medidas cautelares e
mandados de busca e apreensão não é algo comum. Tampouco é algo rotineiro se
tonarem públicos dados que denunciam seu envolvimento com uma trama forjada
contra o Estado Democrático de Direito, incluindo trocas de mensagens e falas
constrangedoras. Com um conjunto probatório denso, é pouco provável que vários
deles – incluindo generais – escapem a julgamento e eventual condenação.
Pode
parecer pouco. Muitos estudiosos da área militar apontam que as Forças Armadas,
em especial o Exército, aceitariam rifar alguns dos seus em nome de preservar a
instituição, uma forma de atribuir os desmandos a desvios de conduta
individuais. A análise é correta e inclusive conta com o apoio de parte da
mídia comercial, com jornalistas sempre dispostos a retratar os “humores” da
caserna como se pessoas fossem, falando de seus “incômodos”, “insatisfações” e
lamentações que têm se tornado bastante comuns nos últimos tempos.
Por outro
lado, o Brasil é aquele país que, como diria o jurista Sobral Pinto, “os
militares, tendo proclamado a República, julgaram-se donos da República. E
nunca aceitaram não serem os donos da República”. Ao contrário dos vizinhos que
também passaram por ditaduras militares, aqui não efetivou uma Justiça de
Transição que responsabilizasse os algozes do regime democrático que assaltaram
o poder em 1964 e nem seus inúmeros torturadores. Agora, pode-se ver alguns
daqueles que negam mesmo a existência do regime de exceção serem
responsabilizados por tentarem a implantação de outro governo autoritário.
Se nem de
longe chega a ser o ideal, seu julgamento e eventual prisão é um passo adiante
que abre oportunidades para que a instituição seja cobrada não só pelo poder
político, mas por toda a sociedade. Afinal, que “legalistas” são estes que
convivem tranquilamente com arquiteturas de planos golpistas sem denunciá-los?
Ou que sequer vazam tais informações pra profissionais da mídia próximos – e
sabemos que há tantos… Ao que parece, muitos poderiam ser considerados
legalistas de ocasião, mais preocupados com a impossibilidade de se concretizar
uma ruptura institucional pela falta de condições efetivas do que por
compromisso com os princípios democráticos.
A mesma
comodidade ao conviver de perto com o golpismo tão escancarado sem nada fazer,
aliás, vale para civis, como os ministros – entre eles Paulo Guedes – que
estavam na reunião de 5 de julho de 2022.
O fato é
que pessoas presentes neste encontro representavam as Forças Armadas ou faziam
a interlocução com elas em nível institucional. O ministro da Defesa Paulo
Sérgio Nogueira, por exemplo, disse: “senhor Presidente eu estou realizando
reuniões com os Comandantes de Força quase que semanalmente. Esse cenário, nós
estudamos, nós trabalhamos. Nós temos reuniões pela frente, decisivas pra gente
ver o que pode ser feito; que ações poderão ser tomadas pra que a gente possa
ter transparência, segurança, condições de auditoria e que as eleições se
transcorram da forma como a gente sonha!”
Nesse
sentido, um ponto pouco notado que consta no relatório da Polícia Federal diz
respeito à nota assinada pelos comandantes em 11 de novembro, sem assinatura do
ministro da Defesa, o que teria sido feito para explicitar que era um
posicionamento das Forças Armadas. A PF relata que, segundo Mauro Cid, foi um
documento importante “para fins de manutenção e intensificação das
manifestações antidemocráticas, em vista do suposto respaldo das Forças Armadas
ao movimento”.
Para quem
não se recorda, o texto à época foi visto como um endosso aos acampamentos
golpistas e uma justificativa para a inação fardada diante deles. “A
Constituição Federal estabelece os deveres e os direitos a serem observados por
todos os brasileiros e que devem ser assegurados pelas Instituições,
especialmente no que tange à livre manifestação do pensamento; à liberdade de
reunião, pacificamente; e à liberdade de locomoção no território nacional”,
dizia. “Assim, são condenáveis tanto eventuais restrições a direitos, por parte
de agentes públicos, quanto eventuais excessos cometidos em manifestações que
possam restringir os direitos individuais e coletivos ou colocar em risco a
segurança pública; bem como quaisquer ações, de indivíduos ou de entidades,
públicas ou privadas, que alimentem a desarmonia na sociedade.”
É
necessário entender esta nota dentro deste novo contexto. Como o documento
envolve as Forças Armadas, delas deveria se cobrar um posicionamento.
• Forças Armadas e a política
Se uma
parcela da opinião publicada exigia uma “autocrítica” do PT em dado momento da
história nacional, é chegada a hora de vermos o mesmo vigor destes em cobrar
uma mais que tardia autocrítica dos militares. Embora sua participação na vida
política brasileira nunca tenha sido algo velado, o governo Bolsonaro mostrou o
grande mal causado ao país e à própria instituição, com generais como Eduardo
Pazuello ocupando um cargo-chave, o Ministério da Saúde, em um momento crítico
como a pandemia de covid-19.
Em vista
disso, mas não só, é necessário que se discutam formas de evitar novos
episódios como este e tantos outros similares. Tramita na Câmara dos Deputados
uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 21/21, de autoria da ex-deputada
federal Perpétua de Almeida proibindo que militares da ativa ocupem cargos de
natureza civil na administração pública. Em setembro de 2023, ele recebeu
parecer de admissibilidade pela relatora, Sâmia Bomfim (PSOL-SP), na Comissão
de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados, mas sua
tramitação segue parada.
“É
imperativo emendar a Constituição para ampliar seu alcance democrático e
republicano em relação ao necessário distanciamento dos militares das funções
de governo. Aprimora-se, dessa forma, o modelo constitucional de isenção e
apartidarismo das Forças Armadas, bem como a natureza civil da ocupação
política do Estado mediante eleições livres, universais e periódicas”,
justificou, na ocasião da apresentação do seu projeto, Perpétua de Almeida.
Em
novembro, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado (CCJ) aprovou a
Proposta de Emenda à Constituição 42/2023, um texto proíbe militares na ativa
de se candidatarem em eleições. O militar federal que se candidatar a um cargo
eletivo, de acordo com o projeto, será automaticamente transferido para a
reserva não remunerada, no registro da candidatura, ou para a reserva
remunerada se tiver mais de 35 anos de serviço. A PEC deve ser votada depois do
carnaval e merece toda a atenção da sociedade civil, já que seus opositores
estão tentando protelar a sua aprovação.
São duas
medidas que, se aprovadas, delimitam a atuação dos militares que se expandiu de
forma quase irrestrita durante a gestão Bolsonaro. Uma forma, inclusive, de
preservar a própria instituição e adequar seu papel ao que prevê a
Constituição.
Não é
possível cultivar qualquer ilusão de que um passivo histórico possa ser
resolvido em uma canetada ou de forma rápida e fácil. Mas se existe uma lição e
um legado de todo o processo de apuração daquilo que envolveu o 8 de janeiro –
hoje entendido como uma peça de uma trama maior de tentativa de ruptura
institucional – é que o Brasil não tem o direito de deixar de lado a
responsabilização dos agentes do Estado que agiram contra a democracia, como
fez no passado. Nem de fechar os olhos para as mudanças estruturais que devem
ser feitas para tornar seu arranjo democrático menos permeável a tentativas de
ruptura. Uma janela de oportunidades está aberta.
Fonte: Por
Glauco Faria, em Outras Palavras
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