Imagem do
orixá Exu como ser do mal e assustador é desmistificada
Considerado
por muitos como um ser “assustador”, o orixá Exu, cultuado nas religiões de
matrizes africanas, está fortemente ligado ao negro brasileiro e à sua
história. “É possível, inclusive, melhor compreender o Brasil ao entendermos
esse orixá”, afirma a educadora Lisandra Pingo, que estudou as características
de Exu e suas representações em canções brasileiras. Além de entender a
história do negro brasileiro, o estudo também mostra a necessidade de inclusão
das culturas africana e afro-brasileira no ensino público. A pesquisa Uma
análise das múltiplas faces de Exu por meio de canções brasileiras:
contribuições para reflexões sobre o ensino da cultura e da história africana e
afro-brasileira na escola foi apresentada na Faculdade de Educação (FE) da USP,
em 2018.
Segundo
Lisandra, a melhor compreensão de Exu poderá ser ainda uma ferramenta de
combate ao racismo. “Em minha pesquisa procurei desconstruir a imagem negativa
que foi associada a este orixá”, justifica.
Com base
em bibliografias e num acervo de 72 canções que citam Exu, das quais sete foram
selecionadas para o estudo, a pesquisadora identificou diversas situações que
fizeram de Exu um ser malvisto em quase todas as camadas da sociedade
brasileira. “As canções são todas de autores brasileiros que trazem diferentes
representações do Exu”, descreve.
Para a
pesquisadora, o uso das canções que citam a “entidade” facilita a compreensão e
reflexão sobre o papel do orixá e suas significações. “Creio ainda que seja uma
boa ferramenta a professores no sentido de desmistificar aspectos negativos de
Exu e incentivar a disseminação do conhecimento da cultura de origem africana
nas escolas, o que estaria de acordo com as Leis 10.639/03 e 11.645/08”, avalia
Lisandra.
• Exu e o demônio
Um dos
fenômenos que a pesquisa analisa é a associação feita do Exu com o demônio
cristão. “Tal associação foi feita pela Igreja católica e, posteriormente,
pelas igrejas evangélicas”, explica a professora, ressaltando que, atualmente,
aconteceu uma espécie de “reapropriação” dessa atitude, principalmente pelas
igrejas neopentecostais. “É comum observamos nesses templos cultos exclusivos
para a expulsão dos demônios, ou do Exu”, descreve.
O estudo
também aborda aspectos históricos da questão. “O padre José de Anchieta, por
exemplo, trazia o ‘diabo cristão brasileiro’ diferente do ‘diabo cristão
europeu’. O primeiro era visto como um ser debochado e zombeteiro, que se
aproxima à figura do Saci”, conta. Já o segundo, o europeu, era ‘soturno’ e
‘horrendo’, como cita a professora em seu estudo. “A Igreja católica também
atribuía as qualidades do ‘diabo cristão brasileiro’ aos índios e aos
africanos”, ressalta. E Exu, segundo a pesquisadora, está relacionado a esta
personalidade e, principalmente, ao negro.
A
identificação de Exu com o negro brasileiro também é devido aos aspectos que
esse ‘demônio cristão brasileiro’ ganhou na visão da Igreja católica, de ser
zombeteiro e debochado, por exemplo. “São aspectos da época de colonização que
reforçam, desde então, a relação entre Exu e o racismo”, enfatiza Lisandra. Ela
lembra ainda que, a partir da criação da umbanda, no ano de 1917, o estereótipo
de Exu aproxima-se ainda mais do brasileiro. “Principalmente nas figuras de
José Pelintra e da Pomba Gira, aqueles que conseguem dar um jeitinho em tudo”,
destaca Lisandra.
• Definições de Exu
Lisandra
reproduz em seu estudo uma definição do Exu que consta no livro Exu e a Ordem
do Universo, de autoria de Sikirù Sàlámi e Ronilda Iyakemi Ribeiro.
“Exu é
personagem controversa, talvez a mais controversa de todas as divindades do
panteão iorubá. Alguns o consideram exclusivamente mau, outros o consideram
capaz de atos benéficos e maléficos e outros, ainda, enfatizam seus traços de
benevolência. […] As muitas faces da natureza de Exu acham-se apresentadas nos
odus e em outras formas de narrativa oral iorubá: sua competência como
estrategista, sua inclinação para o lúdico, sua fidelidade à palavra e à
verdade, seu bom senso e ponderação, que propiciam sensatez e discernimento
para julgar com justiça e sabedoria. Essas qualidades o tornam interessante e
atraente para alguns e indesejável para outros.”
As
análises das canções brasileiras escolhidas permitiram a Lisandra algumas
definições bem semelhantes do orixá. “Em algumas casas das religiões africanas
e afro-brasileiras, Exu é o sentinela e protetor”, afirma. Mas ele também
assume, em algumas canções, características de uma espécie de mensageiro entre
os orixás e o ser humano.
• Escravizado por orixás
Até mesmo
na umbanda, em alguns casos, ele também é visto como o diabo, pois chegou a ser
escravizado pelos próprios orixás. “Sabemos, por exemplo, que existe na umbanda
o Exu de Iemanjá”, cita a pesquisadora. Há, ainda, em outras músicas, a
identificação do orixá com o feminino, na figura da pomba gira e a definição
que o considera um “forte trabalhador”.
Desde
2015, quando iniciou sua pesquisa, Lisandra vem analisando e estudando canções
que têm Exu em suas letras. Mas a primeira canção que chamou a atenção da
pesquisadora foi uma em que o “diabo era branco”. “A música interpretada pela
cantora argentina Mercedes Sosa retratava o diabo como um ser branco. E isso me
despertou a questionar por que no Brasil ele era associado ao negro? Teria algo
a ver com um sentimento racista?”, recorda a pesquisadora.
Nas
canções estudadas, Lisandra analisa as associações feitas a Exu. Nas canções
Gênesis e Tiro de Misericórdia, observa-se a essência da malandragem.
Interpretada por João Bosco, a obra é de autoria do próprio cantor e Aldir
Blanc; Na canção Quem me Guia, está implícita a figura do Zé Pelintra e a
reinterpretação do malandro. Os intérpretes são Almir Guineto e Beto Sem Braço,
que compôs a canção em parceria com Serginho Meriti.
• Lugares sociais
Na canção
Lado B Lado A, que tem a interpretação de O Rappa, fica explícita a relação Exu
e Iemanjá. Os autores são Marcelo Yuka e Marcelo Falcão. Já na canção Só o Ôme,
de Edenal Rodrigues, observa-se a figura do Exu protetor, a magia e o trabalho.
O intérprete é Noriel Vilela. A figura de Exu, Pomba Gira e a feminilidade
surgem na canção Labareda, interpretada por Baden Powell, que compôs a peça com
Vinicius de Moraes. Na canção Exu nas Escolas, temos a figura do Exu mensageiro
e seu papel nas escolas. A música de Kiko Dinucci e Edgar é cantada por Elza
Soares.
“As
canções analisadas, com suas linguagens, musical e literária, ampliaram os ecos
históricos e culturais que desenharam os lugares sociais de Exu no Brasil”,
define a pesquisadora. Paralelamente à pesquisa, Lisandra escreveu o livro
Negritude (en)cantada do Brasil – A trajetória sociocultural do negro narrada
pelas canções brasileiras, em que analisa como os afrodescendentes fizeram
parte da construção da sociedade brasileira pelo viés da canção.
Fonte:
Jornal da USP
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