Governo
Lula e os desafios das relações com os militares
A relação
entre militares e o governo Lula segue em disputa um ano após os atentados
de 8 de janeiro na Praça dos
Três Poderes em Brasília. Apesar da relevante vitória de Lula, da ameaça de
golpe e da desarticulação de novas tentativas (embora contextos externos e da
viabilidade do próprio movimento sejam mais determinantes para esse
desdobramento do que a atuação do governo em si), não observamos uma agenda de
mudanças nas relações com as forças de segurança pública e militares. Ao
contrário, após alguns ensaios frustrados de alterações políticas e
institucionais, a forma de condução e mediação com esses setores permanece
praticamente inalterada. O risco desse cenário é que além de possibilidades
autoritárias e ameaças de ruptura institucional, mantemos a extrema direita em
movimento. No Brasil, diferente de outros lugares no mundo, a ameaça fascista
está diretamente relacionada com a sua aderência às forças de segurança
militarizadas. Sem desmontar uma, não acabaremos com a outra.
O tema dos
aparatos militarizados e das Forças Armadas não foi prioridade da equipe de
transição, não havendo uma agenda concreta de desmilitarização do Estado pelo
governo. E, após o 8 de janeiro, pouca coisa se alterou, apesar de algumas
mudanças e tentativas de ampliação do debate e de possíveis reformas sobre o
tema.
As
questões que os atentados do 8 de janeiro levantaram ainda permanecem em
aberto. A primeira delas diz respeito à responsabilização da cadeia de comando
que organizou os atentados e os financiou, tanto de civis quanto de militares.
A segunda, está diretamente ligada à extensão de um processo de
redemocratização do Estado brasileiro, em outras palavras, à necessidade
urgente de desmilitarização do Estado e da sociedade, a partir de uma agenda
concreta de reformas e alterações profundas institucionais, políticas e
culturais. É necessário reabrir a ferida, nunca cicatrizada, do papel que
militares permaneceram exercendo mesmo após o restabelecimento da democracia no
Brasil. Portanto, a bandeira democrática que levou à vitória de Lula não pode
ser desarticulada e realmente superada, sem a realização de uma agenda de
mudanças sobre as forças de segurança no Brasil, envolvendo, sobretudo, as
Forças Armadas, polícias (militares em especial) e sistemas de inteligência.
·
Os antecedentes do 8 de janeiro e as
consequências imediatas dos atentados
O 8 de
janeiro deixou evidente que há uma extrema direita golpista com características
fascistas e autoritárias. Após o 2º turno das eleições de 2022 com a eleição de
Lula, Bolsonaro e seus seguidores buscaram questionar a legitimidade do pleito
e construir um movimento golpista. Em verdade, anteriormente a própria
realização das eleições, já havia um questionamento acerca da lisura das urnas
eleitorais, realizada por Bolsonaro e sua máquina de desinformação,
que conseguiu introduzir militares também na comissão eleitoral de
acompanhamento do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para realizar esse
questionamento e depois validar ou não o resultado eleitoral. Já no 7 de setembro de 2021, o tema
central da agenda da extrema direita era a confiabilidade das urnas, tendo sido
realizado poucos dias antes a votação no Congresso do projeto para tornar
obrigatório o voto impresso, que contou, inclusive, com um desfile militar fora
de lugar para pressionar os parlamentares. Foi, portanto, construído por quase
dois anos a narrativa no séquito bolsonarista, de que uma eventual derrota de
Bolsonaro seria resultado de fraude eleitoral.
Sendo
assim, a liderança do movimento de questionamento eleitoral advém diretamente
do centro do governo de Bolsonaro e de sua mobilização permanente nas redes
sociais. Ademais, os acampamentos realizados desde o final do segundo turno em
frente aos quartéis foram incentivados por lideranças da extrema direita e
autorizados pelo ex-governo e pelas Forças Armadas, que deram proteção aos
manifestantes pró- intervenção militar. Portanto, o contexto do 8 de janeiro,
ainda com a existência de tais acampamentos, era dirigido e organizado por
lideranças de extrema direita e pelo próprio Bolsonaro (que optou por uma
postura de vítima após as eleições, tentando dissociar sua política das
atitudes golpistas de seus eleitores) e, sobretudo, com aval da cúpula militar
e adesão de militares (policiais ou agentes) na base do movimento. Basta
lembrarmos que após as invasões do dia 8, o refúgio dos manifestantes, após a
dispersão realizada pela Polícia Militar do Distrito Federal, foi exatamente um
quartel das Forças Armadas, que só após pressão, inclusive judicial, realizou a
dispersão. Ademais, o possível envolvimento do governador do DF, Ibaneis Rocha,
e do secretário de Segurança Pública do DF e ex-ministro da justiça e segurança
pública de Bolsonaro, Anderson Torres, ainda permanece sem maiores implicações,
pois apesar do afastamento temporário de Ibaneis, esse já retornou ao cargo de
governador e Anderson Torres já se encontra solto.
Se
analisarmos os movimentos de extrema direita no Brasil, será evidente essa
relação com esses aparatos e os atentados de 8 de janeiro. O Gabinete de
Segurança Institucional (GSI)[1] teve
papel importante na falha de segurança do Planalto. Na apuração do 8 de
janeiro, após a divulgação de uma série de imagens, o chefe de segurança
institucional, general Gonçalves Dias, se desligou do cargo em abril e mais de
80 funcionários, que aparentaram não agir com a finalidade de evitar a invasão,
também foram exonerados. A proximidade e identidade das forças do GSI com os
manifestantes golpistas restou evidente. O GSI chegou a ter seu status rebaixado,
tendo em vista que parte das suas atribuições foram divididas com a polícia
federal (disputa que ainda permanece) e
um civil assumiu interinamente o cargo, o secretário executivo do Ministério da
Justiça e Segurança Pública, Ricardo Campelli (que também foi interventor do DF quando do afastamento judicial
de Ibaneis).
No
entanto, embora a ocupação da chefia do GSI por civil fosse uma resposta, já
assumiu, novamente, um militar na pasta, o general Marco Antonio dos Santos. A
importância desse gabinete é que, além de lidar com a segurança e inteligência
do Planalto, a Abin também fica subordinada a ele. E, historicamente, mesmo
após a natureza civil do principal sistema de inteligência do país, esse
continua sendo controlado pelos militares. O papel da Abin durante o governo
Bolsonaro tem sido agora objeto de inquérito investigativo,
demonstrando que juntamente com a PF e o Ministério da Justiça, várias
pessoas opositoras do governo Bolsonaro, foram monitoradas indevidamente.
·
Reações da sociedade e avanços desde o 8 de
janeiro
Durante
2023, foram observadas manifestações dos setores sociais com a bandeira “Sem
Anistia” (setores esses que que inclusive realizarão manifestações em todo o
país neste dia 8/1), inclusive com um ato organizado pela defesa da democracia
na Explana. Porém, apesar de simbólicos e contribuírem na disputa política,
esses movimentos importantes da sociedade civil, não conseguiram manter uma
agenda de mobilização que pudesse contribuir para a punição de agentes
militares. Chegou a ser cogitada proposta de emenda constitucional para alterar
as atribuições das Forças Armadas e proibir também que militares da ativa
pudessem ocupar cargos públicos no governo. Também não foi para frente essa
proposta por dificuldades de articulação com o Congresso, que mantém um perfil
conservador.
A CPI dos
Atos Golpistas no Congresso Nacional foi um elemento de disputa constante entre
governo e oposição, não sendo possível para os bolsonaristas sustentar a
narrativa de culpa do governo para além de sua base social. O governo foi
vitorioso na CPI e conseguiu apurar a tentativa de golpe com a promoção de
alguns desgastes para a extrema direita. Ela teve em seu relatório final,
Bolsonaro indiciado e a indicação da relevância de militares nos atentados.
O STF
tornou réus mais de 250 denunciados nos atos golpistas do 8 de janeiro e ainda
há 66 pessoas presas por participação nos atos golpistas. Os principais
problemas relacionados ao inquérito são a apuração de mandantes e
financiadores. Embora importantes essas responsabilizações, elas não atingem o
centro do movimento golpista e, muito menos, a cadeia de comando.
·
Lula e os militares alguns pontos atuais e
de governos anteriores
A nomeação
do ministro da Defesa Múcio significou uma tentativa do governo Lula de
mediação com os militares, de um diálogo que pressupõe um tipo de defesa que
busca utilizar a mesma estratégia do Governo Lula I e II, que é valorizar os
militares e colocá-los em agendas fora da política. Ele teve uma postura muito
protetiva em relação ao envolvimento de militares no 8 de janeiro e contribui
para uma pretensa normalidade que, em verdade, impede processos de
democratização das Forças militares (o episódio das pensões e revisões de
outros privilégios de militares é só um exemplo disso).
Essa
política de conciliação no governo Lula I e II, tem como situação ilustrativa
a incursão no Haiti MINUSTAH (sigla derivada do francês: Mission des
Nations Unies pour la Stabilisation en Haïti) que foi uma tentativa de gerir os
militares para agendas internacionais relacionadas com a Defesa, e acabou sendo
fundamental para a criação do núcleo duro de Bolsonaro (Heleno, Ramos,
Tarcisio..) e para a politização dos comandantes das Forças. Essa estratégia de
aumentar os gastos com defesa e viabilizar aumento para as forças de segurança
(vide o atual aumento das polícias federais), é um grande equívoco. Não há
mediação possível nesses termos, não é viabilizando mais dinheiro que se
apaziguará as forças de segurança, que possuem já um projeto político que passa
pela valorização corporativa, mas não se resume a isso.
Essa
leitura equivocada, de possível neutralização das forças de segurança, acaba
atribuindo mais poder e reconhecimento para instituições que agiram ilegalmente
nos últimos anos (inclusive com promoção de chacinas cotidianas de genocídio da
população negra e periférica do país), e fizeram parte de um processo de
construção autoritária. A questão não são os aumentos em si, mas a sua
ocorrência sem um balanço e mudanças estruturais nessas forças. O mesmo caminho
tem a nova Lei Orgânica das PMs e dos Bombeiros, que contaram com a sanção presidencial em dezembro de 2023. A
referida lei reduz a autonomia dos Estados em relação as PMs, das ouvidorias e
de uma série de conexões institucionais mais relacionadas a política da
guerra e do inimigo interno. Causa
espanto a sanção do presidente mesmo após o envolvimento das polícias na base
orgânica de Bolsonaro (inclusive com participação armada de PMs em atos ligados
ao ex-presidente), e do PL ser uma articulação da base bolsonarista no
Congresso e tenha havido resistência dos movimentos sociais.Até mesmo a utilização do instrumento de GLO já foi realizada
por Lula em 2023, com a sua utilização em portos e aeroportos para o combate ao
crime organizado. Mesmo tendo tido receio de aplicá-la para conter o 8 de
janeiro e com isso acabar promovendo uma adesão de militares, esse instrumento
atípico de atribuição de poder de polícia às Forças Armadas, também continua a
ser empregado como natural e democrático para ações na área da segurança
pública. Não deveria existir GLO, ela foi produto de chantagem na Constituinte,
é uma ferramenta de poder indevido dos militares na política brasileira e vem
sendo usada à exaustão por todos os governos desde 89. Mas seu uso no contexto
atual, por setores democráticos, após a imensa politização das forças,
demonstra que no tema de Segurança Pública e relação com militares, é
necessária uma guinada, uma mudança profunda da postura do governo e dos
setores progressistas.
·
Os militares como espinha dorsal da
articulação da extrema direita brasileira
Em
verdade, é importante frisar o papel central que os militares e o aparato de
militarização tiveram na consolidação e disputa de hegemonia da extrema direita
brasileira. O caminho percorrido até a eleição de Bolsonaro e durante seu
governo, passou pela retomada do protagonismo político público das Forças
Armadas. O Golpe de 2016, que firmou Temer na presidência, teve também a
articulação de setores militares, centralmente: A retomada do ministério da
Defesa pelos militares (o que não ocorria desde a criação do mesmo em 1999), as
alterações legislativas que reviam medidas do governo Dilma de controle sobre
atribuições militares, a alteração da legislação de Temer sobre julgamento de
militares em operações de GLO em caso de crimes contra a vida que passaram à
Justiça Militar, a articulação da candidatura de Bolsonaro (que contou além de
sua própria relação, com um vice das Forças Armadas da reserva), o tweet do
Villas Boas, que passou pelo Estado Maior do Exército também, pressionando o
Supremo para manter a prisão de Lula (retirando ele do pleito eleitoral de
2018) e a composição e aparelhamento do governo Bolsonaro que contou com o
maior número de ministros desde a Ditadura (e mais que alguns governos
militares) e com cerca de 7 mil militares em cargos no governo federal; o
aparelhamento da Polícia Federal (e rodoviária), do MP e da Abin (sistema de
inteligência) .
Ademais,
toda a lógica implementada durante o governo Bolsonaro se refere a um patamar
de aprofundamento da militarização da sociedade. A liberalização de armamento
para civis e a apologia ao uso de armas e da violência como linguagem estatal,
o aumento da política de extermínio nas periferias, com chacinas e legitimação
de operações militares, o processo de milicianização e nacionalização desse
modelo, o envolvimento de militares (policiais e membros das FA) nas
manifestações políticas do governo, o programa de escola cívico militar adotado
ainda hoje por vários Estados, dentre outros. A política do ódio gerida pelo
governo e aparato estatal (que incluía inimigos de outros poderes como o STF),
que disputa ainda hoje as narrativas necessárias à justificativa de inúmeros
escândalos de corrupção envolvendo a família Bolsonaro.
É evidente
que a extrema direita e o movimento que culminou no 8 de janeiro é mais amplo
do que os setores militares e militarizados. Todavia, a extrema direita
brasileira está indissociavelmente ligada aos militares, suas estratégias e
aparatos. Não apenas as suas faces mais institucionais, mas também aos diversos
aparatos semi estatais que esses setores desenvolveram no último período. Esse
não é um traço constitutivo do movimento de extrema direita mundial, mas, no
Brasil, essa relação é simbiótica. E, por consequência, impõe uma agenda
própria e particular de enfrentamento. A disputa com os setores que detém o
monopólio estatal da violência, coloca um outro patamar de exigências e
correlação de forças com a extrema direita. Esse é o principal desafio que o
governo Lula tem enfrentado desde 8 de janeiro.
O tema
central da Anistia realizada durante a transição democrática foi exatamente a
previsão de não imputação de militares nos crimes cometidos durante a ditadura
(tortura, mortes, prisões ilegais, desaparecimentos, sequestros…). Boa parte da
capacidade de manutenção de aparatos e intervenção dos militares na política
tem relação com essa anistia. A anistia para setores militares que geriram o
Estado é uma fratura exposta da redemocratização brasileira. Ela possibilitou
uma condução de transição com protagonismo militar, que permitiu, por sua vez,
a manutenção de poderes e privilégios das Forças Armadas na Constituição de
1988: a garantia dos poderes constituídos, a GLO, as polícias militarizadas, os
sistemas de inteligência e prerrogativas e proteção da justiça militar, além da
baixa ingerência de qualquer outro poder nas Forças Armadas, mesmo com o chefe
do executivo tendo a atribuição de comandante em chefe. Esses poderes foram
disputados a ferro e fogo na constituinte, com lobby e ameaças.
·
Considerações finais
Dessa
forma, tendo em vista o protagonismo dos militares no governo Bolsonaro, é
impensável que após uma tentativa de golpe como a do 8 de janeiro, não haja por
parte do governo federal uma pressão e uma centralidade na agenda de
desmilitarização do Estado e da sociedade e, em especial, da realização de
algumas reformas chaves. O enfrentamento à extrema direita brasileira, passa
pela desarticulação de elementos desta militarização. E, embora a tentativa de
golpe do 8 de Janeiro não tenha se concretizado, a ameaça permanece, porque o
movimento de extrema direita no Brasil e no mundo está ativo e em disputas
constantes. A eleição na Argentina de Milei e, em especial, uma eventual
vitória de Trump também em 2024, alteram completamente os rumos do movimento. O
problema é global e advém de uma crise do capitalismo e disputa também dos
setores com poder econômico. O Brasil tem a oportunidade de reduzir os
mecanismos e forças políticas que atuam para fortalecer a extrema direita no
país e, consequentemente, no mundo.
É
importante dizer que embora importantes os inquéritos no STF e julgamento dos
participantes dos atentados de 8 de janeiro, é nocivo que não se chegue às
autoridades responsáveis, aos financiadores e aos militares envolvidos. Os
inquéritos contra a família Bolsonaro seguem em aberto sem mais desdobramentos
(mesmo os de corrupção como o caso das joias e das declarações do Mauro Cid). O
STM julgou as Forças Armadas e as isentou de qualquer responsabilidade com os
atos golpistas. Nada diferente do esperado da justiça militar corporativa.
Portanto, embora tenha sido esse contexto que viabilizou a inegibilidade de
Bolsonaro e Braga Netto por cometimento de crimes eleitorais no último pleito
(uma vitória importante), de forma mais direta aos atentados, ainda não vimos
avanços nessa organização.
Sendo
assim, um ano após os atentados e mesmo considerando a importância política e
simbólica das manifestações democráticas marcadas para esse 8 de janeiro, é
evidente que estamos distantes das necessidades de mudanças e
responsabilizações que os atentados levantam. É notório que a disputa com
forças armadas é difícil e delicada, no entanto, precisamos garantir uma agenda
que pense o conjunto de atribuições da segurança pública, com destaque para a
desmilitarização do Estado e da sociedade. Essa construção é urgente e não pode
ser adiada novamente, sob pena de, a depender dos rumos dos ventos vindouros,
retornarmos ao abismo autoritário novamente.
Fonte: Por
Julia Almeida V. da Silva, no Le Monde
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