Epidemias
brasileiras e a prática de dizimar os povos
Desde que
foi “descoberto”, o Brasil enfrentou várias epidemias, como as de varíola,
febre amarela, gripe espanhola, poliomielite, meningite, só para citar as mais
devastadoras.
O que
quase não mudou em pouco mais de cinco séculos, segundo especialistas
consultados pela BBC News Brasil, foi o comportamento das autoridades públicas
frente a elas.
Suas
respostas e ações sempre foram um tanto tardias, depois que a doença já havia
se espalhado, havendo certo número de mortos e sob a pressão da opinião
pública, repercutida nos meios de comunicação de cada época.
Segundo a
doutora em História das Ciências e da Saúde, Christiane Maria Cruz de Souza, do
Núcleo de Tecnologia em Saúde do Instituto Federal da Bahia (NTS/IFBA), foram
muitos os surtos enfrentados pelo país desde 1500.
“No início
da colonização, a derrubada da Mata Atlântica para a plantação de canaviais
propiciou a proliferação de mosquitos e disseminação das ‘febres'”, explica
ela, autora de uma tese que deu origem ao livro Gripe Espanhola na Bahia –
Saúde, Política e Medicina em Tempos de Epidemia.
A
circulação de povos de origens diversas, europeus e africanos, e a introdução
de animais como vacas, galinhas e porcos, por exemplo, também contribuíram para
disseminar doenças desconhecidas no Novo Mundo, dizimando povos nativos, assim
como enfermidades locais adoeceram os que vieram de fora.
“Durante
séculos, tivemos que lidar com o assédio de doenças transmissíveis como a
varíola, a peste bubônica, a malária, a febre amarela, a cólera, a gripe e as
disenterias”, diz Souza.
• Mortes evitáveis
O que há
em comum aos casos é o comportamento e ações das autoridades públicas durante
todo este tempo.
“Os
governos sempre temeram que o reconhecimento público de uma epidemia
atrapalhasse os negócios, prejudicando a economia”, explica Christiane.
“A
eficiência e o comprometimento das autoridades públicas eram colocados em
xeque, na medida em que a crise se agravava e os adversários políticos se
aproveitavam para tentar desestabilizar os que se encontravam no poder.”
O doutor
em Saúde Pública Paulo Frazão, do Departamento de Política, Gestão e Saúde, da
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), vai além.
“A
lentidão, a insuficiência na resposta e o descaso das autoridades para com as
populações de trabalhadores, as famílias de baixa renda e moradores da
periferia e das favelas têm levado a um número elevado de mortes evitáveis”,
diz.
De acordo
com ele, contribui para isso “o descaso para a necessidade de dotar o sistema
público de saúde dos recursos necessários, especialmente os órgãos de
vigilância ambiental, epidemiológica e sanitária, que se ressentem da campanha
permanente de desvalorização do servidor público e do processo de precarização
das estruturas de planejamento estratégico e tático-operacional”.
O
especialista em história da saúde coletiva brasileira André Mota, do
Departamento de Medicina Preventiva e coordenador do Museu Histórico, ambos da
Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), a ação dos governos frente às epidemias
será sempre uma complexa relação política, social e de tecnologia médica e de
saúde pública, o que sempre resultará em uma resposta também complexa.
No
entanto, acrescenta ele, há um fato que merece ser pensado sobre esse tema e
que pode servir de aprendizado.
“Na
República, tivemos epidemias que foram debeladas, quase sempre sem articulação
entre serviços e hospitais e com limites evidentes, já que não havia cobertura
de saúde para todas as pessoas, resultando, nesses casos, em muitas vítimas”,
explica.
“O Sistema
Único de Saúde (SUS), criado em 1988, teve como primeiro desafio epidêmico a
Aids e conseguiu demonstrar resultados importantes na prevenção e cuidado,
justamente, por ter como objetivo essa integração: serviços, cuidados e direito
ao acesso.”
De todas
as epidemias que assolaram o Brasil ao longo dos tempos, as de varíola – foram
mais de uma – estão entre as mais devastadoras.
• Dificuldades na vacinação
O médico
epidemiologista João Baptista Risi Junior, especialista em poliomielite e em
vigilância epidemiológica e ex-secretário nacional de Ações Básicas de Saúde do
Ministério da Saúde, lembra que a doença foi introduzida no Brasil logo após o
descobrimento, tendo causado enorme mortalidade entre as populações nativas.
Epidemias
muito graves dela ocorreram nos séculos seguintes, até as primeiras décadas do
20. “De 1902 a 1926, a doença causou 21 mil mortes somente no Rio de Janeiro,
então capital da República”, diz Risi.
“A
vacinação contra a varíola foi introduzida no Brasil no início do século 19 e
oficializada três anos após a chegada da corte portuguesa, em 1811. Mas havia
imensas dificuldades técnicas e operacionais para realizá-la de modo efetivo.”
Com a
criação do Instituto Vacínico no Rio de Janeiro, em 1887, a vacina pôde ser
produzida em escala e aplicada mais amplamente. Mas a população também não
contribuía muito.
“Em 1904,
Oswaldo Cruz tomou medidas para impor a vacinação obrigatória, o que provocou
forte reação popular, conhecida como a Revolta da Vacina, no Rio de Janeiro”,
conta Risi.
A doença
continuou endêmica no Brasil, apesar de vacinação rotineira nos serviços de
saúde do país. “O problema somente veio a ser solucionado com a criação da
Campanha de Erradicação da Varíola, em 1966, como parte de um esforço
internacional coordenado pela Organização Mundial da Saúde (OMS)”, lembra Risi.
“O último
caso no Brasil ocorreu em 1971, no Rio de Janeiro. Em 1980 a vacina deixou de
ser aplicada no país.”
• Gripe espanhola
Em 1918,
foi a vez da pandemia de gripe espanhola, que atingiu duramente o Brasil. “Há
relatos terríveis do sofrimento que causou à população em várias cidades, como
Rio de Janeiro e São Paulo, por exemplo, com enorme mortalidade”, diz Risi.
“Houve
dificuldade até para recolher e sepultar os cadáveres, mas a crise desapareceu
da mesma forma que havia surgido.”
De acordo
com ele, os problemas ocorreram, porque o sistema de saúde estava inteiramente
despreparado para enfrentar a epidemia, e os dados disponíveis são muito
precários.
“Uma das
vítimas foi o presidente Rodrigues Alves, que iria iniciar o seu segundo
mandato e nem chegou a tomar posse, sendo substituído provisoriamente pelo vice
Delfim Moreira, até o resultado de nova eleição”, lembra. Ele morreu em 16 de
janeiro de 1919.
Segundo o
médico Eliseu Alves Waldman, do Departamento de Epidemiologia da Faculdade de
Saúde Pública da USP, a década de 1940 marcou o surgimentos das epidemias de
poliomielite no Brasil.
“Mas
somente na década seguinte (as contaminações) são incluídas entre as
prioridades de saúde pública, à medida que os surtos se tornam mais severos e
frequentes”, diz ele, que é especialista em Medicina Tropical e em Saúde
Pública e doutor em Epidemiologia.
Antes
disso, no dia 2 de fevereiro de 1943, o filho do então presidente Getúlio
Vargas, que tinha o mesmo nome do pai, morreu da doença.
“Sua
morte, no entanto, não chamou a atenção dos governantes ou mesmo da sociedade
civil, pouco mobilizada a época, pois estávamos em plena ditadura do Estado
Novo”, diz Waldman.
“A maior
epidemia de poliomielite ocorreu, entretanto, em 1959/60. O controle da doença
começou nos anos 1960, com a introdução das vacinas de vírus vivo atenuado
(vacina Sabin) e de vírus inativado (vacina Salk). Ela finalmente foi eliminada
em 1989.”
A
meningite foi outra doença que causou um número elevado de mortes e muito
sofrimento. “Houve uma epidemia que durou de 1945 e 1957, que não foi
reconhecida, mas omitida pelas autoridades de saúde”, conta Mota.
“Fosse
como tragédia ou como farsa, ela voltou a se alastrar na década de 1970,
ganhando mais força, mesmo com o silêncio das autoridades e a proibição do
regime militar sobre os números assombrosos que, aos poucos, foram criando
pânico entre a população.”
Waldman
lembra que essa epidemia ocorreu em pleno período autoritário, quando o governo
tentou negá-la, somente a confirmando quando haviam sido esgotados os leitos
hospitalares para atendimento dos pacientes.
“Para
termos uma ideia, nos períodos de pico da epidemia, que durou cinco anos,
chegamos a ter, somente no município de São Paulo, 200 casos por dia com uma
letalidade de 10%, ou seja, de cerca de 20 mortes diárias”, diz. “Isso foi nos
meses de abril e maio de 1974.”
Segundo
Mota, conforme estudos realizados posteriormente, no caso paulista “a epidemia
pôs a descoberto a anarquia na organização dos serviços de saúde no município
de São Paulo, revelando a inoperância da rede hospitalar e a total falta de
integração entre os serviços locais, destinados ao primeiro atendimento, e os
hospitais”. “Centenas de pessoas morreram até seu controle”, acrescenta.
“Muitas sem saber o que tinham.”
Depois
veio a Aids, mas que teve uma forte reação governamental, porque já existia o
SUS. Mais recentemente surgiram as epidemias sazonais de dengue, chikungunya e
zika, todas transmitidas pelo mosquito Aedes aegypti.
A história
deste inseto é antiga no Brasil. Em 1900, ele foi identificado como o
transmissor da febre amarela urbana, da qual houve várias epidemias. “No Rio de
Janeiro, foram registradas 58 mil mortes pela doença entre 1850 e 1902”,
informa Risi.
Depois da
identificação do transmissor, tiveram início as ações de combate a ele, em São
Paulo e no Rio de Janeiro. “Oswaldo Cruz foi reconhecido internacionalmente por
sua luta contra a febre amarela, mas ela continuou um grande problema em vários
estados litorâneos”, diz Risi.
“Em 1928,
voltou a causar uma importante epidemia no Rio de Janeiro. Por isso, na década
de 1930, a Fundação Rockefeller cooperou com o governo brasileiro para
organizar um programa de combate à doença em todo o país.”
Desse
trabalho resultou o desenvolvimento da vacina contra a febre amarela, em 1937,
e o início da sua produção no Instituto Oswaldo Cruz.
“Em 1955,
o mosquito Aedes aegypti foi considerado erradicado no Brasil”, conta Risi. “Em
1966, no entanto, ele foi reintroduzido nas cidades de São Luiz e Belém, e
novamente erradicado. Mas na década de 1970, a presença desse vetor foi mais
uma vez detectada, agora no litoral da Bahia, e rapidamente se propagou a todo
o país, tornando-se impossível voltar a erradicá-lo.”
As
epidemias que atingiram o Brasil nesses mais de cinco séculos de História não
trouxeram apenas desgraças, mortes e sofrimentos, no entanto.
“Com erros
e acertos, podemos dizer que a saúde pública brasileira amadureceu e se
consolidou como um dos setores que influenciaram e contribuíram para o
desenvolvimento do país”, diz Waldman.
Fonte: BBC
News Brasil
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