segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

A OMC quebrará patentes de covid-19?

No final de fevereiro, a 13ª Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), que acontecerá nos Emirados Árabes Unidos, deverá discutir uma proposta de países do Sul Global para a flexibilização das patentes de tratamentos e métodos de teste de covid-19. Introduzida no debate por Índia e África do Sul com a assinatura de mais 63 nações em desenvolvimento, essa medida (um waiver, no jargão da área) poderia baratear amplamente os custos do enfrentamento ao coronavírus. Apesar de não mais vivermos uma pandemia, é fato que o vírus ainda causa estragos em muitas partes do mundo.

Contudo, como era de se esperar, a proposta não contou com a simpatia imediata de todos os setores da comunidade internacional. Os Estados Unidos, um player decisivo nas negociações, ainda não se pronunciaram, afirmando que “precisam de mais informações” para decidir seu voto. Nos últimos dias, o lobby começou a mostrar suas garras. A Stat, um dos principais portais jornalísticos de Saúde daquele país, veiculou um artigo que incentiva o presidente Joe Biden a votar contra o waiver, com a absurda alegação de que “não há indícios de que a flexibilização de patentes abaixe os custos dos insumos”. A União Europeia e o Reino Unido, por sua vez, já se pronunciaram de forma contrária à medida.

Ativistas e pesquisadores brasileiros e estrangeiros baseados em Genebra, que foram ouvidos por Outra Saúde, avaliam que a oposição dos países do Norte Global remete à ligação íntima entre seus governos e as grandes corporações do setor farmacêutico. Uma carta enviada por um grupo de lobby a Biden torna bastante explícita essa conexão: nela, os lobistas alegam que o motivo pelo qual os EUA devem rejeitar a flexibilização de patentes é que “a competitividade das nossas empresas será reduzida”.

Mas há outro detalhe que pode levar a medida ao naufrágio, relatam as fontes consultadas. Alguns atores centrais dessa disputa já estariam “tirando o pé do acelerador” da luta pelo waiver, que, por conta da exigência de unanimidade da OMC, de fato possui poucas chances de prosperar. Eles se preparam para outra batalha que, sugerem especialistas, tem a chance de trazer saldos maiores para a Saúde Global – a das negociações do Tratado das Pandemias, a serem concluídas em maio.

•        O que querem os países do Sul Global

Esta proposta de waiver foi apresentada pela primeira vez pela Índia no dia 29 de novembro do ano passado, em conversas informais no contexto de uma reunião em Genebra ligada ao TRIPS, o principal acordo internacional sobre leis de patentes. Depois, um documento formal foi apresentado à OMC no dia 4 de dezembro.

No pedido, a flexibilização das patentes duraria 5 anos para os tratamentos e diagnóstico, “ferramentas essenciais para uma abordagem global na luta contra a pandemia, que não acabou”.

Na história recente, há um precedente para um waiver desse tipo. Em junho de 2022, a OMC aprovou um documento que autorizou a flexibilização parcial das patentes das vacinas contra a covid-19, o que permitiu acelerar a imunização da população global – apesar de críticas de organizações como os Médicos Sem Fronteiras aos limites da decisão. O Brasil, por exemplo, foi excluído desse waiver.

Em outubro de 2020, Índia e África do Sul já haviam proposto uma flexibilização geral das patentes de medicamentos, vacinas, testes e outras tecnologias essenciais para o combate ao coronavírus. Mas a oposição dos mesmos países do Norte Global que hoje querem bloquear os waivers diluiu o plano.

Também não é coincidência que a nova proposta de flexibilização seja encabeçada pelas mesmas nações. A Índia, maior produtora de medicamentos genéricos do mundo, possui um parque industrial decisivo para o fornecimento de insumos de saúde a países mais pobres. Desde a derrota do apartheid nos anos 1990, a África do Sul também tem tido algum protagonismo nos embates em organismos internacionais pelo que os ativistas chamam de “justiça sanitária”, o combate às desigualdades na Saúde Global. Em crises como a do HIV,  o licenciamento compulsório de medicamentos por nações do Sul foi essencial para sua distribuição mais equitativa .

Entre outros cabos-de-guerra, o próprio fato de que as patentes farmacêuticas sejam debatidas na OMC, e não na Organização Mundial da Saúde (OMS), também é alvo de questionamento de militantes – e países – comprometidos com a ampliação do acesso à saúde no mundo. Na instituição voltada para o comércio internacional, é mais forte o peso dos interesses privados, o que reduz a chance de que a questão seja tratada de uma perspectiva que beneficie os povos.

O waiver das patentes dos testes e tratamentos da covid-19 poderia dar uma contribuição estratégica para que o Sul Global avance com mais rapidez no seu enfrentamento e ela não caminhe no sentido de tornar-se uma “doença negligenciada”: aquelas que, por se restringirem a países pobres, não geram mobilização internacional para sua erradicação.

Contudo, enquanto for debatida no âmbito da OMC, a medida terá mais dificuldades de ser aprovada em um sentido realmente emancipatório – e que, inclusive, questione a problemática mais geral da própria existência de patentes farmacêuticas.

Como tudo indica que a flexibilização de patentes enfrentará esse caminho duro na 13ª Conferência Ministerial da OMC no fim de fevereiro, provavelmente inviabilizado pela necessidade de consenso entre todos os países-membros, outra rota para os esforços em defesa da Saúde Global e do combate às pandemias poderá ser priorizada, dizem ativistas e pesquisadores.

•        Uma outra aposta

A mais provável alternativa é a de que o Acordo das Pandemias seja eleito como caminho para tentar implementar medidas que favoreçam o compartilhamento justo de recursos e saberes para combater emergências de saúde. Alguns já trabalham com essa tática.

O próprio Tedros Adhanom, diretor-geral da OMS, que anteriormente havia sido um dos principais apoiadores da flexibilização das patentes de vacinas contra a covid-19 durante a pandemia, moderou o discurso. Em uma entrevista em dezembro, ele afirmou: “penso que as questões de propriedade intelectual devem ser parte das negociações do Acordo das Pandemias”. Por essa postura, vale dizer, ele recebeu críticas de muitos ativistas.

Outros atores propõem alternativas mais firmes, nesse meio tempo. “Com os interesses da indústria farmacêutica prevalecendo sobre a saúde pública global” nas negociações do waiver, diz um documento do instituto de pesquisa South Centre, os países em desenvolvimento já devem trabalhar com alternativas como: a) implementar licenças compulsórias, ou “quebras de patente”, a nível nacional; b) invocar razões de segurança nacional para suspender obrigações legais ligadas às patentes de produtos ligados à covid-19; c) ser mais rigorosos quanto à concessão de patentes para vacinas, tratamentos e testes de covid-19, “para evitar a proteção excessivamente ampla” dos lucros de interesses privados.

Apostar todas as fichas no Acordo das Pandemias pode ser arriscado. A esperança de que sua redação seja mais aberta à flexibilização de patentes farmacêuticas advém do fato de que a maioria dos países já está concentrando seus esforços de diplomacia da saúde nele, bem como formulando propostas de maior densidade. Mas nada está garantido, e também nessa frente a indústria farmacêutica já impõe um lobby pesado sobre os países. O prazo final da negociação do Acordo é em maio.

Outra Saúde já cobre os embates de bastidores na negociação do Acordo – em especial, as tentativas do Norte Global de desvirtuá-lo. O waiver de tratamentos e testes contra a covid-19 pode ter entrado em baixa com o encerramento formal da emergência global, mas até a Assembleia Mundial da Saúde – onde o Acordo será finalizado – novos desdobramentos são possíveis.

Como comentou um pesquisador do South Centre com Outra Saúde, os lados dessa briga já são conhecidos, pois se repetem em todos os principais temas da Saúde Global: os principais países capitalistas, portando os interesses da indústria farmacêutica, enfrentam-se com os países pobres, ex-colonizados. Uma solução definitiva só poderia vir com a revisão total do sistema de propriedade intelectual na Saúde.

 

Fonte: Por Guilherme Arruda em Outra Saúde

 

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