quinta-feira, 2 de novembro de 2023

“O rio parece piso branco de uma casa”, diz líder Parakanã

— Cada vez mais os brancos estão nos cercando.  Eles estão estragando o nosso território. O rio parece um piso branco de uma casa. É por isso que eu não posso beber a água do rio. Às vezes, eu dependo da água do açaizal. É por isso que eu peço para vocês: tirem os brancos do nosso território.

O apelo do cacique Ikoreria Parakanã, da Terra Indígena Apyterewa, tem remetente. É direcionado aos não-indígenas e especialmente ao presidente Lula. “Por favor, fale com os seus parentes brancos”, disse Ikoreria ao De Olho nos Ruralistas. “Nossa água está muito ruim, precisamos de ajuda. Nasci e cresci no mato, por isso não falo português. Mande essa mensagem para o Lula, peça para ele nos ajudar”.

Expressando-se em seu idioma, o líder indígena conversou com o diretor deste observatório no dia 26 de setembro, em Altamira (PA), após uma reunião com a Norte Energia para discutir as contrapartidas para os Parakanã da construção da Usina de Belo Monte.

“Fale para a Norte Energia também ouvir o que estou dizendo”, disse Ikoreria. “Eles fazem muitas coisas ruins. Nossas casas, nossas roças, nossos poços perfurados, nossa água, está tudo muito ruim, está suja, está parecendo barro branco”.

Desde 2009, os Parakanã, da TI Apyterewa, esperam desde 2007 diversas contrapartidas da Norte Energia, entre elas a construção de reservatórios de água. E a desintrusão, a expulsão dos não-indígenas instalados em três vilas em pleno território indígena.

Um dos principais pontos de contrapartida é o fortalecimento do território com a instalação e manutenção de postos de vigilância e da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), além de auxílio estrutural e humano para a preservação do território. Uma análise feita pelo Ministério Público Federal (MPF) em 2014 já mostrava problemas quanto à responsabilização de cada instituição.

“No caso da Usina Hidrelétrica (UHE) Belo Monte tem se mostrado exceção desde o início de seu processo de licenciamento”, aponta o documento. “No caso das medidas de compensação, sua exceção caracteriza-se por haver uma ‘mistura’ naquilo que deve ser responsabilidade governamental e do empreendedor até por tais papéis estarem igualmente misturados na constituição de quem é o empreendedor”.

Em entrevista ao El País, a procuradora Thais Santi Cardoso da Silva apontava ainda a falta de conhecimento sobre os povos que habitam a TI. “Eu visitei a aldeia Parakanã, na terra indígena Apyterewa”, contou Thaís. “Quando eu cheguei lá, eu não acreditei nas casas que estavam sendo construídas. Meia-água, de telha de Brasilit. Uma do lado da outra, naquele calor. Eu perguntei para o funcionário da Funai como eles permitiram, porque os Parakanã também são índios de recente contato. E eles não ficavam nas casas, ficavam num canto da aldeia”.

A procuradora esteve na reunião com a Norte Energia e expressou preocupação com o acesso à água. Alguns líderes Parakanã contaram que, diante da poluição dos rios por mercúrio, eles são obrigados a conseguir água com os próprios fazendeiros, os invasores. Segundo Thaís, há risco de, diante disso, eles ficarem sem água.

Com as responsabilidades divididas, o descaso com a história dos Parakanãs e o desmantelamento dos órgãos públicos no governo Bolsonaro,  a TI Apyterewa tornou-se a área com maior desmatamento nos últimos quatro anos da Amazônia, segundo levantamento do Instituto do Homem e do Meio Ambiente na Amazônia (Imazon). Foram 324 km² de floresta destruídos, área que supera a da capital Fortaleza.

APÓS 12 ANOS DE IDAS E VINDAS, RETIRADA DE INVASORES TEM TENSÃO E MORTE

Cinco dias após a entrevista com Ikoreria, no dia 02 de outubro, começou a operação de desintrusão, comandada pela Força Nacional. Cerca de 1.600 famílias vivem ilegalmente na região em atividades como garimpo, extração de madeira e criação de gado. Entre os compradores de bois ilegais está o quarto maior frigorífico brasileiro, a Frigol, de Lençóis Paulista (SP), que teve 1.099 animais identificados como originários da terra indígena.

A desobstrução tem acontecido com violência e resistência dos invasores. No dia 16, a Força Nacional matou Oseias dos Santos Ribeiro, atingido por um tiro de fuzil na Vila Renascer, comunidade com cerca de 210 famílias localizada ilegalmente dentro da TI. Ele foi atingido no abdômen e encontrado no mato pelos moradores da Vila Renascer, que responsabilizaram um policial pela morte. A Força Nacional confirmou a autoria e disse que a vítima tentou arrancar a arma do agente.

Nesse clima de tensão, diversos indígenas saíram temporariamente de suas aldeias, temendo retaliação dos invasores, segundo a Agência Pública. Eles dizem que retornam após o fim da desintrusão.

A operação é composta por agentes da Força Nacional, policiais federais e integrantes de órgãos como Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama) e Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

As tentativas de desobstrução têm um longo histórico. Em 2009, foram estabelecidas condicionantes da obra de Belo Monte que incluía a retirada dos invasores da TI. Em 2011, inicia-se a primeira operação, que acabou paralisada por discussões na Justiça. Em 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou a volta da desintrusão da TI, acabando os efeitos de liminares concedidas pela Justiça Federal contra a operação. A retirada foi retomada em 2016, mas novamente paralisada, em 2017, pelo governo golpista de Michel Temer, sob pressão dos ruralistas. A partir de então, as invasões se intensificaram.

Entre novembro e dezembro de 2020, agentes da Funai e do Ibama foram atacados na tentativa de impedir as fiscalizações ambientais. Cinco pessoas foram denunciadas à Justiça Federal em Redenção (PA), acusados de comandarem um grupo de cerca de 70 pessoas, que atiraram fogos de artifício contra fiscais e colocaram pregos nas pontes para danificar os pneus das viaturas, em ataques sucessivos durante semanas, segundo o MPF.

Mesmo ilegais, os invasores conseguiram a condescendência dos prestadores de serviços públicos. A Equatorial, distribuidora de energia com atividades no Pará, garante o fornecimento de energia da Vila Renascer, mesmo sem autorização da Funai e do Ibama. Em novembro de 2020, a Funai notificou a empresa a remover toda a estrutura de dentro de Apyterewa. Como nada foi feito, a empresa recebeu multa de R$ 201 mil. A Equatorial argumenta que não conseguiu cumprir a ordem por causa das ameaças violentas dos invasores.

Enquanto isso, Ikoreria Parakanã defende o modo de vida do seu povo. “Nós sobrevivemos da caça da anta, do jabuti, do catitu, da paca”, detalha o líder indígena.  “A carne de boi e os alimentos de vocês não são nossos. O boi é de vocês. É só de vocês mesmo”.


Agronegócio favorece desequilíbrio ambiental e climático, diz pesquisador


Chuvas acima da média no sul do Brasil, com prejuízo à produção de alimentos e aumento dos preços; seca histórica na Amazônia, impactando atividades pesqueira, sobretudo de ribeirinhos. Esses são alguns exemplos de como a crise climática se abateu com força no Brasil.

Para Luiz Marques, professor do departamento de História da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autor do livro “Capitalismo e Colapso Ambiental”, o modelo do agronegócio colabora com a emissão de gases do efeito estufa, o que tem alterado de maneira cada vez mais severa o clima. O uso de defensivos agrícolas e agrotóxicos também são prejudiciais para o equilíbrio ambiental.

”Esse modelo agrícola baseado na monocultura e pecuária bovina voltado para a exportação tem impacto na destruição da manta vegetal brasileira, não só a Amazônia mas em outros biomas. É simplesmente suicida para a própria cultura do agronegócio, para a sociedade brasileira e para a nossa biodiversidade”, analisa.

O professor denuncia ainda o papel ”destrutivo” da agropecuária de gados bovinos, um dos principais responsáveis pelo desmatamento da Amazônia e pela produção de metano. “Esse gado produz uma quantidade brutal de metano, um dos principais gases que ajudam no efeito estufa, tendo um impacto de 86 vezes maior de CO2 em um intervalo de 20 anos. (…) Se você pegar o inventário da emissão dos gases de efeito estufa no Brasil, cerca de 75% decorrem da atuação do agronegócio, com grande preponderância na agropecuária bovina”, analisa.

Impactos conectados

Com o avanço no desmatamento, principalmente na região amazônica, há prejuízo na produção da umidade, importante para a formação dos chamados ”rios voadores”, que provoca o equilíbrio de chuvas para a região centro-sul do país.

Os rios voadores são cursos de água atmosféricos, formados por massas de ar carregadas com vapores de água, muitas vezes acompanhados por nuvens e propagados pelos ventos.

Com a falta de chuvas no norte, que enfrenta uma seca histórica, os eventos climáticos vêm ficando cada vez mais extremos, alternando entre secas com altas temperaturas e enchentes.

O professor Eloy Casagrande, PhD em engenharia de recursos minerais e meio ambiente pela Universidade de Nottingham (Inglaterra) e auditor ambiental pelo EARA, explica que a quantidade de umidade liberada na Amazônia irriga as chuvas no sul e sudeste.

“A quantidade de água que se desloca da região amazônica para o sul, sudeste e centro-oeste — e que às vezes pode chegar a ser maior com a água evaporada muitas vezes pela copa das árvores —, pode ser maior que a vazão do Rio Amazonas, cerca de 200.000m³ por segundo”, conta.

Um artigo publicado em 2019 pelo pesquisador Marcos Heil Costa, engenheiro com vasta experiência em clima, uso da terra, ciclo do carbono, água e agricultura no Brasil Central e Amazônia, cita que o aumento da estação seca nos estados amazônicos já vem ameaçando as safras de soja e milho.

“A falta de chuvas no triênio 2020-2022 tem provocado quebras de safra em importantes regiões produtoras de alimentos no Brasil, com carestia e prejuízos colossais aos agricultores de milho, açúcar, café, trigo e laranja. Por causa disso, a safra 2020/2021 de milho foi 15% inferior à safra 2019/2020”, relata o professor Luiz Marques ao Jornal da Unicamp, citando o artigo de Marcos Heil.

Prejuízos na produção e aumento de preços

Para a agricultura familiar, que possui menos recursos para lidar com problemas relacionados a secas ou excesso de chuvas, os impactos climáticos têm prejudicado a produção.

De acordo com dados do anuário da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura, as propriedades de agricultura familiar são quase 3,9 milhões no país, representando 77% de todos os estabelecimentos agrícolas, com produção de alimentos chegando a oitava maior do planeta.

Para a agricultora familiar Elizete Pereira, do assentamento 8 de Abril, no Paraná, com as alterações do clima tem sido difícil planejar a produção. “Quando está muito seco, você perde pela falta de nascer [alimentos] e não chover na hora certa, e não ter possibilidade de irrigação. Quando chove demais, perde feijão, perde arroz”, diz.

No Paraná, por exemplo, as chuvas acima da média para a primavera tem causado o aumento nos preços das hortaliças. De acordo com o Boletim de Conjuntura Agropecuária da semana de 12 a 19 de outubro, Curitiba, que é responsável por 40,9% das atividades olerícolas, teve um acúmulo de 394 milímetros de chuvas até o dia 17. O número é bastante superior à média histórica de 100 a 190 milímetros para o mês de outubro no entorno da capital.

Um levantamento que analisa a variação de preços dos 30 principais produtos vendidos nas Centrais de Abastecimento do Paraná (Ceasa), em especial em Curitiba, mostra que 11 desses produtos tiveram elevação no valor desde o início do mês, influenciados pelas intempéries.

A alface saiu do valor médio de R$ 15,00 a caixa de 7 quilos (valor registrado no dia 2 de outubro), para R$ 30,00 no dia 18. Já o morango apresentou aumento de 94,4%. No início do mês quatro bandejas (1,5 quilo) custavam em média R$ 18,00, e agora são compradas por R$ 35,00.


Fonte: De Olho nos Ruralistas/Brasil de Fato


 

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