quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Moshe Kahn: “Em Gaza é preciso um cessar-fogo imediato, o pior inimigo de Israel é a direita”

“Espero que um dia se chegue à solução dos dois Estados e talvez este seja o momento certo”, explica Moshe Kahn, premiado tradutor de italiano para o alemão, contatado por telefone na sua casa em Berlim. Judeu alemão que emigrou para a Suíça durante a Segunda Guerra Mundial e grande conhecedor da literatura italiana e da Itália - onde viveu 30 anos - Kahn traduziu Primo Levi, Pier Paolo Pasolini, Roberto Calasso, Andrea Camilleri, Luigi Malerba e muitos outros.

>>>> Eis a entrevista. 

·         Em Nova Iorque, centenas de pessoas de fé judaica manifestaram-se com a camiseta "Not in our name" pedindo o cessar-fogo imediato em Gaza. Qual a sua opinião?

Concordo com os manifestantes. Um cessar-fogo é necessário por duas razões, porque ainda existem muitos reféns nas mãos do Hamas e, por isso, é essencial que as negociações continuem, mesmo que a sua libertação será difícil de conseguir. E porque o drama dos palestinos inocentes envolvidos é uma tragédia terrível e é necessária uma trégua para levar ajuda humanitária, cuidados médicos, água e alimento. É preciso deixar passar aqueles que estão em fuga do Hamas. Porque devemos lembrar que os Palestinos não são o Hamas. É uma situação complexa e estamos nos movendo entre dois polos, atingir o Hamas, mas não a população civil, vítima daquela organização. Se houvesse uma manifestação desse tipo em Berlim, eu iria.

·         Qual a sua opinião sobre o governo de Benjamin Netanyahu após o ataque do Hamas?

Vi vídeos na BBC sobre o que o Hamas fez até às crianças, aos recém-nascidos. Cortou braços, cabeças. Mas como algo assim pode ser justificado? Não consigo encontrar nenhuma explicação convincente. Portanto, o ataque era devido e Israel tinha absolutamente que pôr fim a tudo isso.

·         Você acredita que a solução de dois Estados ainda possa ser viável?

Pode ser o momento certo para os políticos israelenses compreenderem que a ocupação que dura há quase 60 anos, desde a Guerra dos Seis Dias de 1967, é insustentável. Naquela época, era feita com a ideia de que um dia se poderia chegar à solução dos dois Estados. Ainda espero que sim, da mesma forma que alguns amigos palestinos na Cisjordânia. No pós-guerra, terão de começar negociações para uma convivência civil. Talvez seja uma solução demasiado poética, mas não vejo outras. Somente numa convivência o ódio se transformará com o passar do tempo. Será um processo lento, pelo menos uma dezena de anos. Mas é preciso justiça e razão para alcançar a paz. Entendo justiça para os palestinos, que devem reaver as terras roubadas pelos colonos."

·         O que você pensa do atual governo de Israel?

Sempre afirmei que o perigo para Israel, desde a primeira Intifada em diante, vem de dentro do país, não de fora. O perigo não vem dos Estados vizinhos, mas sim dos primeiros-ministros de direitas israelenses que não se preocupam com o destino do país, mas só com si próprios. São egocêntricos e narcisistas como este último, Benjamin Netanyahu. Está na política há 30 anos e não conseguiu nada, apenas produziu um ódio maior. O problema dos políticos israelenses de direita é que não deram nenhum passo em frente para facilitar a convivência entre os dois povos, mas apenas pensam em ampliar Israel, favorecendo a expansão dos assentamentos com a justificativa de que 3000 anos atrás Deus lhes prometeu aquelas terras”.

·         Qual é o problema com esse tipo de argumento?

Primeiro, um bom pedaço da história se passou desde então e não podemos fingir que não o sabemos. Mas depois há também o desconhecimento de um livro muito importante do Antigo Testamento, o Livro dos Juízes (cujo episódio mais conhecido é Sansão e Dalila) que conta a história entre judeus e filisteus, os palestinos da época. É um livro que ninguém conhece e que explica a antiga divergência. Bem, quando se coloca em jogo a promessa de Deus de 3.000 anos atrás e se omite o Livro dos Juízes, então é uma visão muito unilateral da história.

·         E que papel desempenhou a esquerda israelense?

Os governos trabalhistas tentaram de várias maneiras chegar a um acordo com os palestinos. Infelizmente, eles eram representados por Yasser Arafat, que não era um visionário e, no final, não foi alcançado um acordo duradouro. Em vez disso, os governos israelenses de direita são largamente votados - e digo isso com amargura - por imigrados russos e colonos estadunidenses que se comportam nos assentamentos como se estivessem no Velho Oeste.

·         Vamos voltar à Europa. O musicista de jazz judeu Coco Schumann, sobrevivente de Auschwitz e Dachau, assim, lembrava a lição tirada da experiência dos campos: manter sempre uma mala pronta. Você tem medo do crescente antissemitismo e tem uma mala pronta?

Sim, estou com medo e como muitos outros amigos judeus aqui na Alemanha, todos nós temos uma mala pronta. Eu também tenho minha mala simbólica já feita. O problema é que não sabemos muito bem para onde ir agora. Tenho 82 anos, mas estou sempre pronto para partir se necessário.

 

Ø  Numa guerra, também as palavras matam. Por Carlos Castilho

 

E a melhor evidência desta constatação está na polêmica mundial em torno do uso das expressões ‘terrorista’ e ‘terrorismo’. A batalha verbal envolvendo governos, organizações e indivíduos colocou em segundo plano as causas e as consequências da guerra entre Israel e o movimento palestino Hamas.

Uma polarização que começa a contaminar o nosso cotidiano como no caso de refugiados afegãos em São Paulo, agredidos por transeuntes porque pareciam terroristas árabes, ou como no confuso incidente num aeroporto russo onde judeus foram atacados na escala de um voo para Moscou.

A guerra das palavras surge quando uma mesma expressão passa a ter significados distintos conforme as opções político-ideológicas de quem as usa na imprensa ou em pronunciamentos oficiais. Terrorismo é uma tática política envolvendo atos de violência física ou psicológica, adotada por um país, partido ou organização ideológica para promover suas reivindicações ou ideias.

Quando usada para qualificar alguém ou alguma instituição, a mesma palavra assume características distintas e configura um rótulo político e ideológico. É esta confusão entre definição e posicionamento que está na origem das diferenças de uso das expressões ‘terrorismo’ e ‘terrorista’ no noticiário produzido por organizações jornalísticas como a agência de notícias Associated Press (AP) e emissoras de TV como a canadense CBC e a britânica BBC.

Uma organização, partido ou movimento podem promover uma causa política e ocasionalmente, dependendo das circunstâncias, adotar o terrorismo como uma tática para lidar com obstáculos pontuais. A AP trata o Hamas como um movimento político, alegando que o objetivo estratégico da organização é reconstituir a Palestina e que o terrorismo é um recurso pontual. A distinção é relevante porque evita associar uma causa estrutural permanente a um ato ou tática conjuntural transitória.

Os defensores do sionismo passaram por esta experiência. Eles adotaram o terrorismo entre os anos 1931 e 1948, quando os movimentos Irgun e Haganah enfrentaram tropas coloniais inglesas na luta pela criação do estado de Israel. Respeitados líderes judeus, como o ex-primeiro-ministro Menachem Begin, foram adeptos do terrorismo quando militavam no Irgun, mas depois de terem atingido seus objetivos políticos deixaram de ser tratados como tal e ganharam respeitabilidade inclusive entre seus antigos inimigos. Situação similar ocorreu em vários outros países como foi o caso da África do Sul, onde o ex-presidente Nelson Mandela era classificado como um líder terrorista antes de ser mundialmente respeitado com defensor da igualdade racial.

O uso político das expressões terrorismo e terrorista faz parte do arsenal da retórica beligerante de governos e partidos, mas é injustificável quando empregado por jornais, revistas, emissoras de rádio e TV, ou sites noticiosos na internet. Isto porque implica uma tomada de posição do veículo jornalístico, comprometendo a percepção que seus respectivos públicos terão sobre os fatos e eventos publicados.

A imprensa como instituição pode escolher livremente como deseja se posicionar diante do terrorismo como estratégia política, mas na hora de produzir notícias para consumo do público, os jornais, revistas, sites e telejornais não podem usar o qualificativo terrorista para definir personagens e organizações. Isto equivale a induzir um julgamento prévio, conforme afirmou Chuck Simpson, principal assessor do vice-presidente da Canadian Broadcasting Company (CBC), a TV pública do Canadá, com status equivalente ao da BBC inglesa, em declarações à revista norte-americana a Mother Jones.

A complexidade do uso da expressão terrorismo levou a imprensa mundial a tomar diferentes posicionamentos diante do problema. O The New York Times, inicialmente classificou o Hamas como terrorista, depois passou a chamar seus membros como militantes armados e mais recentemente voltou a usar a denominação ‘terroristas’. O The Los Angeles Times classificou a captura de reféns israelenses como um ato terrorista, mas se refere ao Hamas como movimento político. Já a rede Al Jazeera trata os membros da Hamas como combatentes enquanto o jornal britânico The Guardian evita o uso de qualificativos alegando que “um mesmo indivíduo pode ser terrorista para alguns e combatente da liberdade para outros”.

Aqui no Brasil, a grande imprensa é unanime em definir o movimento palestino que controla a Faixa de Gaza como organização terrorista, atitude que foi seguida pela maioria dos jornais latino-americanos, ao contrário do que ocorre na Europa e na Asia, onde não há uma unanimidade sobre a forma de tratar a organização palestina. A diversidade de posicionamentos na questão do terrorismo mostra como os executivos da imprensa estão mais preocupados em marcar seu posicionamento ideológico do que com as consequências, eventualmente letais, que determinadas expressões podem ter junto a leitores, ouvintes, telespectadores ou internautas.

 

Fonte: Por Uski Audino, no La Stampa - tradução de Luisa Rabolini, para IHU/Observatório da Imprensa

 

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