COMO A BRIGA ENTRE DUAS DINASTIAS MILICIANAS EXPLICA A CRISE NO RIO
O primeiro choque veio na madrugada de 5 de outubro, quando três médicos
paulistas e um baiano, que estavam no Rio de Janeiro para participar de um
congresso de medicina, foram executados enquanto tomavam cerveja em um quiosque
na Barra da Tijuca. A notícia, acompanhada de imagens do crime, viralizou nas
redes sociais. Era como se a ordem natural dos conflitos cariocas tivesse sido
quebrada e os brasileiros passassem a ver com clareza os riscos de viver em uma
sociedade em que assassinos estão no poder bradando fuzis. Entre as vítimas da
matança estava o médico Diego Bomfim, irmão da deputada federal Sâmia Bomfim e
cunhado do deputado federal Glauber Braga, ambos do Psol. O trauma da morte de
Marielle Franco se reacendeu rapidamente.
Em pouco tempo, no entanto, a polícia concluiu que
os médicos tinham sido mortos por engano. Antes que o poder público tomasse uma
iniciativa, outros criminosos se encarregaram de punir os assassinos. Seus
corpos foram encontrados no dia seguinte, dentro de um carro.
O que o Brasil vislumbrou, nesse episódio
assustador, foi a violência que marca uma nova configuração das milícias no Rio
de Janeiro. Os médicos foram mortos porque um deles parecia com o miliciano
Taillon Barbosa, filho do ex-sargento e também miliciano Dalmir Barbosa. A
dinastia dos Barbosa – da qual faz parte ainda Dalcemir, irmão de Dalmir –
lidera a milícia de Rio das Pedras, bairro da Zona Oeste, junto com outros
policiais influentes (ou ao menos liderava: Taillon e seu pai foram presos
nessa terça-feira, 31 de outubro, em uma operação da Polícia Federal). A
família assumiu os negócios em 2009, depois da morte dos fundadores da milícia
local, Félix Tostes e Josinaldo da Cruz, o Nadinho.
A dinastia familiar de Rio das Pedras é uma milícia
clássica, vinculada a bicheiros com trânsito na política. Esse grupo, hoje, se
vê confrontado por um tipo diferente de milícia, nascida nos bairros de Campo
Grande e Santa Cruz, também na Zona Oeste. Trata-se de uma milícia que se
expandiu aceleradamente nos últimos anos, de forma horizontal, descentralizada,
o que permitiu a seus novos participantes agirem com autonomia. Os criminosos
que tentavam matar Taillon naquela noite, na Barra da Tijuca, atuam em
Jacarepaguá, e fecharam parceria com traficantes do Comando Vermelho para tomar
a comunidade da Gardênia Azul, uma área tradicional dos milicianos de Rio das
Pedras.
Esse novo modelo miliciano se expandiu rapidamente
nos últimos anos. Aliando-se ao tráfico, é hoje o grupo criminoso com mais
territórios sob seu controle no Rio de Janeiro. É também um dos mais armados.
Por se tratar de um modelo descentralizado, no entanto, não há unidade de ação,
como nas milícias antigas. O estado do Rio está dividido em pequenos grupos,
cada qual com seu chefete e suas ambições particulares. O problema das milícias
entrou numa nova fase, mais imprevisível e, ao que tudo indica, mais violenta.
A milícia de Campo Grande e Santa Cruz se formou no final dos anos 1990. Chamava-se
Liga da Justiça. A partir de 2014, começou a se expandir e passou a ter sua
própria dinastia familiar. O líder do grupo era Carlos Alexandre Braga, o
Carlinhos Três Pontes. Paisano, cria da comunidade, Carlinhos era aquilo que se
convencionou chamar de pé-inchado – um segurança privado que, apesar dos
trejeitos e da profissão, nunca fez carreira militar. Sem ter a mesma
influência política que o grupo de Rio das Pedras, Carlinhos formou uma espécie
de franchising criminal. Passou a oferecer armas e proteção
para policiais e líderes comunitários – entre eles, integrantes dos velhos
grupos de extermínio – montarem suas milícias em troca de participação nos
lucros. A parceria com os traficantes lhe deu poder de fogo, já que alguns
deles vêm estocando fuzis desde os anos 1990.
Carlinhos foi morto numa operação policial em 2017.
Seu irmão Wellington Braga, mais conhecido como Ecko, assumiu o grupo. Reinou
durante quatro anos, fortalecendo as parcerias com traficantes, tornou-se o
criminoso mais procurado do Rio, mas, assim como Carlinhos, morreu numa
operação da polícia. O poder, ainda assim, continuou dentro da família Braga:
quem assumiu os negócios dessa vez foi outro irmão, Luís Antônio Braga, o
Zinho. Apesar da importância do sobrenome, a transição não foi fácil: Zinho
teve de brigar pela posição com Danilo Dias, o Tandera, liderança miliciana de
Seropédica e Itaguaí.
Os Braga foram bem-sucedidos nos negócios. Com seu
modelo de franquia, extrapolaram a Zona Oeste e levaram milícias para a Baixada
Fluminense e a Região dos Lagos, além de Angra dos Reis. Entre 2006 e 2021, o
território ocupado por milícias no estado do Rio cresceu 387%. Isso se deve, em
boa medida, à política expansionista da família Braga.
Os Barbosa, enquanto isso, comandam uma milícia com
capital político. Orbitam Rio das Pedras figuras como Domingos Brazão,
conselheiro do Tribunal de Contas do Estado, que chegou a ser apontado como
suspeito de ser o mandante do assassinato de Marielle. Outro nome influente no
bairro é Rogério de Andrade, sobrinho do falecido Castor de Andrade, um dos
principais nomes do bicho no Brasil. O ex-sargento Ronnie Lessa – que foi
segurança de Rogério e hoje aguarda julgamento, acusado de ter matado Marielle
– era sócio de um bingo clandestino na Gardênia Azul, além de ganhar dinheiro
com a importação de fuzis.
Além de nomes tradicionais da elite criminal
carioca, a milícia de Rio das Pedras investia em promessas, como é o caso de
Adriano da Nóbrega, ex-capitão do Bope, próximo à família Bolsonaro a ponto de
ter sua mãe e sua esposa empregadas no gabinete do então deputado estadual
Flávio Bolsonaro. Aliado aos Barbosa, Nóbrega investiu na construção de prédios
clandestinos na Muzema, bairro colado em Rio das Pedras. Era assim que o
ex-capitão, morto em 2020, complementava sua renda principal como agenciador de
matadores de aluguel para bicheiros, serviço que prestava por meio do
Escritório do Crime.
Os Braga e os Barbosa viviam uma paz armada. Até
que, este ano, a situação mudou.
O Rio de Janeiro pôde celebrar, nos últimos cinco anos, uma melhora nos
índices da violência. Segundo os dados do Instituto de Segurança Pública (ISP),
o número de homicídios em 2021 foi o menor em trinta anos. O patamar se manteve
estável em 2022.
O período coincide com a pandemia, mas também com
uma maior estabilidade na relação entre grupos milicianos. Depois do
impeachment de Wilson Witzel, em 2021, Claudio Castro (PL-RJ) assumiu o governo
do Rio. Figura obscura que chegou acidentalmente ao poder, Castro tem o apoio
de políticos vinculados a milícias. Sua gestão pouco fez para combater esses
grupos. Herdando a estrutura deixada por Witzel, Castro comanda um governo sem
secretaria de segurança – o poder é exercido diretamente pelas polícias civil e
militar.
Durante a campanha eleitoral, no ano passado, o
governador pôde se vangloriar da diminuição do número de homicídios no Rio,
consequência dessa pax miliciana. Enquanto isso, numa
demonstração de força, direcionou as polícias contra alvos mais fracos,
promovendo chacinas em favelas como Jacarezinho (28 mortos, maio de 2021),
Complexo da Penha (25 mortos, maio de 2022) e Complexo do Alemão (18 mortos,
julho de 2022).
Foi eleito no primeiro turno. Em seguida, o caldo
começou a entornar. Dados do Monitor da Violência, parceria entre o site G1, o
Núcleo de Estudos da Violência da USP e o Fórum Brasileiro de Segurança
Pública, mostram que no primeiro semestre de 2023 os homicídios no Rio de
Janeiro cresceram 17%, contrastando com a queda nacional de 3,4%. Na Zona
Oeste, onde há maior presença de milícias, os homicídios subiram 127% de
janeiro a outubro, na comparação com o ano passado, de acordo com a plataforma
Fogo Cruzado.
Os números refletem o confronto, agora aberto,
entre a nova e a antiga milícia. Disputas territoriais tornaram-se mais inflamadas,
com tiroteios frequentes. Pouco mais de duas semanas depois do assassinato dos
médicos na Barra da Tijuca, Matheus Rezende, conhecido como Faustão, sobrinho
de Zinho, foi morto numa operação da polícia. Fazia poucos dias que o delegado
Marcus Amin assumira o cargo de secretário da Polícia Civil, e a operação
parecia feita sob medida para insuflá-lo. Dessa vez, no entanto, os milicianos
revidaram. No dia 23 de outubro, incendiaram 35 ônibus e um vagão de trem,
produzindo imagens que viralizaram nas redes e fragilizaram a imagem do
governador.
Os milicianos de Rio das Pedras desafiaram o Estado
em 2018, quando mataram Marielle em plena intervenção federal. Agora, no
entanto, quem desafiou o Estado foram os milicianos de Campo Grande e Santa
Cruz. Um grupo fragmentado, fortemente armado, com ampla presença nos
territórios e difícil de controlar.
As milícias já tiveram várias encarnações. Durante a década de 1960,
quando o Rio deixou de ser capital e a segurança pública tornou-se motivo de
preocupação, os matadores agiam dentro da polícia, incentivados por uma visão
higienista. Os policiais, muitos deles associados à máfia do jogo do bicho, a
mais antiga e poderosa do Rio, matavam como se protegessem a cidade dos pobres.
Surgiram nessa época os primeiros esquadrões da morte, entre eles a Scuderie
Detetive Le Cocq, que se desdobraram nos grupos de extermínio da Baixada
Fluminense. A matança era celebrada toda semana nos jornais populares. A carta
branca para matar permitia que alguns desses policiais enriquecessem no mundo
do crime – caso de Mariel Mariscot e Capitão Guimarães, entre tantos outros.
A década de 1980, com a expansão do tráfico de
drogas, deu outra dimensão à crise de segurança do Rio. Os traficantes formaram
um arsenal bélico que enriqueceu os senhores da guerra, entre eles policiais
que abasteciam grupos criminosos com fuzis. O Comando Vermelho, formado dentro
das prisões em 1979, passou a lucrar com a venda de drogas no varejo,
controlando morros das Zonas Sul, Norte e Centro. O Terceiro Comando montou
seus negócios da mesma forma e passou a disputar mercado com os grupos rivais.
Nos anos 1990, conforme esses conflitos se
agravavam, agora alimentados por fuzis importados dos Estados Unidos e do
Paraguai, policiais ligados a bicheiros não perdiam a oportunidade de faturar.
As opções eram várias: podiam extorquir traficantes presos em troca de sua
liberdade, vender armas ou drogas apreendidas e chantagear donos de morro para
evitar operações em seus redutos. Foi o ápice da violência no estado do Rio,
que chegou a registrar 62 homicídios por 100 mil habitantes em 1995 (em 2022,
segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Rio teve 28 homicídios por
100 mil habitantes).
As milícias, como as conhecemos hoje, surgiram
entre o final dos anos 1990 e começo dos anos 2000. A ideia partiu de dois
grupos de policiais que inventaram um novo modelo de gestão territorial na Zona
Oeste, em bairros que até o começo dos anos 1970 viviam um relativo isolamento,
separados do resto da cidade pelo Maciço da Tijuca. Túneis e pistas conectaram
a região, que passou a receber migrantes de fora do estado. A Liga da Justiça
foi criada pelos irmãos policiais Jerônimo Guimarães Filho, o Jerominho, e
Natalino Guimarães. O grupo faturava principalmente com o dinheiro das lotações
clandestinas, mas também cobrava proteção dos comerciantes locais, sob o
argumento de que, assim, mantinham a comunidade protegida do tráfico. O mesmo
modelo vinha sendo desenvolvido ali perto, em Rio das Pedras, pelo policial
Félix Tostes e o líder comunitário Nadinho.
No princípio, o trabalho das milícias era celebrado
até pelas autoridades, que as viam como um modelo de autodefesa
comunitária, nos moldes de grupos paramilitares do México. O apoio, é claro,
também tinha motivos práticos: os policiais encarregados dos negócios garantiam
votos aos políticos que os apoiassem. Eles próprios se candidatavam: Jerominho,
Natalino, Nadinho e outros milicianos foram eleitos deputados estaduais e
vereadores. Todo mundo ganhava. A lua de mel com a opinião pública só acabou em
2008, quando uma repórter, um fotógrafo e um motorista do jornal O Dia foram torturados
por milicianos em uma favela da Zona Oeste. Veio, a seguir,
a CPI das Milícias, comandada por Marcelo Freixo, que dois anos antes vira seu
irmão Renato morrer pelas mãos da milícia.
A CPI prendeu centenas de acusados de integrar
grupos milicianos. A situação parecia sob controle. O Rio vivia a prosperidade
econômica pré-Copa do Mundo e Olimpíadas. As UPPs – Unidades de Polícia
Pacificadora – expulsavam traficantes dos morros sem tiroteios.
O crime apostou ainda mais na diplomacia. Os novos chefes
milicianos evitavam chamar atenção, mas acumulavam dinheiro e se infiltravam
nas instituições públicas. Bairros e cidades inteiras do Rio de Janeiro se
adaptaram à nova governança. Traficantes do CV e do Terceiro Comando migraram
para comunidades menos visadas. Os homicídios no estado caíram de um patamar de
42 por 100 mil habitantes em 2007 – antes, portanto, das UPPs – para 31 por 100
mil habitantes em 2015. A queda na capital foi ainda mais aguda. Assim como já
tinha ocorrido em São Paulo, com o PCC, os criminosos aceitaram a trégua do
governo e acabaram percebendo que alianças eram mais lucrativas do que
conflitos.
As guerras entre os grupos armados voltaram a
ocorrer a partir de 2016, quando o Rio se tornou o epicentro da crise política
e econômica que paralisou o Brasil. Sérgio Cabral e seu sucessor, Luiz Fernando
Pezão, foram presos. A institucionalidade republicana, com sua política de
segurança pública, se enfraqueceu, deixando um vácuo favorável para as
milícias. Em 2017, os homicídios no estado voltaram ao patamar de 40 por 100
mil.
Desde então, as milícias se estabilizaram. Mas o
controle institucional é mais frágil do que nunca. As corregedorias das
polícias foram desmontadas. E agora, uma nova crise de segurança pública
desponta no horizonte. As cenas chocantes, tanto da Barra da Tijuca quanto dos
35 ônibus queimados, servem de alerta. A paz armada que vigeu no Rio durante
anos é difícil de se repetir hoje. O estado do Rio está repartido entre
diferentes grupos armados, independentes entre si, com interesses e muito
dinheiro em disputa. Diante de instituições fragilizadas, impera a lei do mais
forte, e o desfecho disso é imprevisível.
Fonte: Revista Piauí
Nenhum comentário:
Postar um comentário