Educação: lobby pela terceirização volta à cena
Em muitos aspectos o cenário educacional
norte-americano tem sido uma fonte importante de legitimação das políticas
educacionais nos últimos 30 anos no Brasil. É o caso da governança educacional
nos EUA, apresentada como modelo exitoso, principalmente por uma fração do
empresariado brasileiro que tem assumido a renovação da racionalidade
organizacional da escola pública em nosso país.
É neste cenário que se inscreve o artigo publicado
em 19/07/2023 na Folha de São Paulo sob o título “Escola
Charter: uma revolução silenciosa”, assinado por
Pedro Olinto, economista sênior do Banco Mundial. O texto tem como base o
relatório “Uma questão de fato. III estudo nacional de escolas
charters 2023”, elaborado pelo CREDO – Centro de Pesquisa sobre Resultados
Educacionais da Universidade de Stanford, que avaliou o progresso acadêmico dos
estudantes em escolas charter dos Estados Unidos.
Durante minha estadia pós-doutoral de um ano na
Universidade de Maryland – EUA (2015-2016) estudei a organização, gestão e
formatos escolares do sistema educacional daquele país e sua influência no
Brasil. Tive a oportunidade de pesquisar um dos temas mais conflitivos entre os
acadêmicos, movimentos sociais e partidos políticos dos EUA.
As escolas charter, conhecidas nos Brasil como
escolas conveniadas, vêm sendo disseminadas de forma “silenciosa” em vários
estados do país na modalidade PPP (Parceria Público-Privada), com empresas e
outras instituições. O Município de Maringá e o Estado de Goiás foram pioneiros
nessa modalidade. O município de Maringá/PR teve a primeira experiência de
escolas charter (1991-1992). Em 2016 a Secretaria de Educação do Governo de
Goiás lançou o Programa de Contratos de Gestão com OSs, após enviar uma
comitiva para os EUA conhecer in loco o funcionamento das
escolas charter.
Elas também formam parte dos programas de vários
partidos políticos liberais e conservadores, que em 2022 se apresentaram nas
eleições nacionais, como Novo e PL (partido de Bolsonaro). Aliás, pode-se dizer
que as chamadas escolas cívico-militares trazem em seu cerne muito da ideia das
charter: são públicas e mantidas com dinheiro público, mas com forte
desregulamentação, regras de funcionamento próprias e gestão assumida por um
corpo estranho à escola e a educação pública (neste caso, policiais e
militares)
·
A ingerência das corporações
e fundações
O “modelo” escola charter é um dos tipos de escola
da rede pública de ensino dos EUA que recebe financiamento dos governos federal
e estaduais, mas cuja gestão é privada e tem regras de funcionamento
específicas. Ou seja, como afirma o prof. Luiz Carlos Freitas, é a
terceirização das escolas públicas. O termo “charter” refere-se ao contrato
estabelecido com o governo federal ou estadual, que define os termos de
operação da escola. As regras de governança e de responsabilização variam muito
segundo as leis de cada estado. Elas funcionam mais ou menos como as escolas
particulares, dependendo do estado onde estão localizadas e das agências que as
autorizam.
São escolas que possuem grande autonomia para
contratar e demitir professores, montar seus próprios currículos e oferecer
maior carga horária. Conforme o estado, nem mesmo a certificação dos
professores é exigida. Na maioria dos casos são jovens professores, menos
qualificados, com menos experiência e com um forte sistema de controle do
conteúdo ensinado, por meio de currículos estruturados e materiais didáticos
(apostilas) direcionados para as exigências dos testes estaduais e nacional. O
volume de trabalho e a rotatividade dos professores é também bem maior do que
nas outras escolas públicas.
O financiamento público segue os mesmos critérios
estaduais que para as escolas públicas tradicionais. Mas, além disso, muitas
dessas escolas recebem contribuições privadas vultosas para financiamento de
capital e aquisição de instalações escolares além da isenção de impostos a que
têm direito. Muitas vezes essas contribuições são ditadas pela filantropia,
outras como participação indireta no negócio. É difícil separar onde termina
uma motivação e começa a outra.
O caráter público deste tipo de escola tem sido
bastante questionado no debate norte-americano. Ela é definida como escola
pública na Lei Federal e nas leis estaduais, mas os tribunais têm dificuldade
de determinar o status legal dessas escolas e na hora de julgar algum litígio
costumam optar por considerá-las instituições privadas.
Ainda que a percentagem de escolas charter não seja
significativa no total das escolas públicas, elas apresentam uma tendência de
crescimento, motivada pelos governos (federal e estaduais), tanto em
administrações do Partido Republicano quanto do Democrata. Há também forte
lobby em favor das charter, como é o caso do promovido pela Aliança Nacional
para Escolas Públicas Charter. Essa instituição publicou um modelo de lei para
a escola charter e tem defendido sua adoção em todo o país.
Há várias redes de escolas charter sob a
administração de corporações e suas fundações, que também contribuem com
volumosas quantias para a expansão do modelo charter. O Programa Conhecimento é
Poder, da Fundação KIPP, é a maior das redes nacionais. Já a Fundação Walton,
da família fundadora da rede de supermercados Walmart, é uma das que mais
contribui com recursos para a expansão das charter. Ainda que o número desse
tipo de escolas cresça ano a ano, a expansão não é maior porque o número de
charter que fecham suas portas anualmente é bastante significativo, produzindo
interrupções na escolaridade das crianças e adolescentes.
·
Fato ou falatório?
O relatório “Uma questão de fato. III estudo
nacional de escolas charters” foi apresentado com bastante glamour pelo
economista do Banco Mundial, Pedro Olinto. Procura apresentar esse relatório
como evidência empírica de que os estudantes norte-americanos nas escolas
charter têm melhor rendimento acadêmico do que os que estudam em escolas
públicas tradicionais.
A Network for Public Education, que luta pela
escola pública nos Estados Unidos divulgou um estudo pormenorizado do
Relatório, com o título “Fato ou
falácia? Uma crítica detalhada do Relatório Nacional CREDO 2023”. Desvela uma forte crítica metodológica à pesquisa, o
histórico contexto do CREDO e seus financiadores. Não cabe aqui realizar um
estudo pormenorizado da metodologia utilizada pelo CREDO para chegar a seus
resultados, mas vale a pena destacar alguns pontos que deixam evidente a
intencionalidade da pesquisa e que foram demonstrados no estudo acima citado.
O relatório do CREDO destaca as diferenças entre
escolas charter e escolas públicas tradicionais em dias de aprendizado, o que
como afirma Peter Greene, professor aposentado que contribui regularmente para
a revista Forbes, “dias de aprendizado não significa realmente dias de aprendizado”.
Baseia-se numa pesquisa nacional em larga escala
que, como tal, não parece difícil manipular os dados quando, por exemplo, os
dados são apresentados em percentagens e um grande conjunto de dados quase
garante significância estatística mesmo quando na realidade os tamanhos dos
efeitos substantivos são minúsculos. Além disso, não estão claros os critérios
de seleção da amostra da pesquisa que exclui algumas organizações que, segundo
a Network for Public Education, teriam importantes efeitos nos resultados.
O crescimento das escolas charter tem sido tema
importante de debate nos EUA, as denúncias de desvio de dinheiro público e
situações de segregação racial e/ou de crianças com alunos com necessidades
especiais e do volume de negócios que significa para as grandes corporações e o
risco que apresenta à escola pública, entre outros.
Ao mesmo tempo, tanto as pesquisas acadêmicas
quanto as realizadas pelas fundações empresariais mostram que os resultados não
permitem afirmações contundentes. Os resultados deixam entrever que o
rendimento das escolas públicas tradicionais e das escolas charter são
equivalentes, existem escolas diferentes em ambos os casos e as escolas charter
e as escolas públicas tradicionais não são necessariamente melhores ou
priores.
No entanto, “No geral, os milionários defensores da
escola charter são obcecados em criar e expandir um sistema de educação
paralelo à educação pública tradicional que reflita os valores corporativos”,
afirma o pesquisador norte americano Dwight Holmes.
O fato é que o relatório do CREDO teve uma ampla repercussão
na grande mídia norte-americana, apesar das falhas metodológicas, de estar
contaminado pelo viés de seus financiadores e das críticas e denúncias contra
as escolas charter no mundo acadêmico.
“A retórica do sucesso alimenta o mito, mas a
realidade é muito mais preocupante. Espalhadores de mitos confundem os pais,
ocultando pesquisas nas quais as escolas públicas tradicionais geralmente
superam as escolas charter, minimizam o impacto dos fracassos escolares
charter, e promovem o desvio de recursos de escolas públicas tradicionais que
educam a maioria das crianças neste país”.
·
O ataque à escola pública
O conselho editorial do Wall Street Journal publicou,
no dia 15/6, o artigo “Escolas Charter: novas evidências do sucesso dos
estudantes” com a seguinte manchete: “Um estudo nacional de Stanford mostra
enormes ganhos de aprendizado em relação às escolas sindicais”. É fácil deduzir
que o artigo chamou de “escolas sindicais” as escolas públicas tradicionais
para deixar claro um fato que ocorre nas escolas charter. Os professores que
quiserem se associar a seus sindicatos e/ou participar de mobilizações e greves
correm alto risco de ser demitidos e por isso eles nunca optam pela
sindicalização. Os docentes das escolas charter ficam desprotegidos frente a precarização
do trabalho docente, tais como salário menor que nas escolas públicas e a
possibilidade de ser demitidos por decisão dos gestores como consequência da
flexibilidade dos contratos estabelecidos com o governo local, porque carecem
de regulamentações necessárias para garantir estabilidade e condições dignas de
trabalho docente.
O CREDO é sediado na Universidade de Stanford e
vinculado ao think tank conservador Hoover Institution, da
mesma instituição. Tem como missão defender “Os princípios da liberdade
individual, econômica e política; a empresa privada e o governo representativo”
que foram fundamentais para a visão de
seu fundador. “Ao coletar conhecimento, gerar ideias e disseminar
ambos, a Instituição busca garantir e salvaguardar a paz, melhorar a condição
humana e limitar a intrusão do governo na vida dos indivíduos.”
A pesquisa do CREDO foi realizada com financiamento
de duas organizações sem fins lucrativos como subscritores do estudo: a
Fundação Família Walton e o City Fund. A Walton Family Foundation se reconhece
como o maior financiador privado de escolas charter, divulgou publicamente US$
1,35 milhão em doações diretamente ao CREDO
durante os últimos cinco anos. Através da
Public Charter Startup Grant apoia e financia o desenvolvimento de escolas
charter e está “empenhada em ajudar as organizações de gerenciamento de
charters de alto desempenho a expandir e replicar o que funciona”.
Também se diz empenhada em investir mais em pequenas
operadoras independentes que tenham novas ideias sobre como oferecer opções educacionais de alta qualidade para
alunos com altas necessidades. “Acreditamos que empreendedores com novas
ideias podem inovar, atender às demandas das comunidades e criar ótimas escolas
que atendam às necessidades exclusivas de cada criança.” A Walton Family
Foundation também é responsável pela Connections Academy@ que oferece
aos alunos de todo o país uma escola pública gratuita on-line, primaria e
secundária.
O City Fund foi criado e financiado pelos bilionários
conhecidos como pró-charter, John Arnold e Reed Hastings e com financiamento da
Gates Foundation. O
propósito é “criar sistemas inovadores de escolas públicas”, sistemas de escolas charters, tal como aconteceu em New Orleans após
o desastre produzido pela furação Katrina. Após a tragédia sofrida pela
população de New Orleans, tendo a maior parte da cidade em ruinas, o sistema
público de ensino foi submetido ao receituário neoliberal, sob a consultoria do
economista Milton Friedman, que percebeu uma ótima oportunidade de reformar o
sistema de ensino público, transformando todas as escolas em charter sob gestão
empresarial.
A atuação de Friedman em New Orleans é
paradigmática. Ele e sua equipe formada na Universidade de Chicago foram
responsáveis pela reforma de Pinochet no Chile. O curioso é que coisas assim
sejam apresentadas como exemplos de sucesso. A jornalista e escritora canadense
Naomi Klein cunhou a expressão “doutrina do choque” ao analisar essas situações
nas quais as populações estão suficientemente fragilizadas para ser submetida a
políticas neoliberais.
·
E no Brasil?
Mas, o que tudo isso tem a ver com o Brasil? Porque
a Folha de S.Paulo deu um importante espaço para o economista
Pedro Olinto apresentar o Relatório do CREDO, que segundo ele “evidencia a
eficácia das escolas charter para minorias menos favorecidas”? Pedro Olinto
sugere uma perspectiva favorável para educação básica norte-americana e
considera imperativo “revisar os paradigmas educacionais no Brasil e explorar
estratégias inovadoras”.
O cenário educacional estadunidense tem sido uma
fonte importante de inspiração do pensamento dominante brasileiro na educação
nas últimas décadas, principalmente por uma fração do empresariado e seus
representantes. A atuação do empresariado norte-americano na educação, o
incremento da lógica avaliativa e o modelo charter são apresentados de forma
exitosa, com forte aval dos organismos internacionais. Através de suas
fundações, da formação de quadros políticos e de seus lobbies esse
setor da sociedade brasileira tem assumido a “briga” pela renovação da
racionalidade organizacional e cultural da escola pública no Brasil.
Não cabe aqui fazer uma análise dos ataques à
escola pública, através de sua desqualificação e à demonização perante a
opinião pública e persuadindo a sociedade brasileira da necessidade de mudanças
e implantar modelos de gestão privada na educação pública. Este discurso
coadjuva com a agressiva atuação do empresariado brasileiro tornando-se ator
proeminente na política educacional dos últimos 30 anos e com a crescente
mercantilização e financeirização da educação pública.
Nesse mesmo quadro insere-se a reforma do ensino
médio, hoje na berlinda, clara expressão do grau de intervenção das fundações
privadas na educação brasileira. A produção da lei nº 13.415/2017, que deu
origem a essa reforma, evidencia como a burguesia brasileira, assim como nos
EUA, disputa o financiamento público e o conteúdo da escola pública, sua forma
de organização e as relações de trabalho em seu interior. E como, através das
fundações, age fortemente na inculcação de novos valores no pensamento
educacional hegemônico – individualismo, competitividade, empreendedorismo,
voluntariado, “a pessoa empresária de si mesma” –, que legitimam as relações
sociais capitalistas.
Temos hoje uma extensa produção bibliográfica
crítica que mostra o caráter regressivo dessas políticas no processo tardio de
democratização da educação brasileira e as consequências para uma proposta
emancipadora de educação escolar das crianças e jovens de setores populares.
Lamentavelmente com pouco ou nenhum espaço na mídia hegemônica, bem como na
elaboração de políticas.
Fonte: Por Nora Krawczyk, em Outras Palavras
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