Brasil: Como funciona o movimento que propaga o ódio às feministas?
Mãe, feminista, negra e evangélica. Um
"demônio". Assim foi chamada a cientista social e doutoranda em
antropologia, Simony dos Anjos, de 37 anos. A deputada estadual Ana Campagnolo,
de Santa Catarina, no sul do Brasil, filiada ao PL - mesmo partido do
ex-presidente Jair Bolsonaro -, postou, em 2022, a foto de Simony em uma rede
social com o comentário: "toda feminista é abortista, toda abortista é do
demônio, não existe feminista cristã". A parlamentar declaradamente antifeminista
ainda incentivou seus 1,2 milhão de seguidores a entrar no perfil da
doutoranda, que recebeu uma onda de ódio e ataques de hackers.
"Essa foi uma das situações que mais me causou
medo, você não tem controle do que as pessoas vão fazer quando elas têm ódio de
você", disse Simony à reportagem. Ela é uma figura pública, ativa na luta
pelos direitos das mulheres em ambientes religiosos e secretária executiva da
Rede de Mulheres Negras Evangélicas. Mas acabou precisando ficar mais recolhida
após os xingamentos e ameaças que recebeu em outubro de 2022, durante as
eleições presidenciais.
"A internet não é um mundo à parte, o ódio que
se propaga lá é um atentado real contra a nossa vida", acredita Simony.
Ela processou Ana Campagnolo pelo ataque, mas seis meses depois, seu caso ainda
estava parado na comarca de Osasco, São Paulo. Enquanto isso, uma ação na qual
a ativista é acusada de calúnia por um pastor de Brasília, anda rápido.
Anderson Silva, um líder religioso que apoia
políticos da extrema-direita, alegou dano a sua honra e imagem em um texto
publicado na revista Carta Capital, onde Simony é colunista. No texto, ela
criticava as falas do pastor sobre o suposto "potencial demoníaco da
mulher", que, na opinião dela, é uma fala perigosa em um país tão
religioso como o Brasil.
Trechos da coluna: "Segundo ele (o pastor), a
sociedade olha apenas para a agressão que um homem comete contra uma mulher,
mas não para os meses de tortura psicológica aos quais a mulher supostamente
submeteria o homem. (....) Culpabilizar mulheres por sofrerem a violência
reforça a ideia de que elas merecem apanhar e encoraja os homens a cometer
abusos (…)". Anderson pediu uma indenização de R$48 mil no processo contra
Simony. Ele fez ainda uma live se colocando como vítima ameaçada pela feminista,
atraindo uma onda de reações para o Instagram dela.
A judicialização e a exposição nas redes são formas
de silenciar e intimidar ativistas e movimentos sociais. "Eu tenho filhos,
tenho família, sou funcionária pública, e isso tudo pode ter implicações pra
mim", afirmou Simony.
Juristas evangélicos
Os "antifeministas" (ou antidireitos das mulheres) abrem processos em uma política de
ataques, mas possuem advogados e recursos para pagar os custos, ao contrário da
maioria das ativistas. Existe, inclusive, uma Associação Nacional de Juristas
Evangélicos (Anajure), que estabelece parcerias entre lideranças religiosas e
operadores do direito: advogados, juízes, promotores e defensores evangélicos.
Em 2021, eram 800 associados no Brasil.
Em janeiro de 2023, no Piauí, uma juíza nomeou um
defensor público para representar o feto de uma menina que queria interromper a
gestação de maneira legal, por ter sido estuprada. Simony questiona essa defesa
do feto no lugar da gestante. Ela considera que a mulher também está ameaçada
quando se distorce a compreensão do direito humano individual para defender a
suposta instituição família. Ela chama isso de ‘projeto familista’, que mira o
padrão hetero-patriarcal branco.
O discurso religioso ganha adeptos - no direito, na
política e nas redes sociais - ao se vender como um movimento pela família, e
não contra os direitos das mulheres. Nessa lógica, seriam as feministas a
acabar com as famílias ao defenderem o aborto, já que o objetivo dos cristãos é
ter filhos. Acusam as feministas também por ousarem dizer que o gênero é
construído socialmente e buscar a igualdade - o que no meio conservador é
difundido como "ideologia de gênero", um conceito que não
existe.
·
Discursos antifeministas
orquestrados e renovados
Os movimentos antigênero compartilham ainda táticas
para ganhar projeção política e social. No Brasil, as semelhanças da deputada
Ana Campagnolo e do pastor Anderson Silva com o deputado federal bolsonarista
Nikolas Ferreira (PL) e o pastor Silas Malafaia são enormes. Esses últimos
possuem grande alcance e impacto nacional, espalhando discurso de ódio e
desinformação sobre aborto e ideologia de gênero. Nossa reportagem verificou a
atuação deles nas redes sociais desde a criação de suas contas, e aborto e
ideologia de gênero são temas constantes.
Nikolas Ferreira (Partido Liberal) é formado em
Direito, tem 27 anos e foi o deputado mais votado do Brasil em 2022, com
quase 1,5 milhão de eleitores. Forte aliado do ex-presidente Bolsonaro, ele tem
mais de 15 milhões de seguidores nas redes sociais (Twitter, Instagram,
Facebook e TikTok) e conversa principalmente com o público jovem, no lugar da
nova geração da extrema-direita antifeminista.
"Nasci em berço cristão e conservador, na
cidade de Belo Horizonte… dentro da faculdade, fui cancelado diversas vezes por
expor minhas crenças e combater as ideias de esquerda, como o feminismo, a
ideologia de gênero, o socialismo e o aborto", se descreve Nikolas
Ferreira em seu website.
No perfil de @nikolas_dm, a quantidade de posts
sobre aborto e feminismo cresceu entre 2020 e 2022. Ao mesmo tempo em que faz
piadas, ele emprega forte ofensiva nos espaços de poder contra os projetos de
lei que visam igualdade de gênero, e utiliza a linguagem bélica, chamando o
debate sobre direitos de Guerra Cultural.
Quando surgem notícias sobre aborto, ele expõe sua
opinião radical, como nesse post no Twitter com 14 mil curtidas: "Se
liberar o aborto, tem que liberar a pena de morte. Se inocente pode morrer,
vagabundo também pode." No Dia da Mulher, colocou
uma peruca loira e ironizou mulheres trans na Câmara dos Deputados. Ele também ganha projeção em entrevistas com comentários polêmicos,
além de frequentemente espalhar conteúdos falsos. Por isso, foi repreendido
pelo Tribunal Superior Eleitoral.
·
Narrativas
multiplataforma
Conteúdos falsos ou fora de contexto sobre Direitos
Sexuais e Reprodutivos alicerçaram candidaturas conservadoras nas
eleições de 2022. O uso de robôs amplificou discursos antidireitos nas redes,
sendo o YouTube um grande canal de conteúdos ultraconservadores. O NetLab,
Laboratório de Estudos e Internet e Mídias Sociais da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ), fez um acompanhamento multiplataforma da desinformação
no período:
>>>> QUADRO NARRATIVAS
A opinião do pastor
O pastor Silas Malafaia (partido) segue a mesma
linha narrativa de Nikolas, com forte presença na internet, sobretudo no
YouTube. O presidente da Assembleia de Deus Vitória em Cristo grava vídeos com
opiniões enérgicas e se coloca como "voz em defesa da verdade". Em
seu canal com 1,7 milhão de inscritos, dissemina ideias como a de que aborto é
pior que estupro. Ele é uma das maiores influências religiosas e políticas do
país contra feministas, homossexuais e progressistas nas últimas décadas, e
forte aliado da bancada evangélica no Congresso Nacional.
Nas eleições presidenciais de 2022, Silas ajudou a
reverberar a informação falsa de que o então candidato Lula iria fechar igrejas
evangélicas. Outro tema recorrente nas postagens dele é a ideologia de gênero,
que ele define como “estratégia que visa destruir a família e erotizar as
nossas crianças." O religioso já foi denunciado por transfobia pela Aliança Nacional LGBTI, quando atacou o empresário Thammy
Miranda, homem trans que participaria de uma propaganda do Dia dos Pais de uma
grande marca.
·
Cursos para cristão se
posicionar
Enquanto o líder religioso vende o livro ‘Silas
Malafaia em Foco: O que pensa o pastor mais polêmico do Brasil sobre os mais
importantes temas da atualidade’, o deputado Nikolas Ferreira (PL) produz
conteúdo digital e vende um curso online a R$197. Nele, ensina cristãos a se
posicionarem politicamente contra aborto, ideologia de gênero, ativismo LGBTQIAP+
e feminismo. Os módulos iniciais são: 'Estamos em Guerra', 'Entendendo o
inimigo' e 'O socialismo'.
A deputada Ana Campagnolo, citada no início
do texto, oferece oficinas online sobre "mentiras feministas" e
o clube "antifeminista". Custa R$399.
Esse caminho adotado também por influenciadores
evangélicos - dando aulas, cursos e palestras, com discursos superficiais
distribuídos em massa - é um dos meios de popularizar esse debate e esvaziar o
sentido de gênero com ideias repetitivas. É o que a estudiosa dos movimentos
antigênero na América Latina e do antifeminismo político, Tabata Tesser chama
de pós-ideologia - assim como a pós-verdade, algo inventado que se propaga como
verdadeiro. Ela defende proibir a monetização nas redes de figuras públicas.
"Você usa sua rede de deputado e sua estrutura parlamentar para conseguir
recursos privados", alerta a doutoranda em Sociologia e mestra em
Ciência da Religião.
Amostras da forte atuação católica nesta área são
as clínicas e associações “pró-vida”, que buscam deter mulheres decididas a
interromper a gestação. “São lugares de conversão, tortura psicológica e que
constituíram uma rede consolidada, com mulheres à frente”, aponta a
pesquisadora Tabata, alertando para as vozes femininas no debate antifeminista,
contra aborto e ideologia de gênero. Elas aparecem como sujeitas políticas,
difundindo ódio e desinformação. Um exemplo é a própria Ana Campagnolo, que
pediu uma investigação parlamentar sobre o aborto legal de uma menina de 10
anos, em 2022.
A ideologia de gênero surge como agenda associada
ao aborto, vendida também como pauta moral nesses grupos antiaborto. Pais e
mães de alunos e organizações religiosas se unem para promover campanhas como a
"Escola sem Partido", que se desdobra na defesa de uma educação
domiciliar, tendo os pais como autoridade para falar sobre tudo.
·
Atuação social e política
Desde 2006, o Movimento Nacional da Cidadania Pela
Vida inflama a hashtag #BrasilSemAborto. Acompanhamos as postagens no Twitter
desde a criação do perfil, em 2009. Em 2012, ano em que o Supremo Tribunal
Federal (STF) descriminalizou o aborto por anecefalia, a conta fez grande
empreitada contra a decisão.
Nas redes, propagam conteúdos como: "série
#VerdadePelaVida é sobre o início da vida. O que diz a medicina? Não se deixe
enganar". Incentivam que as pessoas liguem no gabinete do STF para falar
contra o aborto, e promovem a Marcha pela Vida, bem como as hashtags
#abortoépreconceito ou #asduasvidasimportam.
A campanha #BrasilSemAborto também atua na
política, apoiando candidatos antiaborto em eleições, período em que teve mais
engajamento no Twitter. E, há anos, patrocina a coleta de assinaturas para
votação e aprovação no Congresso Nacional do Estatuto do Nascituro. O projeto
de lei (PL 478/2007) quer dar a fetos direitos de cidadão, impedindo todo e
qualquer aborto.
A presença dos evangélicos na política vem
crescendo nas últimas décadas. Na Câmara dos Deputados, eles são pelo menos 15%
do total. O pleito eleitoral de 2022 teve recorde de religiosos eleitos. Jair Bolsonaro
sempre liderou a pauta contra o direito das mulheres no Congresso, e foi um
grande perseguidor do uso do termo gênero. Ao se tornar presidente, enfraqueceu
e eliminou as políticas de direitos sexuais e reprodutivos, que falassem em
aborto e gênero no Sistema Único de Saúde (SUS).
Ataques virtuais, violência reais
Mesmo com o fim do governo Bolsonaro, a combinação
do discurso antiaborto, conteúdos falsos e ataques contra mulheres e pessoas
LGBTQIAP+ por líderes religiosos e políticos da extrema-direita continuam
ativos. Operam muito na esfera digital, mas têm consequências reais.
O número de feminicídios no Brasil cresce ano a
ano, ultrapassando mais de três mortes por dia, em média, de acordo com o Fórum
Brasileiro de Segurança Pública. Em 2022, foram 1.437 mulheres assassinadas e
quase 75 mil vítimas de estupro, sendo a maioria criança.
Os casos de violência contra a população LGBTQIAP+
no Brasil aumentaram 164%, passando de 1.367 em 2021 para 3.613 em 2022,
incluindo denúncias de violência física, sexual, psicológica, patrimonial,
tortura, negligência, discriminação, entre outras, recebidas pelo Disque
100 (Ouvidoria do Ministério do Direito Humanos). Só entre a população trans,
foram 131 assassinatos em 2022, conforme a Associação Nacional de Travestis e
Transexuais (Antra).
O Brasil ainda processa judicialmente e mata
mulheres que abortam. Em uma década o Data SUS registrou 528 mortes em
procedimentos pós-abortamento, e mais de 1.000 brasileiras (1.296) foram
acusadas judicialmente por aborto entre 2018 e 2022, segundo o Conselho
Nacional de Justiça (CNJ). Apenas em 2022 foram 464 mulheres processadas, três
vezes mais que em 2021. Neste ano (2023), até abril, já são 189 processos de
aborto praticados pela gestante. Discursos de ódio e motivações políticas
acabam por incentivar as denúncias contra mulheres que buscam atendimento de
saúde após um abortamento.
Estima-se que meio milhão de brasileiras sofreram
abortos em 2021, segundo a Pesquisa Nacional do Aborto (PNA-2021), no entanto,
menos de 200 mil vão aos hospitais públicos buscar ajuda ou finalizar o
procedimento. A maioria delas interrompe as gestações na clandestinidade, sem
informações ou orientações seguras, arriscando a própria vida. Por isso,
especialistas na área defendem que a criminalização do aborto é tornar delito
uma necessidade de saúde reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS). A
PNA apontou que 1 a cada 7 mulheres de 40 anos já abortou pelo menos uma vez,
mostrando que esse é um evento cotidiano na vida da mulher.
·
A desinformação afasta
pessoas
A eleição de Bolsonaro em 2018 também afastou do
Brasil figuras importantes nos debates de aborto, gênero e diversidade sexual,
que foram alvos de ataques de ódio online e desinformação. Entre elas estão a
antropóloga Débora Diniz e o então deputado federal Jean Wyllys.
Em 2022, algumas brasileiras com notável jornada
política em defesa dos direitos humanos e feministas também desistiram de
disputar as eleições. Foi o caso da jornalista Manuela D'ávila, da deputada
federal de Minas Gerais Áurea Carolina e da deputada estadual de São Paulo
Erica Malunguinho.
Simony, feminista evangélica que abriu essa
reportagem, sonha com um Brasil justo com as mulheres, que não seja misógino,
racista, LGBTQfóbico, e que não explore os pobres. Ela luta para que não se
utilize da fé das pessoas para oprimi-las.
Fonte: AzMina
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