Vijay Prashada: A fome no mundo e a guerra na Ucrânia
Em uma segunda-feira, 17 de junho, Dmitry Peskov,
porta-voz do presidente da Rússia, Vladimir Putin, anunciou: "Os acordos do Mar Negro não estão mais em vigor". Essa foi
uma declaração contundente no sentido de suspender a Iniciativa de Grãos do Mar
Negro, que surgiu de intensas negociações nas horas seguintes à entrada das
forças russas na Ucrânia em fevereiro de 2022. A Iniciativa entrou em vigor em
22 de julho de 2022, depois que autoridades russas e ucranianas a assinaram em Istambul, na presença do secretário-geral das Nações Unidas,
António Guterres, e do presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdoğan.
Guterres chamou a Iniciativa de "farol de esperança" por dois motivos.
Primeiro, por ser surpreendente ter um acordo desse tipo entre países
beligerantes em uma guerra em andamento. Em segundo lugar, porque a Rússia e a
Ucrânia são grandes produtoras de trigo,
cevada, milho, colza e óleo de colza, sementes de girassol e óleo de girassol,
bem como fertilizantes de nitrogênio, potássio e fósforo, representando 12% do total
de calorias comercializadas. A interrupção do fornecimento da Rússia e da
Ucrânia, segundo uma série de organizações internacionais, teria um impacto
catastrófico nos mercados mundiais de alimentos e na fome. Com o aumento das
sanções ocidentais contra a Rússia, principalmente dos EUA, do Reino Unido e da Europa, a viabilidade do acordo
começou a decair. Ele foi suspenso várias vezes durante o ano passado. Em março
de 2023, a porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da Rússia, Maria
Zakharova, respondendo às sanções contra a agricultura russa, disse: "[Os principais] parâmetros previstos no acordo [de grãos] não
funcionam".
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A financeirização leva à fome
O secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, disse que seu país lamenta a
"contínua utilização de alimentos como arma" pela Rússia, pois isso
"prejudica milhões de pessoas vulneráveis em todo o mundo". De fato,
o momento da suspensão não poderia ser pior. Um relatório das Nações Unidas, "O Estado da Segurança Alimentar e
Nutricional no Mundo 2023" (12 de julho de 2023), mostra que uma em
cada dez pessoas no mundo luta contra a fome e que 3,1 bilhões de pessoas não
têm condições de ter uma dieta saudável. Mas o próprio relatório faz uma
observação interessante: a guerra na Ucrânia levou 23 milhões de pessoas à
fome, um número pálido em comparação com os outros causadores da fome – como o
impacto dos mercados de alimentos comercializados e a pandemia da COVID-19.
Um relatório de 2011 do
World Development Movement chamado "Mercados quebrados: como a
regulamentação do mercado financeiro pode ajudar a evitar outra crise global de
alimentos" mostrou que "os especuladores financeiros agora
dominam o mercado [de alimentos], detendo mais de 60% de alguns mercados, em
comparação com 12% há 15 anos".
A situação piorou desde então. A Dra. Sophie van
Huellen, que estuda a especulação financeira nos mercados de alimentos, apontou no final
de 2022 que, embora haja de fato escassez de alimentos, "a atual crise de
alimentos é uma crise de preços, e não uma crise de abastecimento". O fim
da Iniciativa de Grãos do Mar Negro é de fato lamentável, mas não é a principal
causa da fome no mundo. A principal causa – como até mesmo o Comitê Econômico e
Social Europeu concorda – é a
especulação financeira nos mercados de alimentos.
·
Por que a Rússia suspendeu a Iniciativa?
Para monitorar a Iniciativa de Grãos do Mar Negro,
as Nações Unidas criaram um Centro de Coordenação Conjunta (CCC) em Istambul.
Essa equipe é formada por representantes da Rússia, Turquia, Ucrânia e das
Nações Unidas. Em várias ocasiões, o JCC teve de lidar com as tensões entre a
Rússia e a Ucrânia em relação aos carregamentos, como quando a Ucrânia atacou a Frota Russa do Mar Negro - com alguns dos navios transportando
grãos - em Sevastopol, na Crimeia, em outubro de 2022. As tensões permaneceram
sobre a iniciativa à medida que as sanções ocidentais contra a Rússia se
tornaram mais rígidas, dificultando a exportação de seus próprios produtos
agrícolas para o mercado mundial.
A Rússia colocou três exigências na mesa das Nações
Unidas com relação ao seu próprio sistema agrícola. Primeiro, o governo
russo solicitou que
o Banco
Agrícola Russo - o principal banco de crédito e comércio
para a agricultura russa - fosse reconectado ao sistema SWIFT, do qual havia
sido cortado pelo sexto pacote de sanções da
União Europeia, em junho de 2022. Um banqueiro turco disse à TASS que existe a possibilidade de a União Europeia
"emitir uma licença geral para o Banco Agrícola Russo" e que o banco
"tem a oportunidade de usar o JP Morgan para realizar transações em dólares
americanos", desde que os exportadores que estão sendo pagos façam parte
da Iniciativa de Grãos do Mar Negro.
Em segundo lugar, desde as primeiras discussões
sobre a Iniciativa dos Grãos, Moscou colocou na mesa a exportação de
fertilizante de amônia da Rússia, tanto pelo porto de Odesa quanto pelos
suprimentos mantidos na Letônia e na Holanda. Uma parte central do debate foi a
reabertura do oleoduto Togliatti-Odesa, o mais longo oleoduto de amônia do
mundo. Em julho de 2022, a ONU e a Rússia assinaram um acordo que facilitaria a
venda de amônia russa no mercado mundial. Guterres, da ONU, foi ao Conselho de
Segurança para anunciar: "Estamos
fazendo todo o possível para... aliviar a grave crise do mercado de
fertilizantes que já está afetando a agricultura na África Ocidental e em outros
lugares. Se o mercado de fertilizantes não for estabilizado, o próximo ano
poderá trazer uma crise de abastecimento de alimentos. Simplificando, o mundo
pode ficar sem alimentos". Em 8 de junho de 2023, forças ucranianas explodiram uma parte
do oleoduto Togliatti-Odesa em Kharkiv, aumentando as tensões sobre essa
disputa. Além dos portos do Mar Negro, a Rússia não tem outra maneira segura de
exportar seus fertilizantes à base de amônia.
Em terceiro lugar, o setor agrícola da Rússia
enfrenta desafios devido à falta de capacidade de importar máquinas e peças de
reposição, e os navios russos não podem contratar seguros ou entrar em muitos
portos estrangeiros. Apesar das "exceções" nas sanções ocidentais
para a agricultura, as sanções contra empresas e indivíduos debilitaram o setor
agrícola da Rússia.
Para combater as sanções ocidentais, a Rússia impôs
restrições à exportação de fertilizantes e produtos agrícolas. Essas restrições
incluíram a proibição da exportação de determinados produtos (como proibições temporárias de
exportação de trigo para a União Econômica Eurasiática), o aumento das
exigências de licenciamento (inclusive para fertilizantes compostos, exigências estabelecidas
antes da guerra) e o aumento dos
impostos de exportação. Essas medidas russas são acompanhadas de vendas diretas
estratégicas para países como a Índia, que as re-exportará para outros países.
No final de julho, São Petersburgo sediará o Segundo Fórum Econômico e Humanitário
Rússia-África, onde esses temas certamente estarão no centro das
atenções. Antes da cúpula, o presidente Putin telefonou para Cyril Ramaphosa,
da África do Sul, para informá-lo sobre os problemas enfrentados pela Rússia na
exportação de seus alimentos e fertilizantes para o continente africano.
"O principal objetivo do acordo", disse ele sobre a Iniciativa de Grãos do Mar Negro, que era "fornecer
grãos aos países necessitados, incluindo os do continente africano, não foi
implementado".
É provável que a Iniciativa de Grãos do Mar Negro
seja retomada dentro de um mês. As suspensões anteriores não duraram mais do
que algumas semanas. Mas, desta vez, não está claro se o Ocidente dará à Rússia
algum alívio em sua capacidade de exportar seus próprios produtos agrícolas.
Certamente, a suspensão afetará milhões de pessoas em todo o mundo que lutam
contra a fome endêmica. Bilhões de outras pessoas que passam fome devido à
especulação financeira nos mercados de alimentos não são afetadas diretamente
por esses acontecimentos.
Ø Rússia usa acordo de grãos
como arma de guerra, diz especialista
Em julho de 2022, cerca de 6 meses depois do início
da guerra entre a Rússia e a Ucrânia, os 2 países assinaram um acordo para permitir a circulação de
navios civis pelo mar Negro para a exportação de grãos ucranianos. Depois de
quase 1 ano do acordo e 3 renovações, a Rússia decidiu deixar o trato internacional.
Em entrevista ao Poder360, o professor de relações internacionais da UnB
(Universidade de Brasília) Roberto Goulart Menezes afirmou que a decisão russa
de encerrar o acordo, em 17 de julho, “não deve perdurar muito”.
“A
pressão sobre a Rússia seguirá grande e, ao levar a uma situação parecida com a
questão da energia. Quanto menos oferta de energia por parte da Rússia, o preço
da energia disparou na Europa e começou a afetar outras partes do mundo também”, disse.
A respeito dos grãos, o professor afirmou que “é
ainda mais grave porque envolve a saúde humana”.
“Eu
diria que é uma arma de guerra que a Rússia está usando, ou seja, ela está
jogando com a necessidade vital no mundo e tentando, com isso, atrair mais
atenção diplomática. […] Pode ser um novo capítulo na
guerra, mas acho que, agora, a etapa que estamos é a utilização do alimento
como instrumento de guerra”, declarou Menezes.
Segundo o professor, o preço das commodities foi um
dos primeiros impactos do início da guerra, em especial o preço da
comida. “Isso afeta cerca de 400 milhões de pessoas, as mais pobres do
mundo, porque dependem fortemente de parte desses grãos”.
De acordo com Roberto Menezes, Rússia e Ucrânia
têm, somadas, entre 25% e 28% dos grãos do mundo. “Por isso preocupa
muito a ONU [Organização das Nações Unidas] o fato desse
alimento não conseguir ser escoado da Ucrânia”.
O professor explica também que “o fim do
acordo significa que Putin não reconhece mais os navios [transportadores] como
embarcações civis asseguradas por um acordo. Quando a Rússia se retira do
acordo, ela afirma que todo navio que entrar [no mar de Azov] e
retirar grãos da Ucrânia serão considerados aliados da Ucrânia”.
Segundo Menezes, o fim do acordo pode ter impactos
nos aspectos geopolítico e militar, social e econômico.
“Do
ponto de vista geopolítico e militar, a Rússia está desafiando os outros
países. Do ponto de vista social, aumentando a insegurança alimentar no mundo,
sobretudo para os mais pobres do mundo que têm em sua dieta diária a
necessidade de consumir trigo. E, em 3º lugar, a questão econômica, tanto
envolvendo as seguradoras [de
exportação], como a própria produção de mais grãos. Porque se não se
consegue assegurar a retirada, é um prejuízo muito grande para os produtores
ucranianos”, disse Roberto Goulart Menezes.
Em 18 de julho, 1 dia depois que o acordo foi
encerrado, o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky afirmou que o transporte dos grãos poderia ser realizado sem a Rússia.
No entanto, Menezes disse que não vê a viabilidade
desta proposta. “Os navios não vão entrar na região se não estiverem
assegurados e, ao mesmo tempo, a Rússia já
bombardeou os portos, então está debilitando a infraestrutura ucraniana“, disse.
“Diplomaticamente
seria um desgaste internacional muito grande para a Rússia se ver um navio
imenso carregado de grãos sendo bombardeado. Isso poderia aumentar as sanções
contra a Rússia e até trazer novos países para reforçar o isolamento que o país
está enfrentando”.
Para mitigar o impasse, o professor avalia que a
ONU (Organização das Nações Unidas) poderia assumir um papel, assim como nas
negociações para que o 1º acordo fosse firmado, criando um novo tratado
temporário.
“O
que a ONU poderia fazer diplomaticamente seria convencer o governo russo de [assinar] um acordo em que houvesse períodos em que
pudesse ser retirado esses grãos por uma questão humanitária. É inconcebível
que a região que produz cerca de 28% dos grãos e cereais no mundo fique
bloqueada”, afirma Menezes.
Além da exportação de grãos, a Rússia também é uma
grande produtora de fertilizantes e, com o fim do acordo, segundo o professor,
ela também pode acarretar aumento no preço de insumos para a produção de
alimentos em outros países que dependem de fertilizantes russos.
“Com
isso, outras regiões do mundo como o Brasil, a Argentina, os Estados Unidos, as
regiões que mais importam fertilizantes da Rússia, poderia também não só
dificultar o acesso alimentos, porque eles não conseguem escoar o que está na
Ucrânia, como também reduzir a produção de alimentos em outras partes do
mundo”, disse Menezes.
Na 3ª feira (25.jul), o porta-voz do Kremlin,
Dmitry Peskov, afirmou ser “impossível”, no momento, o retorno da Rússia ao acordo para exportações de grãos
pelo mar Negro.
Segundo Peskov, a Rússia só voltaria ao acordo caso
suas demandas sejam atendidas, entre elas, a facilitação para exportações
russas de alimentos e fertilizantes, que sofrem com sanções de países do
Ocidente em resposta à guerra.
Fonte: Globetrotter/Poder 360
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