Palestina e favelas cariocas: os guetos negligenciados
Diariamente nos deparamos com mortes nas
comunidades cariocas (rotuladas pejorativamente como favelas, mas ignorando sua
origem durante a Guerra de Canudos, quando soldados improvisaram moradias em
alguns lugares, inicialmente na chamada Morro da Favela, que recebia esse nome
pela presença de plantas conhecidas como “favela” – Cnidoscolus quercifolius),
assim como na Palestina ocupada. Confrontos desiguais e que parecem não ter
solução.
Muitos podem estar se perguntando qual a relação
que essas situações têm. Explico.
As chacinas que ocorrem nas comunidades,
eufemisticamente chamadas de “operações policiais contra traficantes”, se
utilizam de um discurso vazio, racista e usa armamentos pesados, drones e
blindados como os tais “Caveirões” com tecnologia desenvolvida pelas forças
militares e sionistas de Israel.
Tal como fazem na Palestina, testam contra o povo
inocente, rotulando-os de forma genérica como bandidos, agressores.
Utilizando-se de técnica e treinamento das forças militares israelenses, a
polícia atua para o genocídio do povo pobre e preto das comunidades
periféricas.
Em ambas as situações o Estado é racista, e segue
promovendo a limpeza étnica. Racismo esse, é bom que se diga, que atende aos
interesses do capitalismo, assim como o sexismo, misoginia, machismo,
sustentáculos deste sistema.
Para a mídia, o agente dos crimes sempre é o povo
marginalizado (ou, como propagam: bandidos, terroristas, traficantes,
suspeitos), cabendo às forças militares reagirem como defesa. Com isso,
promovem extermínio através de chacinas.
Não à toa, com governos de extrema-direita no
Brasil (sob a égide do inelegível e seus comparsas como Cláudio Castro, Wilson
Witzel e cia), as mortes por tais operações batem recordes e são normalizadas
como “eliminação de bandidos”. Lembro aqui que durante o primeiro ano do
governador fascista Wilson Witzel – aquele mesmo que comemorou com pulos a
morte de pessoas, defendeu “tiro na cabeça” e que “abate” de criminoso não é
crime – houve um recorde nas mortes por ações policiais.
Na Palestina ocupada, não é diferente.
Recentemente, o ministro israelense de Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir,
defendeu explicitamente o extermínio dos palestinos e árabes, incitando os
colonos judeus a atirar, e vangloriando-se de que “neste governo, matamos 120
palestinos nos últimos seis meses e haverá mais no futuro”.
Impossível não fazer relação ao ex-presidente e
toda sua laia, que defendia exatamente o acesso às armas para “metralhar a
petralhada” e “o pessoal do MST”. Tais discursos promoveram não apenas a maior
radicalização da sociedade, mas aumentaram significativamente os casos de
violência e mortes.
No que se refere às ações policiais no Rio de
Janeiro, apenas entre 2007 e 2021 foram registradas 593 chacinas, o que
resultou em 2.374 mortes, sendo 1.599 apenas na capital fluminense. Em 2022 as polícias mataram 1.327 pessoas no
estado, representando um terço das mortes violentas no Rio.
Fiz um levantamento para tentar dimensionar o
número de palestinos que já morreram de 1948 – após o início do processo de
expulsão e genocídio do povo palestino – até hoje sob a política racista e de
apartheid de Israel, com base em dados oficiais da ONU, Human Rights Watch,
Israel-Palestine Timeline e Centro de Estatística do Estado da Palestina.
Ainda que não tenha encontrado dados referentes aos
anos de 1950 a 1965, fiz o cálculo com base em dois valores: um que se refere
aos assassinatos entre 1948 e 1949 (10 mil mortos, com média de 5 mil/ano) e
outro com os dados de 1965 até 2022 (25.425 mortos, com média de 425/ano).
Sendo assim, projetando-se a média mínima e a máxima, encontrei números
estarrecedores: desde o início da expulsão dos palestinos, tivemos entre 41.800
e 64.510 mortos. Em 2023, até junho, Israel já matou 163 palestinos.
E, tal como no Rio de Janeiro, o genocídio
continua.
Ilustrando o quão desigual é o conflito, segundo o
Statista – portal de estatísticas alemão que reúne os dados recolhidos pelo
Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA)
–, o número de palestinos mortos é 22 vezes maior que o número de
israelenses.
Lembro aqui algumas das crianças
vitimadas/assassinadas pelas operações policiais nas comunidades cariocas:
Ágatha Félix, Kauê Ribeiro dos Santos, Marcos Vinícius da Silva, Kauã Rozário,
Kauan Peixoto e Jenifer Silene Gomes, João Pedro Matos Pinto, Djalma de Azevedo
Clemente. E outras que nem chegaram a nascer, como os filhos das dez gestantes
mortas nos últimos seis anos, assassinadas pelas tais “balas perdidas” (que
sempre encontram pretos e pobres). É justamente no Rio de Janeiro que quase 40%
das mortes de crianças e adolescentes de todo o país acontecem.
Na Palestina, crianças também sofrem pela ação
truculenta e desumana das forças militares de Israel. Somente entre 2008 e
junho de 2023, 1.418 crianças foram assassinadas pelos sioinistas.
No relatório divulgado pela Defense for Children
International os dados são revoltantes: quatro em cada cinco crianças
palestinas detidas pelas forças de ocupação israelenses são submetidas a violência
física durante a prisão ou interrogatório. Como forma de tortura, 49% das
crianças foram mantidas em confinamento solitário, em média, por 16 dias. 81,5%
das crianças relataram terem sido abusadas fisicamente por soldados ou
policiais israelenses, o que incluía tapas, socos, chutes e espancamentos com
armas. Israel faz isso contra crianças!
Desrespeitando as orientações da ONU – o que não é
nenhuma novidade por parte de Israel, que não cumpre os Acordos de Oslo e as
próprias Cartas e Resoluções da ONU (Artigos 1, 2, 3 e 4 da Carta das Nações
Unidas; Resolução 260 -Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de
Genocídio; Resolução 1514 – Declaração sobre a Concessão da Independência aos
Países e Povos Coloniais; Resolução 1761 – Sanções recomendadas contra a África
do Sul em resposta à política governamental de apartheid; Resolução 2106 –
Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial;
Resolução 3068 – Convenção Internacional sobre a Supressão e Punição do Crime
de Apartheid) – forças militares seguem sequestrando, aprisionando e torturando
crianças palestinas, com média de 600 prisões infantis/ano.
E assim como acontece com a população do Rio de
Janeiro, carregam sequelas e traumas para a vida toda. São danos psicológicos
(traumas) e físicos (desnutrição, falta de acesso à saúde e água potável) que
afetam seu desenvolvimento e até de gerações futuras, como já provou a
epigenética.
Sejam danos físicos, mutilações, sejam
psicológicas, causadas pelas invasões, tiroteios e arbitrariedades, como as
demolições de mais de 131 mil moradias e
a destruição de outras tantas pelos israelenses e seus bombardeios, inclusive
em escolas e hospitais. Imagine você nascer e não ter liberdade de circulação
em sua própria terra, sempre sujeitando-se aos checkpoints sionistas. Imagine
uma criança não poder frequentar sua escola porque está em meio a um tiroteio?
Nem mesmo os doentes têm vida fácil sob o regime de
apartheid de Israel, que muita vezes impede o tratamento e cuidado de
pacientes, como foi o caso emblemático de Kamal Abu Wa’er, que morreu de câncer
aprisionado pelos sionistas sem direito ao tratamento. Em 2017, por exemplo, 54 palestinos morreram
enquanto esperavam de Israel a autorização para sair dos territórios palestinos
em Gaza para receber atenção médica.
Em sua política de terror para gerar um ambiente
inóspito à sobrevivência, Israel segue restringindo o acesso aos combustíveis,
eletricidade e água potável, principalmente em Gaza. As mais de 2 milhões de
pessoas que ali resistem têm apenas 4 horas de eletricidade por dia, e 96% da
água potável está contaminada. Em outras localidades, colonos judeus, com apoio
dos militares israelenses, invadem terras palestinas destruindo plantações,
matando e roubando animais, destruindo moradias e inviabilizando a reconstrução
das mesmas, pois até o acesso de caminhões e materiais de construção é limitado
pelos sionistas.
Entidades denunciam os efeitos na saúde mental das
crianças, expostas constantemente a estressores traumáticos. Levantamentos
apontam que quatro em cada cinco crianças na Faixa de Gaza vivem com depressão, tristeza e medo, e mais
da metade delas já pensou em cometer suicídio. Casos de automutilação afetam
três em cada cinco dessas crianças. Não se estranha, infelizmente, que 91%
sentem-se inseguras, 84% com medo e 73% apresentam dificuldades para dormir.
E não se sustenta o discurso de que os palestinos é
que não desejam a paz. Lembremos do assassinato, por parte dos sionistas, do
diplomata sueco Folke Bernadotte – o mesmo que libertou mais de 30 mil judeus
dos campos nazistas –, escolhido como mediador da ONU para pacificar a situação
em 1948. Ou ainda podemos citar o assassinato do premiê israelense Yitzhak
Rabin em praça pública por um sionista, que era contra o Acordo de Oslo, que
daria início a um possível acordo de paz.
E para quem tenta imputar a culpa aos palestinos,
lembremos o que Malcolm X disse: “não confunda a reação do oprimido com a
violência do opressor”.
O capitalismo, raiz de todo esse mal descrito,
segue tentando apagar essas populações através do derramamento de sangue preto
e palestino. Não por coincidência, o discurso que os sionistas usaram para a
ocupação da Palestina é o mesmo que o militares da época da ditadura (e de onde
foram paridas as polícias fascistas que seguem exterminando a população
periférica) defenderam para o apagamento dos povos: uma terra sem homens para
os homens sem terra.
Novamente, assim como ocorre na Palestina, os
órgãos que deveriam ser responsáveis pelas investigações e punições dos
assassinos seguem omissos. A ONU, cada vez mais desacreditada e fragilizada, servindo
apenas como marionete do imperialismo (decadente) estadunidense/sionista, nada
faz. Aqui no Brasil, instituições que deveriam zelar pela segurança e justiça,
exercem o mesmo papel ultrajante. Na maior chacina que ocorreu no Rio de
Janeiro, a do Jacarezinho e seus 28 mortos, em 6 de maio de 2021, dez das treze
investigações do MP foram simplesmente arquivadas.
Assim sendo, lutar pela causa legítima da Palestina
é igualmente necessário contra o racismo estrutural impregnado na sociedade
como um todo. Afinal, o terrorismo de Israel e os esquadrões da morte das
polícias seguirão até quando cometendo crimes? A “carne preta” e palestina
pouco importa para a comoção da sociedade? Nossa indignação ficará restrita às
notas de repúdio? Aguardaremos atitude de Estados comprometidos com a
burguesia? Como diz o camarada André Constantine, naturalizaremos esses “alvos
matáveis”? As faixas de Gaza estão clamando por socorro, e este só virá pela
organização e mobilização popular.
Assim como Ilan Pappe redefine sionismo como
colonialismo, Israel como Estado de apartheid e a Nakba como limpeza étnica,
proponho também a ressignificação das operações policiais nas comunidades como
genocídio da população preta e polícia como capitães do mato do sistema
capitalista burguês. Afinal, em ambas as situações o que se pretende é a
eliminação e a desumanização dos povos.
Aos desinformados, o desconto da ignorância. Aos
que agem com desonestidade intelectual e seguem apoiando tais crimes, a
cumplicidade e a culpa do sangue derramado de pessoas inocentes, injustiçadas
pela ação de Estados racistas.
Fonte: Luiz Fernando Leal Padulla, no Le Monde
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