O livro sagrado indiano que influenciou Oppenheimer
Oppenheimer — o novo e arrebatador filme biográfico de Christopher Nolan sobre o
físico norte-americano Robert Oppenheimer (1904-1967), o “pai da bomba atômica”
— vem sendo aclamado em todo o mundo.
Na Índia, o filme
também foi recebido com sucesso, mas gerou protestos contra uma cena
que mostra o cientista lendo o Bhagavad Gita — um dos livros
mais sagrados do hinduísmo — após fazer sexo.
O Bhagavad Gita era um dos livros
favoritos de Oppenheimer. O físico chegou a aprender sânscrito para poder ler a
obra no idioma original.
Em julho de 1945, dois dias antes da explosão da primeira
bomba atômica no deserto do Novo México (EUA), Robert Oppenheimer recitou um
trecho do Bhagavad Gita (a “Canção Divina”, em sânscrito).
Físico teórico, Oppenheimer havia sido apresentado
ao antigo idioma da Índia e ao Bhagavad Gita anos antes,
quando era professor da Universidade da Califórnia em Berkeley, nos Estados
Unidos.
Escrito há 2 mil anos, o Bhagavad Gita é
parte do Mahabharata, um dos mais importantes épicos clássicos
do hinduísmo e, com 700 versos, o poema mais longo do mundo.
Horas antes do evento que mudaria a história do
mundo, o “pai da bomba atômica” aliviou sua tensão recitando uma estrofe que
ele próprio havia traduzido do sânscrito:
“Na batalha,
na floresta, no precipício das montanhas
No grande mar escuro, em meio a dardos e flechas,
No sono, na confusão, nas profundezas da vergonha,
As boas obras antes feitas por alguém saem em sua
defesa”
Na respeitada biografia American
Prometheus: The Triumph and Tragedy of J. Robert Oppenheimer (“Oppenheimer:
O triunfo e a tragédia do Prometeu americano”, Ed. Intrínseca, 2023), publicada
originalmente em 2005, os autores Kai Bird e Martin J. Sherwin contam que o
jovem Oppenheimer conheceu o sânscrito através de Arthur W. Ryder, professor do
idioma da Universidade da Califórnia em Berkeley.
O físico havia chegado à universidade como
professor assistente com 25 anos de idade. E, ao longo das décadas seguintes,
ele ajudou a construir uma das “maiores escolas de física teórica” dos Estados
Unidos.
Ryder era republicano e “iconoclasta com a língua
afiada”. Ele ficou fascinado por Oppenheimer. Já o físico considerava Ryder um
“intelectual por excelência” — um acadêmico que “sentia, pensava e falava como
um estoico”.
O pai do jovem cientista, que trabalhava como
importador de tecidos, era da mesma opinião. Para ele, Ryder era uma “notável
combinação de austeridade, através da qual espreitava a alma mais gentil”.
Oppenheimer também considerava Ryder uma pessoa
rara, com “um senso trágico da vida, que atribui às ações humanas papel
absolutamente decisivo na diferença entre a salvação e a perdição”.
Ryder logo começaria a dar aulas particulares de
sânscrito para Oppenheimer nas noites de quinta-feira.
“Estou aprendendo sânscrito”, escreveu o cientista
para seu irmão Frank, “gostando muito e aproveitando novamente o doce luxo de
ter alguém para me ensinar”.
Muitos amigos de Oppenheimer estranharam essa nova
obsessão do físico pelo antigo idioma indiano, segundo seus biógrafos. Um
deles, Harold F. Cherniss (que havia apresentado o cientista ao acadêmico),
achou que fazia “total sentido”, já que Oppenheimer tinha um “gosto pelo
místico e pelo enigmático”.
Por isso, o conhecimento de Oppenheimer sobre o
sânscrito e o Bhagavad Gita é claramente pertinente para a história
do filme. Mas alguns hindus conservadores se queixaram, particularmente da cena
de sexo entre o físico (interpretado pelo ator Cillian Murphy) e sua amante
Jean Tatlock (Florence Pugh). Eles afirmam que o filme é ofensivo à sua
religião e exigem o corte da cena.
Mas os censores indianos não consideraram que ali
houvesse um problema e o filme é a maior bilheteria de Hollywood na Índia em
2023 — superando Barbie,
desde a estreia simultânea dos dois filmes, em 21 de julho.
Oppenheimer, sem dúvida, tinha ampla cultura. Ele
estudou Filosofia, Literatura Francesa, Inglês e História. Ele chegou a pensar
em aprender Arquitetura e até se tornar estudioso dos clássicos, poeta ou
pintor.
O físico escreveu poemas sobre “temas de tristeza e
solidão” e se identificava com o “existencialismo esparso” de T. S. Eliot
(1888-1965) no poema A Terra Devastada (“The Waste Land”, no
original em inglês).
“Ele gostava de coisas que fossem difíceis”, afirma
Cherniss. “E, como quase tudo era fácil para ele, o que realmente chamava sua
atenção era essencialmente o difícil.”
Com sua facilidade para idiomas, Oppenheimer
estudou grego, latim, francês e alemão. Ele também aprendeu holandês em um mês
e meio. Por isso, “realmente não levou muito tempo” para que ele lesse o Bhagavad
Gita em sânscrito.
O cientista achou o livro “muito fácil e
maravilhoso”, chegando a dizer aos amigos que era “a canção filosófica mais
bela existente em qualquer língua conhecida”.
Na sua biblioteca, havia uma cópia do livro com
capa rosa, que Ryder havia dado de presente para o físico. E o próprio
Oppenheimer deu cópias de presente para seus amigos.
Seus biógrafos escrevem que o cientista ficou tão
“maravilhado com seus estudos de sânscrito” que, em 1933, quando seu pai deu a
ele um automóvel Chrysler, ele deu ao carro o nome de Garuda — o deus-pássaro
gigante da mitologia hindu.
Na primavera daquele mesmo ano, Oppenheimer havia
escrito uma carta um tanto floreada para o seu irmão, explicando por que a
disciplina e o trabalho sempre foram seus princípios orientadores — o que
remetia ao seu fascínio pela filosofia oriental.
Segundo o físico, “pela disciplina, embora não
apenas pela disciplina, podemos atingir a serenidade e uma certa medida,
pequena mas preciosa, de liberdade dos acidentes da encarnação... e aquele
desapego que preserva o mundo do qual se renuncia”.
Para ele, somente através da disciplina, é possível
“ver o mundo sem a distração grosseira do desejo pessoal e, ao fazê-lo,
aceitamos mais facilmente nossas privações terrenas e seu horror terreno”.
“Pouco antes de completar 30 anos, Oppenheimer
parecia estar buscando um desapego terreno”, segundo seus biógrafos. “Em outras
palavras, ele desejava engajar-se como cientista no mundo físico, mas ainda se
desapegar dele.”
“Ele não procurava escapar para um reino puramente
espiritual. Ele não estava buscando a religião. O que ele buscava era a paz de
espírito. O Bhagavad Gita parecia fornecer exatamente a
filosofia correta para um intelectual entusiasticamente afinado com os assuntos
dos homens e os prazeres dos sentidos”, segundo Bird e Sherwin.
Um dos textos favoritos de Oppenheimer em sânscrito
era Meghaduta, um poema lírico escrito por Kalidasa, que foi um dos
maiores poetas a escrever naquele idioma.
“Li Meghaduta com Ryder, com
prazer, alguma facilidade e grande encantamento”, escreveu o físico para seu
irmão Frank.
Por que Oppenheimer voltou-se para o Bhagavad
Gita e suas noções de carma, destino e deveres terrenos de forma tão
fervorosa? Seus biógrafos arriscam-se a sugerir uma razão:
“Talvez a atração que Robert sentiu pelo fatalismo
do Bhagavad Gita fosse estimulada, pelo menos, por uma
florescente revolta tardia contra o que ele havia aprendido quando jovem.” Eles
se referem à associação precoce do cientista à Sociedade de Cultura Ética, um
“ramo exclusivamente norte-americano do judaísmo que celebrava o racionalismo e
um tipo progressista de humanismo secular”.
É preciso ter em mente que Oppenheimer não era o
único ocidental a admirar o texto hindu. O filósofo americano Henry David
Thoreau (1817-1862) escreveu sobre sua imersão na “estupenda e cosmogônica
filosofia do Bhagavad Gita que, em comparação, faz com que o
nosso mundo moderno e sua literatura pareçam triviais e insignificantes”.
Heinrich Himmler (1900-1945), na Alemanha nazista,
também era um admirador do Bhagavad Gita. Mahatma Gandhi
(1869-1948) era um ardente seguidor do épico hindu e dois poetas admirados por
Oppenheimer – W. B. Yeats (1865-1939) e T. S. Eliot – haviam lido o Mahabharata.
A visão da nuvem gigante em forma de cogumelo se
elevando aos céus após o primeiro teste da bomba atômica levou Oppenheimer a
ler novamente o Bhagavad Gita. As bombas que caíram posteriormente
sobre Hiroshima e Nagasaki, no Japão, durante a Segunda Guerra Mundial, mataram
dezenas de milhares de pessoas.
“Nós sabíamos que o mundo não seria mais o mesmo”,
declarou o físico à rede de TV americana NBC em um documentário de 1965.
“Alguns riram, outros choraram. A maioria ficou em silêncio.”
“Eu me lembrei do verso da escritura hindu, o Bhagavad
Gita”, declarou ele. “Vishnu [uma das principais divindades do hinduísmo,
encarnado como Krishna] tenta convencer o príncipe [Arjuna] a cumprir com sua
missão. Para impressioná-lo, ele assume sua forma com múltiplos braços e diz:
‘agora, eu me tornei a morte, o destruidor de mundos’. Imagino que todos nós
tenhamos pensado aquilo, de uma forma ou de outra.”
Um amigo do cientista disse que a citação parecia
um dos “exageros sacerdotais” de Oppenheimer. Mas o enigmático cientista
permaneceu profundamente influenciado por ela.
Certa vez, os editores da revista The Christian
Century pediram a Oppenheimer que indicasse os livros que influenciaram mais
profundamente suas visões filosóficas. As Flores do Mal, do poeta
francês Charles Baudelaire (1821-1867), foi o primeiro. E, em segundo lugar,
o Bhagavad Gita.
Fonte: Por Soutik Biswas, correspondente da BBC
News na Índia
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