Separar o lixo orgânico
pode prevenir leptospirose e salvar vidas
Pode-se
dizer que produzir menos lixo ajuda a estender a vida humana no planeta, pois,
entre outras coisas, preserva recursos naturais dos quais dependemos para
sobreviver. O lixo orgânico, em particular, é responsável pela produção de
metano, um dos mais importantes gases causadores do efeito estufa. Mas é
possível que a separação do lixo orgânico possa salvar vidas de uma forma mais
imediata: com a prevenção de casos de
leptospirose.
Está
longe de ser novidade que resíduos de alimentos no lixo atraem animais como
ratos, e que a urina desses animais pode causar leptospirose em humanos. De
acordo com o fotojornalista Fabio Teixeira, autor da série fotográfica
“Sobrevivendo Entre Sombra e Luz”, trabalhadores anônimos que atuam nos
arredores das comunidades da cidade do Rio de Janeiro são vítimas de racismo,
violência policial, e ainda sofrem com doenças causadas pelo lixo. “Essas
pessoas desempregadas fazem a reciclagem do lixo para encontrar cobre, ferro,
alumínio, e brinquedos para conserto e doação. Segundo informações dos
recicladores, dois óbitos foram causados por contaminação com leptospirose, uma
em novembro e outra em dezembro de 2022.”
Essa
observação de Teixeira é sustentada por pesquisas da área de saúde pública,
apesar dos números provavelmente serem
subnotificados.
A comunidade de trabalhadores da indústria da reciclagem e coleta de lixo é
descrita como em constante risco no artigo “Percepção De Qualidade De Vida De
Catadores De Materiais Recicláveis”, publicado em 2017, pela revista de
enfermagem da Universidade Federal de Pernambuco. As autoras explicam que por
“exigir contato permanente com agentes nocivos à saúde, sendo uma das
atividades profissionais mais arriscadas”, a “atividade que manipula lixo” é
“insalubre em grau máximo”.
Tais
afirmações podem soar óbvias, mas a questão do lixo tem o potencial de afetar
toda a população urbana, e não apenas profissionais que manejam resíduos. A
Radioagência Nacional, divulgou um alerta em março deste ano sobre o aumento de “casos e de mortes” por
leptospirose. Chuvas fortes e enchentes exacerbam o problema ao expor maior
contingente da população, tendo como consequência 24 casos e 3 mortes
registrados pela Secretaria de Saúde do Rio de Janeiro nos primeiros dois meses
de 2023.
As
propostas para mitigar esse perigo até agora têm sido evitar que crianças
brinquem em lugares com água acumulada e tirar o
lixo no máximo uma hora antes do caminhão passar. Mas essas
soluções não protegem a população como um todo, pois o lixo ainda é levado para
algum lugar onde pessoas transitam e se expõem aos riscos, e o potencial
recorrente de enchentes em áreas urbanas impossibilita evitar água acumulada.
Consumo e descarte consciente de resíduos é a ferramenta mais eficaz nas mãos
de indivíduos, e requer uma reconfiguração simples da dinâmica do lar.
·
“Não jogue sua consciência no lixo”
O consumo consciente começa na
compra do produto. Melhor do que reciclar é produzir menos lixo. Para isso,
basta dar preferência para produtos sem embalagem, como legumes e frutas de
feira. Se houver embalagem, opte pela embalagem compostável, como papel, ou a
embalagem reutilizável, como jarras de vidro. Ao descartar plástico, tetrapak e
tecido, garanta que eles estejam limpos, sem sobras ou cheiros de comida. É
importante que esse lixo esteja sem resíduos ou odores de matéria orgânica,
pois eles servem como comida e atraem roedores.
Separar
todos os restos de comida do lixo previne a emissão de metano na atmosfera e
evita que ratos sejam atraídos pelo lixo. A questão é o que fazer com essa
comida. A compostagem é a melhor maneira de transformar resíduos orgânicos em
terra adubada sem produzir metano ou atrair roedores. Mas nem todos têm como
compostar em casa. Hortas comunitárias como o AMaravista na região oceânica de Niterói recebe
e coleta matéria orgânica de moradores da vizinhança para usar na compostagem,
e orienta como fazer a separação desses materiais – evitar colocar carne, por
exemplo, e separar cascas de cítricos em seus próprios recipientes. A
reconfiguração da cultura de consumo e descarte de resíduos do lar requer pouco
tempo e espaço, mas requer interesse e consciência.
Considerar
que alguém manuseará o lixo e pensar no
bem-estar dessas pessoas é de imensa importância, além de lembrar que o lixo
existirá por décadas depois que nós o jogamos fora. É benéfico para todos que
esse lixo possa ser separado, reusado ou reciclado de forma sustentável e
saudável, sem poluir a terra ou os oceanos, e sem causar mortes.
O
trabalho de coleta e separação de lixo é imprescindível para a sustentabilidade
de práticas de consumo, para a proteção ambiental e para a preservação de
recursos naturais como águas despoluídas e terrenos férteis.
Lidando
com o fracasso de políticas públicas
Quais
ações e programas deveriam ser desenvolvidos pelo Estado para garantir o bem-estar
da população? A leptospirose é uma doença causada por um fracasso de serviços
de saneamento básico, pelo adensamento de municípios a favor do mercado
imobiliário, e pelos níveis desumanos de desigualdade social. “A destinação
inadequada dos resíduos sólidos está envolvida na determinação do aparecimento
de doenças infecciosas” (2017), e a adequação
significa não só um destino apropriado, mas também equipamentos adequados e
condições dignas de vida para trabalhadores.
Uma
análise interseccional entre direitos trabalhistas, acesso à saúde e educação,
saneamento básico, sustentabilidade e ambientalismo permite o desenvolvimento
de uma solução holística para esse problema. De acordo com a pesquisa da
Revista de enfermagem da UFPE, “a degradação do meio ambiente natural e a
geração de resíduos causam comprometimentos da saúde física, transtornos
psicológicos e psiquiátricos, e desintegração social.” O bem-estar da população
depende de ações que consideram os âmbitos físico, psíquico e social. Portanto,
as soluções como esperar para tirar o lixo ou evitar entrar em contato com água
acumulada não abordam o problema de saúde pública da leptospirose em sua totalidade.
Essa totalidade inclui o consumo familiar até seu método de descarte, diversos
fracassos de políticas públicas, práticas comunitárias sustentáveis e uma
perspectiva ambientalista.
·
A história da leptospirose
A
leptospirose foi trazida para as américas com os roedores presentes em navios
europeus durante a colonização, e é possível que tenha causado um massacre de
populações indígenas. O Artigo “Nova hipótese para a causa da
epidemia entre os nativos americanos, Nova Inglaterra, 1616–1619” propõe que se
deve considerar “costumes que podem ter sido fundamentais para a quase
aniquilação dos nativos americanos, o que facilitou a colonização bem-sucedida”
de certas áreas dos Estados Unidos. E que esses “costumes locais continuamente
expuseram essa população à infecção hiperendêmica por leptospira”.
Um
jornal acadêmico de Doenças Tropicais Negligenciadas (PLOS Neglected
Tropical Diseases), dedicado a “doenças infecciosas que promovem a pobreza”,
publicou um artigo sobre a “Carga Global da Leptospirose” em 2015. Nele, os
pesquisadores estimam que a leptospirose é um problema sério para países
tropicais com poucos recursos, incluindo países na África, “devido aos
problemas de diagnóstico e falta de dados”. Dados da Tanzânia e da Amazônia
revelam que febre é um sintoma comum e a malária é superdiagnosticada como
causa. Isso leva a números substanciais de “estimativa da carga de doença”da leptospirose
sendo mal alocados para outras doenças infecciosas, como a malária.
De
acordo com dados publicados pela Sinan dia 3 de março de 2023, houve um aumento
de casos de leptospirose no país em 2022, ou uma subnotificação mais drástica
do que o usual durante a pandemia de Covid-19 em 2020 e 2021. Poucos dias
antes, dia primeiro de março, a Radioagência Nacional reportou 3 mortes em 2023 que não
constam nos números da Sinan. É evidente que a magnitude do impacto da
leptospirose no Brasil não está sendo precisamente quantificada.
Por
conta do adensamento populacional nas regiões do Rio de Janeiro e de São Paulo,
seus números se sobressaem, ao lado de Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
Apesar do Rio apresentar uma “taxa de prevalência inferior à taxa
nacional”
a cada 100 mil habitantes, surtos de leptospirose na cidade coincidem com as
tempestades de verão desde os anos 60, e “áreas com ocorrência de inundações
apresentam mais casos”. Essas áreas tendem a ser, como esperado, de baixas condições sanitárias, com comunidades
de baixa renda.
Em
2020, Mário Martins e Mary Spink publicaram um artigo chamado “A leptospirose humana como doença
duplamente negligenciada no Brasil”, onde a seguinte afirmação é feita: “Nossa
análise mostra [a] arbitrariedade dos critérios de atribuição de prioridades de
saúde e a invisibilidade do perfil populacional da leptospirose humana nos
dados oficiais. […] Concluímos que [isso] é relacionado ao fato de que a
leptospirose humana afeta uma população que o Estado não tem interesse em
manter viva.”
A
leptospirose matou mais brasileiros do que a dengue todos os anos entre 2000 e
2016 – 3 vezes mais – mas recebeu nove vezes menos investimento médico. Há mais
casos de dengue, portanto o questionamento está longe de significar uma crítica
ao financiamento de tratamento e prevenção dela, mas acadêmicos estão há anos
apontando a severa negligência com a qual a leptospirose é abordada
institucionalmente, e o paralelo com a dengue destaca isso.
“Quantificar a magnitude da perda de
saúde”
devido à leptospirose é difícil, mas não há dúvida que casos são
subnotificados, mal diagnosticados, e recursos não são suficientemente alocados
para pesquisa e prevenção. Desde a chegada da doença em “navios negreiros”, uma população
racializada e empobrecida é forçada a viver em condições insalubres, sem
recursos apropriados e acesso a políticas públicas decentes. Isso no mínimo
deveria nos incentivar a tomar iniciativas em nossas casas e comunidades para
ajudar a prevenir casos e mortes causadas pela doença. Seres humanos e o meio
ambiente só tem a ganhar com a conscientização da população e de instituições
públicas das causas e soluções do problema do lixo como risco à saúde
humana.
Fonte:
Por Mirna Wabi-Sabi em Le Monde
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