Petróleo
na foz do Amazonas: expoentes da política do Amapá se unem para desinformar a
população
Pelas ruas do município de Oiapoque, no estado do
Amapá, Região Norte do Brasil, um carro de som circulava e convidava a
população para a audiência pública “Petróleo e gás na costa do Amapá – Um
debate sobre o futuro”. Na praça principal, uma faixa avisava sobre a
realização do evento, proposto pelo deputado estadual Inacio Monteiro Maciel
(PDT). Os principais hotéis da cidade estavam lotados, e a maior parte dos
hóspedes eram pessoas envolvidas na produção, assessores de políticos e outros
interessados na discussão sobre a abertura de uma nova frente de exploração de
petróleo na Amazônia. Mas em vez de um espaço para expor e debater as
consequências do projeto da Petrobras, a audiência pública tornou-se um palco
para a desinformação disseminada por alguns políticos amapaenses e para ataques
à ministra Marina Silva e ao presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho.
No saguão de um dos hotéis, o ex-deputado federal
Antonio Feijão, que quando presidiu o extinto Departamento Nacional de Produção
Mineral no Amapá foi condenado por inserir informação falsa em documento, dava
o tom do que seria o encontro: “Randolfe ressuscitou politicamente. Fortaleceu
a união da Assembleia amapaense. O que ele está dizendo é: Marina Silva não
quer o petróleo que dá trabalho ao povo do Amapá”.
Feijão se referia ao senador Randolfe Rodrigues,
líder do governo no Congresso, que recém havia deixado o partido Rede
Sustentabilidade, o mesmo da ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima,
Marina Silva, e corrido a se posicionar a favor da exploração de petróleo na
foz do rio Amazonas. O senador tomou a decisão logo após o presidente do
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
(Ibama), Rodrigo Agostinho, negar em 17 de maio a licença de perfuração na área
requerida pela Petrobras.
No café da manhã do dia da audiência, 19 de maio,
Feijão já alardeava previsões sobre o tempo de permanência de Marina Silva na
pasta, em conversas com hóspedes e colegas da região. Na bolsa de apostas dos
políticos amapaenses, Marina vai durar no máximo mais 90 dias no ministério. O
prognóstico do político ligado ao garimpo é o mesmo de boa parte da elite
política e econômica da Região Norte: Marina Silva vai cair e Randolfe, com seu
gesto inusitado – de rifar seu comprometimento com as causas ambientais –, deve
ser o próximo ministro do Meio Ambiente e Mudança do Clima.
•
“Burocrata de olhos claros”, diz Randolfe sobre presidente do Ibama
Com os ânimos acirrados, dois dias depois de o Ibama
negar a licença de Atividade de Perfuração Marítima no bloco FZA-M-59, chamado
de bloco 59, os políticos do Amapá promoveram e disseminaram, por mais de cinco
horas, a narrativa uníssona de que o órgão ambiental do governo federal estava
cometendo “um crime”. Ignoravam, em suas falas, o fato de que o Ibama segue
orientações técnicas para evitar um colapso ambiental.
O crime do Ibama, segundo a maioria dos políticos
locais, teria sido “negar o desenvolvimento do Amapá e a geração de emprego e
renda”. Em vídeo gravado e enviado para
a abertura do evento, o senador Davi Alcolumbre (União Brasil), ex-presidente
do Senado, acusou: “O Ibama cometeu um crime de lesa-pátria contra o povo
brasileiro. O que o presidente do Ibama fez foi negar ao povo o direito de
saber o que tem em seu solo”. Alcolumbre
tachou a decisão de Agostinho de “inoportuna”.
Para não ficar atrás, Randolfe gritava, ao
microfone, que o povo amapaense deveria ser consultado e que tal decisão não
poderia vir de “um burocrata de olhos claros”, referência a Rodrigo Agostinho,
que tem os olhos azuis. O senador afirmou ainda que não aprendeu “meio ambiente
na [avenida] Faria Lima [centro financeiro de São Paulo] ou no banco da
faculdade”, mas sim com os povos indígenas do Amapá. Não explicou, porém, como
a proteção da natureza combina com a defesa veemente da extração de petróleo em
uma região de alta vulnerabilidade socioambiental.
Nem Alcolumbre nem Randolfe explicaram na audiência
pública por que a Petrobras e o Ministério de Minas e Energia estão lutando
para não fazer a Avaliação Ambiental Estratégica, se dizem ter tanta certeza de
que a exploração de petróleo na margem equatorial é segura. A dupla de
senadores amapaenses com ressonância nacional preferiu não fazer esse debate.
Ao contrário. Randolfe insistiu na tese de que a população amapaense deveria
ser consultada sobre a aprovação da licença.
O argumento a favor da consulta, porém, não procede, como já foi
exaustivamente explicado pelos técnicos do Ibama e pelo próprio Agostinho.
No processo de licenciamento ambiental, o
“empreendedor” tem a obrigação de realizar audiências públicas apenas para
informar a população da área afetada pelo projeto e tirar dúvidas, o que
ocorreu no caso do bloco 59. O Ibama explica que a fase de análise é
exclusivamente técnica, portanto não existe a obrigatoriedade de ouvir, por
exemplo, os políticos da região. O objetivo é exatamente evitar qualquer tipo
de ingerência e contaminação em um debate delicado e complexo que deve ser
guiado somente pela ciência, em nome do bem comum.
Outro participante do evento, o senador Lucas
Barreto (PSD) afirmou que as bancadas federal e estadual do Amapá estão mais
unidas do que nunca para vencer o que ele chamou de “forças ocultas” que
tentariam barrar o desenvolvimento do estado. “Nós vamos vencer as forças
ocultas”, garantiu. “O Amapá é vítima de uma guerra de vaidades entre o
Ministério do Meio Ambiente e a Petrobras”, entoou o senador. Barreto disse
ainda que ele, Randolfe e Alcolumbre, os três representantes do Amapá no
Senado, estão “ombreados para a guerra”.
O senador Barreto declarou que, junto com
Alcolumbre, fará o necessário para que Randolfe assuma o Ministério do Meio
Ambiente. E questionou até o passado e a identidade de Marina Silva como
amazônida pelo fato de ela ter escolhido o estado de São Paulo para disputar a
eleição de 2022. Marina, uma filha de seringueiros do Acre que se converteu em
ativista ao lado de Chico Mendes e tem uma longa trajetória de defesa do meio
ambiente, foi eleita deputada federal. Ela se licenciou do cargo para ocupar o
ministério a pedido do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com quem se
reconciliou durante a campanha eleitoral, tornando-se uma das principais
fiadoras de sua vitória sobre Jair Bolsonaro.
Fazendo coro com os parlamentares no ataque à
ministra, o deputado estadual Jory Oeiras (PP) disse que Marina é ligada a ONGs
internacionais e deixou de defender o povo da Amazônia – outro discurso
bastante comum entre políticos locais que tentam sempre associar o terceiro
setor, de forma indistinta, a interesses internacionais espúrios na região.
Paradoxalmente, costumam receber as grandes mineradoras transnacionais com os
braços abertos.
O Ibama apontou três pilares que fundamentaram a
negativa da licença no caso do bloco 59. O primeiro diz respeito à
insuficiência do Plano de Proteção à Fauna Oleada, parte do Plano de Emergência
Individual, que é o planejamento das ações da empresa em resposta a um eventual
vazamento de petróleo no mar. Além disso, o Ibama informou que há falhas e
medidas insuficientes no plano de comunicação social com comunidades indígenas
da região e que não foram considerados os impactos do empreendimento nos três
territórios indígenas da região do Oiapoque. Por fim, ao negar a licença, o
presidente do Ibama citou a inexistência de uma Avaliação Ambiental de Área Sedimentar
(AAAS) para a margem equatorial do Brasil, que inclui a foz do Amazonas. A AAAS
é um instrumento criado em 2012 para avaliar quais áreas numa região estão
aptas ou não para a exploração de petróleo e gás natural. Essa avaliação
deveria ter sido encomendada pelos ministérios do Meio Ambiente e Mudança do
Clima de Minas e Energia antes do leilão do bloco 59 e de outros na margem
equatorial, em 2013, mas isso não ocorreu. A AAAS pode dar maior segurança ao
licenciamento ambiental feito pelo Ibama.
• Usando
indígenas para posar nas redes
As primeiras fileiras de cadeiras foram reservadas
aos indígenas da região. Poderia ser considerado um sinal de respeito aos povos
originários, mas as horas revelaram que
era uma estratégia para que os políticos pudessem cumprimentá-los enquanto seus
assessores gravavam o ato. A cena foi
projetada para convencer a opinião pública do país de que as comunidades
tradicionais são a favor da exploração do petróleo. Era, também, uma forma de
tentar deslegitimar o apontamento do Ibama de que o projeto apresentado pela
Petrobras continha falhas no plano de comunicação social com as comunidades
indígenas da região.
O indígena Ramon Karipuna se apresentou e, em seu
discurso, disse que representava 60 lideranças da região. “O povo indígena não
é contra o empreendimento, mas precisamos que a atividade seja feita da melhor
forma, sem sermos contaminados. Precisamos viver em paz no nosso território”,
alegou. A representação de Ramon, porém, não refletia a realidade. Caciques
consultados por SUMAÚMA sob a condição de anonimato – por questões de
segurança, a pedido deles próprios – contaram que haviam optado por boicotar o
evento porque tinham sido convidados de última hora, sem tempo hábil para
discutir o assunto com as comunidades.
Segundo o protocolo do Conselho de Caciques dos
Povos Indígenas do Oiapoque (CCPIO), as comunidades devem ser convidadas para
audiências com no mínimo 15 dias de antecedência, para que todas as lideranças,
que representam 53 aldeias, tenham tempo de discutir um posicionamento comum.
“Mobilizar nossas lideranças de aldeias mais distantes e de todo o território
não é fácil. Tem acessos que são difíceis. Com dois dias [de antecedência] não
tem como mobilizar, se reunir e ter um alinhamento de conversa para poder participar
de uma audiência desse porte. É impossível”, afirmou um dos caciques, que pediu
para não ter o nome publicado na reportagem por temer a forte pressão política
na região.
A audiência pública em Oiapoque foi majoritariamente
ocupada por políticos e defensores do projeto da Petrobras. Entre eles, estavam
o governador do estado, Clécio Luís (Solidariedade); o diretor-presidente da
Companhia Maranhense de Gás, Allan Kardec, representando o governador do
Maranhão, Carlos Brandão (PSB); os deputados estaduais paraenses Iran Lima
(MDB), Luth Rebelo (Progressistas) e Nilton Neves (PSD); a presidenta interina
da Empresa de Pesquisa Energética, Angela Livino; e o prefeito de Oiapoque,
Breno Lima (PRTB). Em nenhum momento se abriu espaço para o contraditório e a
apresentação das inconsistências do projeto de perfuração do poço na foz do
Amazonas e seus riscos para a fauna, a flora e a população local. O que foi
dito aos participantes da audiência é que a decisão tomada pelo Ibama era
política e não levava em consideração o desenvolvimento econômico de Oiapoque e
do estado do Amapá. Sem contrapontos, o evento se tornou um palco para a
desinformação sobre a biodiversidade local e sobre o próprio projeto defendido.
‘Escravos ambientais’ ávidos por petróleo
Ignorando o que aponta a comunidade científica, o
senador Lucas Barreto chegou a afirmar, da tribuna do evento, que não existem
recifes na bacia da foz do rio Amazonas, mas apenas “fósseis”. Ao defender a
perfuração na área, ele disse ainda que o território amapaense já cumpre suas
obrigações ambientais, por ser o estado com o maior número de reservas no
Brasil: “De que adiantou ser um estado preservado? Do que adiantou fazer o
dever de casa na questão ambiental? Ninguém nos paga por isso. Ninguém nos vê.
Ninguém paga para sermos escravos ambientais”. E continuou: “Somos o estado
mais rico do planeta, mas o nosso povo está em cima da riqueza, na pobreza,
contemplando a natureza. Olhar para a árvore, beleza cênica, não enche barriga.
O povo da Amazônia não faz fotossíntese. A solução está na costa do Amapá”.
Em relação à existência dos recifes amazônicos, sua
abundância na região se traduz, por exemplo, na volumosa pesca do pargo, um
peixe recifal, explicou a SUMAÚMA o biólogo Vinicius Nora, mestre em ecologia e
gerente de Oceanos e Clima, da organização brasileira Instituto Internacional
Arayara. Para Nora, “a alegação de que ‘existem apenas fósseis’ é mais uma
desinformação para diminuir a importância dos recifes amazônicos”. O biólogo
enfatiza que os recifes são um fato reconhecido até mesmo pelas petroleiras. E
defende a ideia de que “é necessário criar mecanismos de proteção, como a
criação de uma reserva extrativista ou outra categoria de unidade de
conservação, para preservar os meios de vida e esse importante ecossistema
amazônico”.
Os políticos que ocuparam a tribuna tentaram
minimizar os prováveis impactos para a região abordando o tema da distância do
ponto de exploração do bloco 59 até a foz. “Está mais perto da Guiana do que do
Brasil”, alegou Randolfe, ignorando que
essa localização não traz nenhuma garantia de segurança por conta da velocidade
das correntes marítimas. A preocupação de entidades da sociedade civil é que
discussões sem transparência e sem compromisso com a verdade camuflem a
especulação do setor de petróleo e gás na região, onde a Agência Nacional do
Petróleo incluiu 328 blocos exploratórios, entre concessão, oferta e estudo.
Todos os 328 prontos para tentar seguir o mesmo caminho do bloco 59, todos à
espera apenas de um precedente.
Fonte: Sumaúma
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