Famílias chefiadas
por mulheres negras passam mais fome
A
fome esteve presente em 20,6% das famílias chefiadas por pessoas que se
autodeclaram pretas, em 17% daquelas comandadas por pardas e em 10,6%, por
brancas entre o fim de 2021 e o início de 2022. E em 35,5% das residências
chefiadas por mulheres ocorria uma ou nenhuma refeição por dia porque não havia
dinheiro frente a 22,1% de domicílios comandados por homens.
Os
dados fazem parte de um desdobramento do 2º Inquérito Nacional sobre
Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (Vigisan),
realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e
Nutricional (Rede Penssan) e executado pelo Vox Populi.
Em
junho do ano passado, a primeira leva de dados do Vigisan revelou que 15,5% da
população, ou 33,1 milhões de pessoas, passavam fome entre o final de 2021 e o
início de 2022.
Agora,
os novos dados apontam que a fome tem cor de pele e gênero. Não só isso, mas
quanto mais escura a pele, maior a incidência da fome.
De
acordo com Rosana Salles, pesquisadora da Rede Penssan e professora do
Instituto de Nutrição da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o estudo
informou separadamente as informações sobre pretos e pardos para mostrar que a
fome também está relacionada ao racismo.
“O
pertencimento à cor da pele mais escura leva a uma situação mais desigual ao
comparar com pardos e depois os brancos”, ressaltou à coluna.
Considerando
apenas os domicílios comandados por mulheres, 22% dos chefiados por negras
passaram fome enquanto o número cai para 14,3% quando se tratam de brancas.
Entre os homens, a situação ocorre em 14,3% dos lares chefiados por negros e 7,8%
dos que tinham brancos à frente.
A
pesquisa analisou dois grupos quanto à escolaridade: quem tem menos de oito
anos de estudo e quem tem oito anos ou mais.
Ao
todo, 11,8% das famílias chefiadas por homens brancos do primeiro grupo
passavam fome enquanto só 5,1% do segundo grupo. Já entre as mulheres negras,
esses números são de 28,4% e 15,9%.
Ter
o ensino fundamental completo não protegeu os lares chefiados por negras da
falta de alimentos. Um terço delas (33%) sofreu com fome somada à insegurança
alimentar moderada (redução na quantidade de alimentos e/ou falta de comida),
enquanto o mesmo aconteceu com 21,3% das casas comandadas por homens negros,
17,8% de mulheres brancas e 9,8% de homens brancos.
A
fome também estava presente com mais frequência em famílias chefiadas por
mulheres negras que contavam com crianças com menos de dez anos de idade:
23,8%.
Apenas
21,3% dos lares nessa situação estavam em situação de segurança alimentar – ou
seja, com acesso regular e permanente a alimentos de qualidade e em quantidade
suficiente. No caso de homens brancos, esse número salta para 52,5%.
Os
dados foram coletados entre novembro de 2021 e abril de 2022, a partir da
realização de entrevistas em 12.745 domicílios, em áreas urbanas e rurais de
577 municípios, distribuídos nos 26 estados e no Distrito Federal.
Considerando
os domicílios em que a pessoa de referência tinha trabalho remunerado nos três
meses anteriores à entrevista, a segurança alimentar estava presente em 59,5%
das famílias chefiadas por homens brancos, 48,6%, por mulheres brancas, 41,5%,
por homens negros e 32,1%, por mulheres negras. Para este último grupo, mesmo
nos casos em que elas estavam empregadas, 19,8% dos lares passaram fome.
Isso
impõe a questão do valor da remuneração.
Quanto
menor, pior a capacidade de evitar a grave insegurança alimentar. Tanto que se
pessoa que chefia o domicílio tem um trabalho formal e renda mensal superior a
um salário mínimo per capita, isso garante segurança alimentar.
No
caso, isso ocorre em 80% dos lares de brancos e 73% de negros.
O
que reforça o óbvio: remuneração decente traz dignidade.
Na
condição de desempregadas, a fome atingiu 39,5% dos domicílios chefiados por
mulheres negras. Mas, nesse caso, a falta de trabalho afeta todos os grupos,
com 36,2% dos lares comandados por mulheres brancas, 34,3%, dos homens negros e
25,3%, dos homens brancos.
“A
fotografia aqui apresentada é mais um testemunho da vulnerabilidade da maior
parte das famílias brasileiras chefiadas por mulheres negras e expõe, mais uma
vez, os componentes do racismo estrutural que caracteriza nossa sociedade”,
afirma o relatório da pesquisa.
“Essa
situação impõe enfrentarmos as desigualdades e iniquidades, priorizando o
acesso à escolaridade, aos empregos formais e à remuneração digna e justa pelo
trabalho cujas precariedades penalizam em maior magnitude as pessoas que se
declaram de cor preta ou parda.”
Vale
lembrar que este é um desdobramento de pesquisa que, em junho passado, divulgou
que o número de famintos havia subido de 19 para 33,1 milhões entre o final de
2020 e o início de 2022.
Isso
provocou a ira do então presidente Jair Bolsonaro.
Preocupado
com a campanha eleitoral, ele passou a atacar os dados e negar a existência de
casos de grave insegurança alimentar.
“Alguém
já viu alguém pedindo um pão na porta, no caixa da padaria? Você não vê, pô”,
afirmou Bolsonaro no dia 26 de agosto.
“Fome
no Brasil? Fome pra valer. Não existe da forma como é falado”, disse.
Um
mês depois, em 21 de setembro, o ministro da Economia, Paulo Guedes, chamou de
“mentira” os dados, sem apresentar aqueles que, no seu julgamento, seriam os
verdadeiros.
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impossível ter 33 milhões de pessoas passando fome”, disse a uma plateia de
empresários.
Enquanto
isso, ficaram célebres como registro da fome as cenas de pessoas disputando
ossos e carcaças bovinas no Rio de Janeiro e revirando a caçamba de um caminhão
de lixo em Fortaleza.
“Quando
o caminhão chega, a gente tem que ser muito ligeira para pegar. Eles jogam, a
gente tem quem correr para dentro da caçamba, tem que ser rápido. Os garis não
podem dar na nossa mão, porque é o trabalho deles”, explicou, em um depoimento
em vídeo, uma das mulheres que aparecia revirando o lixo na capital do Ceará.
“O
pão de cada dia quem me dá é o lixo. Todo dia, meus filhos e eu vamos para o
lixo para comer.”
As
declarações negacionistas sobre a fome de Bolsonaro também revoltaram o padre
Júlio Lancellotti, coordenador da Pastoral do Povo de Rua de São Paulo.
“Tenho
perguntado diariamente às pessoas se elas estão com o Auxílio. Muitos não
porque faltam documentos. Por exemplo, para conseguir que a certidão de
nascimento venha de sua cidade natal, às vezes há um custo que nem sempre os
órgãos públicos bancam. Outras vezes, a pessoa não tem acesso a um smartphone
para fazer seu cadastro”, explicou a esta coluna na época.
“Quem
diz que não há fome é porque está vivendo em uma bolha, é insensível ou faz
isso como ação política para minimizar os problemas”, lembrou Júlio.
Um
dos exemplos mais explícitos da incidência de fome no período abrangido pela
pesquisa foram os resgates de pessoas em condições análogas às de escravo.
Eles
se tornaram mais frequentes nas denúncias que chegaram aos órgãos públicos
envolvidos no combate a esse crime, pois empregadores estariam cortando até o
mínimo de subsistência por conta da crise trazida pela pandemia de covid-19.
Segundo
o Ministério do Trabalho, a maioria dos resgatados são de negros, e em número
maior que sua proporção na sociedade.
Naquele
momento, as equipes de fiscalização estavam constatando que trabalhadores,
principalmente rurais, decidiam “fugir por fome”, conforme explica o então
chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae),
Maurício Krepsky.
Foi
o caso de 26 trabalhadores resgatados em duas fazendas de cultivo de grãos em
Mirador (MA). Dormiam em barracos de lona, não tinham acesso a banheiros e água
potável e passavam fome.
E
o de três jovens indígenas Guarani-Kaiowá resgatados em uma área de produção de
eucalipto em Ponta Porã (MS), no dia 19 de abril, quando era celebrado o Dia do
Indígena.
Ou
ainda de duas crianças de nove e dez anos e uma adolescente de 13, encontradas,
junto com seus pais, em condições análogas às de escravo em uma fazenda de café
e eucalipto em Minas Novas (MG).
No
momento da fiscalização, foi constatado um pouco de arroz, de macarrão, sal e
feijão e açúcar misturado com pó de café. Questionado sobre a razão dessa
mistura, o trabalhador explicou que era para evitar que as crianças comessem o
açúcar. Elas iam atrás do produto porque estavam com fome.
“A
pessoa em situação de insegurança alimentar, que tem aumentado nos últimos
anos, fica mais vulnerável, sujeita a aceitar propostas de emprego enganosas.
Podem até trabalhar em troca de moradia e alimentação”, afirma o procurador
Italvar Medina, da Coordenação Nacional de Combate ao Trabalho Escravo do
Ministério Público do Trabalho.
Fonte:
UOL
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