Como o Reino Unido
enviou de volta ao Caribe centenas de migrantes com distúrbios mentais
A
BBC descobriu que centenas de pessoas com doenças crônicas e problemas mentais
da geração Windrush — que chegaram ao Reino Unido entre 1948 e 1971 — foram
enviadas de volta para o Caribe, em uma ação descrita como uma "injustiça
histórica".
Documentos
antes classificados como confidenciais revelaram que pelo menos 411 pessoas
foram enviadas de volta entre os anos 1950 e o início dos anos 1970, em um
programa que deveria ter sido voluntário. Famílias afirmam que foram separadas
e algumas nunca foram reunidas novamente.
O
governo britânico afirma que está comprometido com a reparação das injustiças
daquela época.
Segundo
um porta-voz, "reconhecemos o ativismo das famílias que buscam a reparação
da injustiça histórica enfrentada pelos seus entes queridos e permanecemos
totalmente comprometidos com a correção dos erros enfrentados pelas pessoas da
geração Windrush".
Os
fatos revelados referem-se ao escândalo de Windrush, que causou a deportação
indevida de centenas de cidadãos da Commonwealth — a Comunidade Britânica de
Nações.
Muitos
deles vieram da região do Caribe e as revelações desencadearam pedidos de
investigação pública sobre aquela política de repatriação.
Os
repatriados eram parte de um grupo de milhares de pessoas que se mudaram de
colônias britânicas para o Reino Unido nas décadas que se seguiram à Segunda
Guerra Mundial.
Elas
ficaram conhecidas como a geração Windrush — nome de um dos primeiros navios a
chegar ao Reino Unido trazendo essas pessoas, o HMT Empire Windrush. O ano de
2023 marca o 75º aniversário das primeiras chegadas.
A
BBC News encontrou, nos Arquivos Nacionais do Reino Unido, documentos que
revelam a escala dessa política.
Especialistas
agora acreditam que o esquema pode ter sido ilegal, já que nem todos os
pacientes tinham a capacidade mental necessária para concordar em voltar para o
seu local de origem.
·
'Uma grande mágoa, imensa'
Joseph,
pai de June Armatrading, foi um dos deportados.
Como
outras pessoas do Caribe que viajaram para o Reino Unido após a guerra, Joseph
era cidadão britânico. Ele nasceu em St. Kitts, colônia do Reino Unido que, até
hoje, é administrada diretamente por Londres, e tinha passaporte britânico.
Joseph
chegou ao Reino Unido em 1954 e morou em Nottingham, na Inglaterra, com sua
esposa e suas cinco filhas. Mas ele começou ter problemas de saúde mental na
década de 1960.
Joseph
Armatrading foi diagnosticado com psicose paranoide e, em 1966, foi devolvido
para St. Kitts. Ele nunca mais viu sua família.
June
tem agora 65 anos. Ela conta que sua mãe disse a ela e às suas irmãs que o pai
as havia "abandonado".
Ela
cresceu acreditando que seu pai não as amava, o que causou "uma grande
mágoa, imensa".
Mas
a BBC teve acesso a uma carta escrita por Joseph Armatrading, pedindo para
voltar ao Reino Unido e reunir-se à sua família. Pouco se sabe sobre o que
aconteceu com ele depois do pedido.
Em
cartas que, antes, eram confidenciais, autoridades do governo admitiam que o
procedimento de repatriação de Joseph Armatrading "não havia sido
correto". Os documentos revelam que seu passaporte foi confiscado, de
forma errônea.
Quando
mostramos as cartas para June Armatrading, ela ficou em choque.
"Estou
perturbada. É perturbador, é realmente perturbador... como eles se
atreveram?", questiona ela. "Este era um homem vulnerável. Você
precisa cuidar das suas pessoas vulneráveis e eles não fizeram. Eles o deixaram
— eles o abandonaram."
·
'Roubaram a minha mãe'
Marcia
Fenton ingressou na assistência social quando ainda era bebê. Ela havia sido
separada da mãe, Sylvia Calvert, que foi enviada de volta para a Jamaica no
final dos anos 1960. Seu pai não conseguiu cuidar dela sozinho.
Mãe
e filha somente se reuniram muitos anos depois, na Jamaica. Sylvia havia
recebido alta naquele momento, mas ainda não estava bem de saúde. Ela morreu em
2007.
Marcia
ainda quer descobrir o que aconteceu com sua mãe quando ela chegou de volta à
Jamaica. Tudo o que ela sabe é que ela passou algum tempo no Hospital Bellevue,
na capital jamaicana, Kingston.
"Sua
devolução para a Jamaica roubou a minha mãe", declarou ela à BBC.
Ela
quer uma investigação sobre como e por que pessoas como a sua mãe foram
enviadas de volta para os seus lugares de origem. "Ninguém deveria ter
sido repatriado se tinha problemas mentais" afirma ela. "O governo
britânico deveria pedir desculpas."
·
Como funcionou a política?
A
análise dos documentos dos Arquivos Nacionais conduzida pela BBC demonstra que
411 pacientes com doenças crônicas e mentais foram enviados de volta para
países da Comunidade Britânica de Nações no Caribe entre 1958 e 1970.
Mas
os departamentos governamentais aparentemente não mantêm registros abrangentes
e, por isso, o número pode ser maior.
O
Conselho Nacional de Assistência — que deu origem ao Departamento de Trabalho e
Aposentadorias — costumava ficar a cargo do processo.
Cartas
do governo e documentos políticos dos arquivos indicam que cada paciente
deveria ter "expressado o desejo de retornar". Eles sugerem que a
repatriação só deveria ocorrer se "beneficiasse" os pacientes e se
houvesse "disposições apropriadas" para eles quando retornassem.
Mas
não se sabe ao certo se pacientes vulneráveis poderiam tomar essas decisões e
se essas disposições apropriadas realmente existiam. Um documento acadêmico
afirma que a assistência à saúde mental no Caribe naquela época carecia de
"pessoal treinado e recursos".
As
autoridades do governo britânico estavam preocupadas em não dar a impressão de
que estavam "tentando ativamente descarregar... os cidadãos da Comunidade
Britânica que tinham pouca utilidade para o Reino Unido". Mas parece que
as autoridades jamaicanas não ficaram convencidas.
Em
1963, o Escritório do Alto Comissariado da Jamaica escreveu para o governo
britânico queixando-se de que os hospitais do Reino Unido estavam solicitando
repatriações, "em grande parte, com base na pressão sobre os leitos ou
outros serviços hospitalares".
A
geração Windrush, composta por "Cidadãos do Reino Unido e das
Colônias", tinha direito ao mesmo status legal de qualquer pessoa nascida
no Reino Unido.
Mas
o professor James Hampshire, da Universidade de Sussex, na Inglaterra, afirma
que, desde a primeira chegada de cidadãos britânicos do Caribe, houve o desejo
de restringir o seu número, por parte dos governos dos dois partidos,
trabalhista e conservador.
"A
intenção e o efeito da legislação aprovada naquele período [anos 1960 e 70] era
de restringir alguns tipos de imigração e não outros", afirma ele.
"Destinava-se principalmente ao que era chamado na época de 'imigração de
cor'."
O
professor Kris Gledhill, que foi juiz de processos legais sobre saúde mental,
afirma que a legalidade da prática de repatriação de pacientes de doenças
mentais é discutível.
Para
ele, "o que você está fazendo é confiar em uma 'escolha voluntária' que,
se você fosse determinar corretamente a capacidade da pessoa de fazer aquela escolha,
você diria que eles não têm aquela capacidade".
A
advogada de imigração Jacqueline McKenzie, do escritório de advocacia londrino
Leigh Day, representou centenas de vítimas do escândalo de Windrush em 2018.
Sobre a repatriação de pessoas doentes e com problemas de saúde mental, ela
afirma que "é absolutamente chocante que isso estivesse acontecendo".
"Vidas
foram destruídas", afirma ela. "O Estado agora deve aos descendentes
daquelas pessoas o fornecimento de respostas e de algum tipo de
compensação."
·
Fortes arrependimentos
Os
médicos que pesquisaram as consequências aos pacientes devolvidos ao Caribe
concluíram que o impacto foi negativo e que muitos queriam voltar para o Reino
Unido.
No
início dos anos 1970, Aggrey Burke — o primeiro psiquiatra clínico negro do
NHS, o serviço de saúde pública britânico — concluiu que o envio de pacientes
com doenças mentais graves do Reino Unido para o Hospital Bellevue, na Jamaica,
não foi realizado no seu melhor interesse.
Ele
agora afirma que existia falta de curiosidade sobre o que aconteceu com os
pacientes. "Ninguém parecia ter interesse no 'e agora?', na próxima
etapa", segundo Burke.
Outro
psiquiatra dos anos 1970, George Mahy, de Barbados, analisou os casos de cerca
de 200 pacientes com doenças psiquiátricas originalmente da região do Caribe.
Ele
descobriu que cerca de 52% deles haviam sido aconselhados a voltar do Reino
Unido e, em muitos casos, receberam auxílio financeiro do governo britânico.
Segundo Mahy, muitos desses pacientes tinham fortes arrependimentos e queriam
voltar para a Inglaterra.
Em
resposta à BBC, um porta-voz do governo afirmou: "O bem-estar dos
pacientes hospitalares detidos com base na Lei de Saúde Mental é fundamental. A
lei foi alterada desde a época daqueles casos — agora, um tribunal independente
precisa concordar que a eventual repatriação seria feita no melhor interesse do
paciente."
Não
existem fotos de Joseph Armatrading. Na sua casa em Nottingham, sua filha June
conta que se lembra de ter visto uma com ela e suas irmãs, mas, com o passar
dos anos, ela foi perdida.
Mas
June está decidida a fazer com que a história do seu pai não seja esquecida.
"O
governo ainda precisa responder às perguntas sobre o que aconteceu com meu pai,
o que aconteceu com Joseph Armatrading?", questiona ela. "Eles nos
deixaram perdidos."
Fonte:
BBC News Brasil
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