Como a fome atingiu
a população trans na pandemia
O
dado tomou de assalto as manchetes no ano passado. 125 milhões de brasileiros
passavam por algum grau de insegurança alimentar, com 33 milhões não tendo o
que comer, segundo levantamento da Rede Penssan. A soma da
emergência global da pandemia da covid-19 com a gestão criminosa de Bolsonaro
teve, entre outros resultados catastróficos, o da fome para o povo brasileiro.
Porém,
ao mergulhar nos números, não é difícil constatar que alguns segmentos da
população foram ainda mais afetados naquele momento – e que esses grupos são os
mesmos que, dia após dia, sofrem com a discriminação social e a insuficiência
das políticas públicas do Estado. Nesse esforço de se debruçar sobre as
particularidades da tragédia da fome, um grupo de pesquisadores de diversas
universidades brasileiras publicou recentemente o artigo “Food insecurity in a Brazilian transgender sample
during the COVID-19 pandemic” na revista científica Plos One, em
que analisaram os efeitos dessa crise entre as pessoas trans.
As
sondagens realizadas com a população trans de todo o Brasil tiveram como saldo
um conjunto de dados estarrecedores: elas indicam que 68,8% do segmento esteve
em situação de insegurança alimentar durante a pandemia – e que 20% passou
fome, o dobro da média nacional. Por comparação, no mesmo período, 55% da
população geral (64,1% das mulheres e 47,5% dos homens, na divisão por sexo)
passava por insegurança alimentar, porcentagem igualmente preocupante mas
significativamente mais baixa.
Em
uma conversa com Sávio Gomes, professor do Departamento de Nutrição da UFPB e
autor principal da pesquisa, Outra Saúde pôde conhecer mais
detalhes da visão dos investigadores sobre os dados recolhidos e ouvir
propostas de como fazer surgir políticas públicas que combatam a fome da
população trans.
A
insegurança alimentar, como apontam os critérios da Organização das Nações
Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), é definida pela incerteza do
acesso regular ao alimento. Essa situação pode advir da insuficiência na
quantidade de comida ou mesmo da inadequação dos alimentos (em termos
nutricionais ou de aceitação cultural) à disposição de uma determinada
população.
No LabNutrir da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), onde atuaram vários dos
autores do artigo, eram estudados os relatórios de insegurança alimentar – mas
a ausência de dados específicos sobre a população LGBT dificultava o
refinamento da produção científica voltada para esse segmento. Dessa
necessidade, surgiu o ímpeto de desenvolver um trabalho que desse o primeiro
passo nesse sentido, inclusive com a intenção de estimular o surgimento de
outros.
Na
pesquisa, que veio a público há pouco mais de um mês, sondou-se não apenas se
os entrevistados sofreram mudanças em sua capacidade de adquirir alimentos
durante a pandemia, mas também se houve alteração na qualidade e na diversidade
dessa alimentação. Em todos os casos, houve piora para uma parte expressiva dos
participantes do estudo.
Também
se buscou identificar os fatores que as pessoas trans apontaram como principais
impeditivos para seu acesso a uma alimentação de qualidade durante a pandemia.
Tradicionalmente, o preconceito é visto como a mais dura barreira imposta ao
anseio de uma vida digna pela população LGBT. Porém, é interessante notar que
aqui, “os principais fatores a incidirem a insegurança alimentar foram a renda
e o emprego [e] a frequência do preconceito não foi associada à insegurança
alimentar”, como aponta a pesquisa.
“Foi
uma surpresa para nós quando vimos os dados, porque a gente fica nessa
expectativa de que o preconceito seja percebido como a principal causa quando a
gente fala de um grupo estigmatizado”, diz Sávio. “Mas se nós pararmos para
pensar nos principais determinantes da insegurança alimentar, são exatamente esses,
ligados a renda e trabalho”, completa.
A
opressão surge mais como uma “causa das causas”, propõe o nutricionista. “Não é
porque eu sofri uma experiência de estigma que eu vou estar em insegurança
alimentar. Mas o estigma impacta o meu acesso à educação de qualidade e ao
emprego, isso vai impactar diretamente a minha renda e, por consequência, eu
vou estar em vulnerabilidade para a insegurança alimentar”, ilustra.
Apesar
do quão reveladoras são as primeiras observações que podem ser extraídas da
pesquisa, seus próprios realizadores acreditam que ela não é o suficiente.
“Caracterizar a comunidade transgênero brasileira de forma confiável continua
sendo um desafio”, dizem no estudo.
Por
isso, dizem ser imperativo que as autoridades passem a desenvolver recenseamentos
que contemplem a população trans e suas especificidades. Essa é a única
ferramenta capaz de garantir uma coleta de dados nacional, confiável e passível
de subsidiar novas políticas públicas.
“O
que é necessário não é exatamente que novas pesquisas sejam feitas, mas que uma
nova variável seja incluída nas que já existem”, explica Sávio. O Censo, a
Pesquisa de Orçamentos Familiares, a Pesquisa Nacional de Saúde e a Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios são algumas das pesquisas que poderiam
passar a incluir variáveis como a identidade de gênero, para acabar com a
situação de invisibilidade da população trans nesses inquéritos.
O
problema da insegurança alimentar na população trans, como a própria pesquisa
aponta, é multifatorial. Além disso, nem mesmo se restringe a nosso país –
outro estudo, citado no artigo da equipe liderada por Sávio, indica que 79% da
população trans dos Estados Unidos passou por insegurança alimentar na
pandemia. Isto é, 10% a mais que no Brasil. Mas alguns passos já podem ser
dados pelo governo para enfrentar a situação particularmente grave dos últimos
anos.
Durante
a pandemia, o governo estadual do Rio Grande do Norte incluiu os LGBTs entre as
populações vulneráveis contempladas por um plano de contingência que garantiu a
entrega de cestas básicas de forma emergencial. A estratégia foi pioneira – mas
se restringiu a uma iniciativa de emergência.
Em
uma perspectiva de longo prazo, uma das medidas que devem ser tomadas, aponta o
pesquisador, é a recomposição do Comitê Técnico LGBT do ministério
da Saúde. Outra, é a atualização da Política Nacional de Saúde Integral
LGBT,
que foi publicada em 2011 e ainda não passou por reformulação. É urgente que
ela passe a incluir objetivos contra a insegurança alimentar e pela alimentação
digna.
A ser realizada em dezembro, “a 6ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e
Nutricional, que precisa ser popularizada e aumentar a representatividade
desses grupos sociais, poderá ser um espaço para trazer algumas dessas
demandas”, sugeriu Sávio.
Fonte:
Por Guilherme Arruda, em Outra Saúde
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