sábado, 27 de maio de 2023

Juristas indígenas refutam tese do Marco Temporal, que afeta vida e território

O Brasil é lar de uma diversidade de povos indígenas que possuem direitos constitucionais à terra. Historicamente, muitas dessas terras têm sido objeto de disputas e processos de demarcação, visando garantir a posse e a proteção dos territórios indígenas.

A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) é o órgão responsável pela identificação, delimitação, demarcação e registro das terras indígenas, mas isso está prestes a mudar, caso proposta aprovada na Câmara dos Deputados avance no parlamento brasileiro e crie uma Emenda à Constituição. Para os povos indígenas, essa medida gera indignação, já que nega o básico: o direito ao território.

Aprovado por 324 votos a favor e 131 contra, o requerimento de urgência para o projeto de lei do marco temporal na demarcação de terras indígenas (PL 490/07) deverá voltar a ser apreciado pelo Congresso nos próximos dias.

Um exemplo de terra indígena que poderia ser afetada pela aplicação da tese do marco temporal é a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, localizada no estado de Roraima. A demarcação dessa terra indígena foi concluída em 2005, após um longo processo de disputas e conflitos.

A tese do marco temporal argumenta que, se essa interpretação fosse aplicada retroativamente, apenas as áreas ocupadas pelos indígenas até a data da promulgação da Constituição Federal de 1988, em 5 de outubro daquele ano, seriam reconhecidas como terra indígena. Isso poderia questionar a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, uma vez que parte da ocupação indígena nessa área ocorreu posteriormente a 1988.

Um outro exemplo de terra indígena que poderia ser afetada pela aplicação da tese do marco temporal é a Terra Indígena (TI) Munduruku, localizada principalmente no estado do Pará. Essa terra indígena abrange uma área significativa e é habitada pelo povo Munduruku.

A TI Munduruku tem sido alvo de disputas e conflitos envolvendo atividades como mineração da Vale, exploração madeireira e invasões por parte de posseiros e garimpeiros ilegais. A aplicação da tese do marco temporal poderia questionar a demarcação dessa terra indígena, uma vez que algumas áreas podem ter sido ocupadas pelos indígenas após a data de 1988, em um processo conhecido como “retomada”.

·         Advogados indígenas em defesa dos territórios

Na quinta-feira (25), uma forte mobilização de advogados indígenas que atuam diretamente com questões sobre o território, fizeram questão de apontar as falhas do Marco Temporal. Separamos algumas declarações, confira:

“Aprovar a tese do Marco Temporal significaria violar o próprio Estado Democrático de Direito. Inconstitucional desde o início, a tese representa um risco à segurança jurídica e social dos povos, violando o direito à terra, à vida e à memória”, afirma Kari Guajajara, assessora jurídica e integrante da Rede de Advogados Indígenas da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).

Ivo Makuxi, assessor jurídico do Conselho Indígena de Roraima (CIR) e membro da Rede de Advogados Indígenas da Coiab, afirma que:

“O Marco Temporal tira nossa tranquilidade, nossa paz. Fere nossa alma, nosso bem-viver. Quer rasgar e destruir nosso território e quer nos matar de uma vez só, mas não vai conseguir”.

“É absurdo que uma tese tão fraca juridicamente, tão pobre no sentido interpretativo da Constituição da República Brasileira, traga justamente a intenção de mitigar os direitos dos povos indígenas. Não é aceitável que os nossos direitos sejam reconhecidos apenas após a data de 5 de outubro de 1988”, disse Maurício Terena, Coordenador Jurídico da Apib.

“A tese do marco Temporal não atinge apenas as terras que estão em processo demarcatório, também vai atingir as terras demarcas e aqueles territórios homologados depois da promulgação da Constituição. Por isso é importante estarmos aqui provando a força do movimento que nós temos”, avalia Ewesh Yawalapiti Waura, consultor jurídico da Associação Terra Indígena Xingu (Atix).

“O Marco Temporal não passará e nós seguiremos lutando, assim como os antigos caminharam seus passos nesse território todo chamado Brasil. Nós vamos continuar lutando para que os direitos originários, consagrados na Constituição Federal, sejam respeitados”, Paulo Pankararu, primeiro advogado indígena do Brasil.

“Nós entendemos que o Marco Temporal é de fato uma tese absurda. Nossos direitos estão sendo atacados de todas as formas”, Jorge Tabajara, cacique Tabajara e advogado do Departamento Jurídico da Apoinme.

“Consideramos o Marco Temporal uma tese esdruxula. É uma tese que tenta legalizar a ilegalidade, tornar legal o que segundo a Constituição Federal é inconstitucional”, afirmou Jocemar Kaiakang, assessor jurídico da ArpinSul.

A ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, afirmou que deverá continuar buscando convencer o Congresso de que a medida, se aprova, irá esvaziar o ministério, criado este ano para ser um meio de mobilização e articulação das demandas indígenas.

Protestos começam a ser marcados em todo o país para reverter o avanço da proposta, enquanto o Supremo Tribunal Federal (STf) não analisa o caso.

 

Ø  Mais de 700 organizações assinam manifesto contrário à boiada da MP 1.154

 

Na tarde de quinta (25/5), representantes de organizações da sociedade civil enviaram a lideranças do Congresso Nacional um manifesto assinado por 790 entidades contra o substitutivo à Medida Provisória 1.154 aprovado ontem pela Comissão Mista.

Entre as centenas de adesões, estão organizações da sociedade civil que trabalham com meio ambiente e clima, representações indígenas, movimentos sociais, sociedades científicas, organizações corporativas e entidades do setor privado.

O documento aponta as alterações a serem feitas para corrigir os efeitos devastadores do substitutivo sobre o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) e o Ministério dos Povos Indígenas (MPI). O propósito é sensibilizar deputados e senadores para que promovam as mudanças em plenário.

Essencialmente, são quatro os pontos que precisam voltar à redação original da MP: gestão do Cadastro Ambiental Rural (CAR) pelo MMA; coordenação pela pasta do Meio Ambiente do Sistema Nacional de Gestão de Recursos Hídricos (SIGRH) e da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA); manutenção do poder do MMA sobre os sistemas de informações dos serviços públicos de saneamento básico, gestão de resíduos sólidos e gerenciamento de recursos hídricos; e a competência do MPI para demarcação de Terras Indígenas.

O manifesto salienta: “Votar a favor desses equívocos significa apoiar a diminuição da capacidade do Brasil combater o desmatamento, principal fonte nacional de emissões de gases de efeito estufa – GEE, de assegurar o equilíbrio no uso múltiplo das águas e de garantir a efetividade dos direitos constitucionais dos Povos Indígenas e a tutela dos Direitos Humanos. Não há qualquer razão administrativa que justifique o esquartejamento do MMA e a redução de poder do MPI.”

 

Ø  Indígenas reagem à urgência de marco temporal na Câmara

 

“Isso é barbárie. Nós estamos presenciando bárbarie, genocídio. Não carregue o sangue indígena em suas mãos. Assassinos, vocês são assassinos dos Povos Indígenas!”

Os gritos da bancada indígena da Câmara após os deputados aprovarem o regime de urgência para o Projeto de Lei 490/2007, que estabelece o marco temporal para a demarcação de Terras Indígenas, dão a tônica da revolta de um dia em que Povos Indígenas, ativistas e especialistas ambientais foram seguidamente atacados no Congresso Nacional. Mas também foram apenas o início de movimentações – políticas e sociais – contra tantas violências.

A corrida para aprovar o PL 490 é claramente uma ação puxada por deputados ruralistas. A bancada do boi tenta fazer com que o Congresso esvazie a votação do marco temporal no Supremo Tribunal Federal (STF), que será retomada no dia 7 de junho. Segundo o Congresso em Foco, se aprovado, o PL do marco temporal pode representar a perda de 63% das TIs demarcadas ou em processo de demarcação no Brasil. É por cima delas – e do sangue dos indígenas – que a boiada quer passar.

A deputada Célia Xakriabá (PSOL-MG) bradou que o PL 490 é um genocídio indígena com a anuência do Legislativo, relata o UOL. “Um Brasil que começa por nós, mas que não leva em consideração o Povo Originário, que defende não somente um bem prestado a nós, mas sobretudo um bem prestado à sociedade. São assassinos e é um genocídio legislado, usando a estrutura do Congresso Nacional.”

Para o advogado do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Rafael Modesto, a corrida do Congresso é uma clara tentativa de pressionar o Supremo, disse à Carta Capital. Entretanto, o “genocídio legislado” pode ser em vão. Primeiro, porque, mesmo se aprovado na Câmara, o PL ainda passará pelo Senado, que pode não aprová-lo. Depois, porque a palavra final acabará sendo do STF.

“É certo que o STF vai definir sobre a interpretação do artigo 231 e se existe marco temporal na Constituição. O que querem, ao nosso ver, é pressionar o STF para fixar um entendimento favorável ao PL 490. São poderes independentes, o Congresso pode até aprovar a lei que regula a tese, mas quem vai dar a última palavra vai ser a Suprema Corte.”

Por isso, o Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) acionou a Advocacia Geral da União (AGU) para solicitar, de maneira urgente, a revogação do parecer sobre o marco temporal enviado à Corte em 2017, no governo de Michel Temer. Segundo o CNDH, o documento legitima invasões, expulsões e violência contra os Povos Indígenas e serve para inviabilizar demarcações de territórios, bem como rever demarcações concluídas ou em andamento, informa o Brasil de Fato.

Em artigo na Folha, Samela Sateré Mawé, assessora de comunicação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA), lembrou que o marco temporal é inconstitucional. Além de ferir a vida dos Povos Originários, representa um risco para a biodiversidade, para o meio ambiente e para o clima de todo o planeta. É uma tese perversa, que legitima a violência contra os corpos-territórios indígenas, reforça ela.

“As Terras Indígenas demarcadas e as Unidades de Conservação são as regiões com maior preservação da biodiversidade, pois somos nós, Povos Indígenas, os principais guardiões dos biomas. Entendemos o território como uma extensão dos nossos corpos, não havendo diferença entre os seres humanos e as árvores, os animais e os rios. Sentimos na pele quando queimam e desmatam, matando as árvores e os seus moradores, seres vivos e encantados.”

 

Fonte: Mídia Ninja/ClimaInfo

 

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